sexta-feira, setembro 29, 2006

Guerra civil e revolução social na Espanha

A resposta dada ao levantamento militar de 17 de Julho de 1936 não foi uniforme em toda a Espanha por parte das forças sociopolíticas que recusavam o golpe. A discussão desta problemática é bem analisada no livro Rivoluzione e Controrivoluzione in Catalogna, de Carlos Semprun Maura (Ed. Antistato, 1976, 326 pp.) Na «Introdução» diz-nos que «a Catalunha constituía em 1936 uma das zonas industriais mais importantes da Península Ibérica» e nota que «o nacionalismo como expressão política assume a forma de uma resistência da burguesia industrial e comercial catalã contra o mau serviço centralizador do governo de Madrid e contra a política retrógrada dos latifundiários». E sublinha como característica: «Na Catalunha a opressão política e cultural não acompanha a ?colonização? económica. A Catalunha industrial, sobretudo no fim do século XIX e até 1936, receberá um afluxo maciço de trabalhadores imigrantes originários de regiões pobres, em particular de Aragão, de Múrcia e de Valência.» Com todas estas forças em acção, compreende-se que a resultante fosse sempre diferente do que cada uma defendia. Ainda por cima, como diz Semprun Maura, «a classe operária catalã era na sua imensa maioria defensora das ideias libertárias. A Catalunha era um ?bastião? da CNT-FAI. E toda a gente sabe que os anarquistas e anarco-sindicalistas espanhóis, catalães ou guatemaltecos, são ferozmente hostis ao Estado, à ideia de nação, e no que diz respeito à Catalunha eram concretamente hostis ao nacionalismo catalão, que consideravam burguês e reaccionário, tal como eram hostis ao centralismo do Estado espanhol. (...) Os anarquistas defendiam o princípio de uma federação livre de comunas e regiões que superasse concretamente e no sentido revolucionário os problemas nacionais». Precisamente por isso é que, em face da forma enérgica que os golpistas utilizam, o governo de Madrid e a Frente Popular são tíbios e hesitantes, mas na Catalunha as coisas fiam mais fino. Apercebendo-se do perigo, o presidente do governo catalão, a Generalitat, Luis Companys, tinha proposto à CNT, no dia 16 de Julho, «um encontro para estudarem em comum os meios para se oporem ao perigo fascista». A CNT e a FAI reuniram-se e «perante a ameaça fascista defenderam a posição segundo a qual era indispensável ou pelo menos desejável estabelecer uma colaboração estreita com todas as forças liberais, progressistas e proletárias decididas a enfrentar o inimigo». Assim se formou o Comité de Ligação com o governo catalão. O comité queria armas, mas o governo não as queria dar e não deu. De maneira que quando chegou a hora tiveram de as ir buscar onde elas estavam. E foi esta acção exemplar que pôs em xeque o Exército golpista em Barcelona e em toda a Catalunha até 20 de Julho. Mas os golpistas conseguiram separar geograficamente a Espanha republicana. O Estado espanhol ficou estilhaçado. Estão criadas as condições para que a oposição aos golpistas comece a fracturar-se. De facto, aqueles que sabiam com Proudhon e Bakunine que a sociedade que se queria construir tinha de ser fundamentada «na acção espontânea das associações livres, à margem de toda a regulamentação governamental e de toda a protecção do Estado» tentaram aproveitar essa ausência de poder de Estado para realizar o associativismo colectivista. E havia os outros que tentavam erguer um poder a partir das cinzas do Estado. Por isso se torna incompreensível a maneira como Garcia Oliver, militante da CNT, pôs o problema. Vejamos: Companys, a 20 de Julho, depois de terminada a batalha de Barcelona, convocou uma delegação de anarquistas à sede do governo catalão e disse-lhe: «Vocês venceram e tudo está em vosso poder. Se não tiverem necessidade de mim, se não me quiserem como presidente da Catalunha, digam-mo já e eu não serei mais do que um soldado na luta antifascista. Mas se pensarem que eu posso ser útil... contem comigo...» Os delegados da CNT-FAI quiseram consultar a organização e no plenário do comité regional Garcia Oliver equaciona a questão da seguinte maneira: «É preciso escolher entre o comunismo libertário, que significava a ditadura anarquista, e a democracia, que significava a colaboração.» Semprun Maura comenta: «Estranho mas significativo modo de pôr o problema: contrariamente a todas as ideias expressas em toneladas de artigos e discursos, o comunismo libertário torna-se, no momento da verdade, uma ditadura ?anarquista? e a CNT e a FAI tornam-se organizações ?políticas? que teriam nesta hipótese exercido sozinhas o ?poder?.» Garcia Oliver concluiu: «Nada de comunismo libertário. Primeiro esmagar o inimigo onde quer que ele se encontre.» E foi assim que se formou o Comité Central das Milícias Antifascistas da Catalunha, que seria durante a sua breve existência (23 de Julho a 3 de Outubro de 1936), como diz Semprun Maura, «um apêndice importante da Generalitat e uma espécie de comité coordenador dos estados-maiores das organizações antifascistas». Na verdade, no comité tanto estava representado o Partido Socialista Unificado da Catalunha, que era membro da Internacional Comunista, como estava o Partido Operário de Unificação Marxista, extremamente crítico dessa Internacional. Semprun Maura comenta: «Com efeito, se os membros da CNT-FAI e do POUM pensam que defendem a revolução colaborando com a Generalitat, os dirigentes do PSUC, por seu lado, estão firmemente decididos a apoiar a Generalitat ?contra? a revolução.» A ambiguidade que existia no comité atingirá todo o seu esplendor a 26 de Setembro com a entrada da CNT-FAI e do POUM para o governo catalão. O que o presidente da Generalitat pretende é normalizar tudo aquilo que ele considera serem os órgãos legítimos do poder. Daí uma série de decretos que visam tanto a dissolução do Comité das Milícias como a suspensão de todos os comités locais fundados na Catalunha, a restituição de algumas armas ou a militarização das milícias. O decreto que visa desarmar os operários e os camponeses dá oito dias para a entrega das armas e sublinha: «Passado este prazo, todos os que conservarem tais armas serão considerados fascistas e julgados com o rigor que a sua conduta merece.» Claro que, como diz Semprun Maura, «a CNT-FAI e o POUM, representados no governo catalão, aceitam e aprovam estas medidas». O que impressiona é que até o evolucionário Engels já tinha escrito em 1891 na «Introdução» à Guerra Civil em França de Marx (de 1871): «A dominação das classes possuidoras ? grandes proprietários fundiários e capitalistas ? encontrar-se-ia constantemente ameaçada enquanto os operários parisienses permanecessem em armas. O primeiro gesto de Thiers foi desarmá-los.» Tudo isto prenunciava afrontamentos na zona do antifascismo. Seria apenas uma questão de tempo se se observasse os processos revolucionários de outros países, especialmente na Rússia, na Itália e na Alemanha. A Internacional Comunista tinha sofrido uma derrota em toda a linha na Alemanha em 1933 com a célebre versão do social-fascismo. E por isso viu-se obrigada a fazer uma viragem de 180 graus, defendendo as frentes populares e as democracias burguesas. A situação em Espanha é apanhada nesta onda. Daí que a União Soviética, com a sua «ajuda desinteressada do grande povo irmão», defina bem o que lhe interessa e as condições extremamente restritivas da ajuda. O foco é o Partido Comunista. E é dele que irradia toda a força que visa aniquilar as correntes revolucionárias que não cabem no ínfimo espaço da Internacional. Tratava-se de acabar de «uma vez por todas com as tentativas dos sindicatos e dos comités de porem em prática o socialismo», como disse Jesus Hernandez, em Maio de 1937, citado por Semprun Maura, que conclui o capítulo «A URSS e a Espanha» com as palavras de Dolores Ibarruri no discurso de 25 de Maio de 1937: «É a revolução democrática burguesa, que noutros países, como a França, já foi feita há mais de um século, que se realiza hoje no nosso país e nós, comunistas, somos os combatentes de vanguarda nesta luta contra as forças que representam o obscurantismo dos tempos passados. (...) Nestas horas históricas, o Partido Comunista, fiel aos seus princípios revolucionários, respeitador da vontade do povo, alinha ao lado do governo, que é a expressão desta vontade, ao lado da república, ao lado da democracia.» Nem o Partido Comunista de Espanha nem o Partido Socialista Unificado da Catalunha estavam interessados nas colectivizações ou nas milícias. E disseram-no abertamente na primeira semana de Maio de 1937. Semprun Maura cita o Pravda de 17 de Dezembro de 1936: «Na Catalunha a eliminação dos trotskistas e dos anarco-sindicalistas já começou e será conduzida com a mesma energia com que foi na Rússia.» O aviso estava dado. Bastava uma fagulha para fazer explodir o barril de pólvora. E ela apareceu. A Central Telefónica de Barcelona encontrava-se sob a administração dos dois sindicatos da CNT e da UGT e um representante do Conselho da Generalitat. No dia 3 de Maio, camiões de guardas de assalto, sob o comando de Rodríguez Sala, comissário da Ordem Pública de Barcelona e membro do PSUC, chegam à Central, precipitam-se para o seu interior, desarmam os milicianos de guarda e começam o assalto aos vários andares. Só que os empregados e os milicianos presentes, alarmados pela insólita confusão, agarram nas armas e opõem aos polícias uma violenta resistência. Os assaltantes acabam por se retirar. O plano de assalto foi um fiasco. Mas a notícia correu célere. Era um momento decisivo para a revolução ? dum lado estavam as forças públicas (da ordem, PSUC), doutro as forças populares (CNT-FAI, POUM). A 4 de Maio a batalha assanha-se e inflama-se. O número de mortes e de feridos sobe em catadupa. A luta foge ao controlo das organizações. A CNT e a UGT lançam apelos para o cessar-fogo. Federica Montseny e Garcia Oliver apoiam este apelo. Rafael Vidiella, membro do PSUC e do governo catalão, pede aos trabalhadores que deponham as armas e que se estabeleça um cessar-fogo. Estava tudo contra as massas enraivecidas. A 5 de Maio o governo catalão demite-se em bloco. A CNT volta a propor uma trégua. Os Amigos de Durruti ainda tentam a formação duma junta revolucionária, que integraria o POUM, mas, de acordo com Semprun Maura, tanto a sua actividade como este apelo «foram denunciados pelo Comité Regional da CNT como provocações e acabariam por ser expulsos da CNT mais tarde». O dia 5 de Maio foi para Semprun Maura «sem dúvida o ponto culminante da batalha». O secretário-geral da UGT, Antonio Sesé, que fazia parte do elenco do novo governo, foi assassinado. O PSUC acusou os anarquistas. Neste mesmo dia os corpos dos anarquistas Berneri e Barbieri foram encontrados crivados de balas. Nos dias 6 e 7 de Maio, os Amigos de Durruti desobedecem ao apelo do Comité Regional da CNT. A luta continuava, mas os objectivos já estavam desfocados. Quinhentos mortos e milhares de feridos depois, «a rádio anunciava que o governo de Valência [governo central], vista a gravidade da situação, tinha decidido ocupar-se do restabelecimento da ordem pública na Catalunha». A coluna da guarda de assalto vai prendendo os militantes da CNT-FAI e pondo as suas sedes a saque. Os militantes anarquistas são enviados para «destino desconhecido» com os pés e as mãos atados. Os seus cadáveres serão encontrados nos arredores de Tarragona, nas bermas das estradas. No dia 8 de Maio, o Comité Regional da CNT diz que «o incidente que lançou Barcelona no luto terminou» e acrescenta: «Desejamos por isso oferecer novamente a nossa colaboração ao governo da Generalitat e ao novo delegado da Ordem Pública enviado pelo governo central.» No dia 12 de Maio, aparece uma nota na imprensa onde se diz: «O governo catalão dominou a revolta com os seus próprios meios.» Segundo Semprun Maura, deste governo fazia parte um elemento da CNT, Valerio Mas. Victor Serge, em La Révolution Prolétarienne, de 25 de Junho de 1937, fala da prisão de quarenta dos principais militantes do POUM e da ilegalização do partido e pergunta: «O que é que resta da democracia espanhola para os operários?» A entrada da CNT-FAI e do POUM para o governo ajudou a restaurar o poder do Estado enquanto a guerra ia devorando a revolução. No fim de contas comprovou-se mais uma vez: o poder corrompe os homens. Como Semprun Maura titula o último capítulo ? a contra-revolução triunfa.
Júlio Palma
http://pt.indymedia.org/ler.php?numero=109112&cidade=1

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