sexta-feira, setembro 29, 2006

Uma nova fase na crise de Timor Leste

A fuga em massa da cadeia de Becora de Dili abriu uma nova fase na crise de Timor Leste. Em 30 de Agosto, Alfredo Reinado, uma figura chave da rebelião que deitou abaixo o governo de Alkatiri, escapou pelo portão juntamente com mais 56 prisioneiros. Até isto acontecer, o pequeno e esgotado país parecia estar a estabilizar lentamente, depois de um conjunto de ataques internos e pressões australianas terem derrubado o governo acossado do primeiro-ministro Mari Alkatiri. Reinado, que tem três 'X' tatuados na nuca à semelhança da personagem machista do cinema Xander Cage, apelou a uma revolução de "poder popular". Este apelo tem naturalmente uma certa aceitação numa população que enfrenta uma miséria prolongada, em que grande parte dela continua a viver em campos de refugiados. Outro rebelde, Vicente da Conceição, ou "Railos", fugiu para as montanhas ocidentais uns dias antes para evitar ser preso. Na mesma altura em que Reinado desapareceu, a multi-cultural TV [1] da SBS da Austrália passou um documentário criticando grandes buracos na história que nos serviram sobre a queda de Alkatiri: A crise começou com a rebelião das forças de segurança, seguida por violência de grupos organizados. A causa profunda foi a pobreza, mas os principais media australianos culparam logo o primeiro-ministro Alkatiri, cujo verdadeiro crime era ter feito frente a Canberra nas negociações sobre o petróleo e o gás. Depois descobriram o "carismático" Reinado. Este chefiou um grupo armado revoltoso que entrou em confronto com os militares, mas que afirmou estar a agir em auto defesa. Depois o programa da TV Four Corners acusou Alkatiri de organizar um esquadrão de morte contra os seus opositores. Railos declarou que tinha sido ele a chefiar este esquadrão da morte. As acusações condenatórias forçaram à demissão de Alkatiri, após semanas de resistência. Agora os jornalistas do Dateline, David O'Shea e John Martinkus desmontaram toda esta narrativa. E estes tipos são credíveis. O'Shea esteve com Reinado nas montanhas quando ele combateu contra os militares pela primeira vez e depois quando aceitou ser preso. Martinkus tem feito a cobertura de Timor Leste nos últimos dez anos. O'Shea e Martinkus demonstraram que foi Reinado quem atacou primeiro os militares (O'Shea viu-o) e que Railos, acusado de organizar o esquadrão de morte para Alkatiri, esteve na verdade a combater ao lado das pessoas que supostamente devia "matar". Curiosamente Railos deu a volta na tomada de posse do susbtituto de Alkatiri, Ramos Horta, e tem sido visto em casa do Presidente Gusmão, outro opositor de Alkatiri. [2] A versão estabelecida, cozinhada para legitimar o derrube do primeiro-ministro, está cheia de buracos. Em seu lugar começam a aparecer outros padrões. Fazendo parte da campanha contra Alkatiri, o político da oposição Fernando Araújo afirmou que a sua família tinha sido ameaçada. Talvez fosse verdade – Timor Leste é hoje um lugar violento e caótico. O Partido Democrático ajudou a coordenar as manifestações anti-Alkatiri – isto só por si podia ser apenas a democracia a funcionar, embora com alguma ajuda das tropas australianas... mas vejam quem foi que também ajudou. Um deles foi Rui Lopes, que O'Shea e Martinkus dizem que "ficou rico através da sua estreita ligação com Kopassus, as conhecidas Forças Especiais Indonésias". Outro foi Nemécio de Carvalho, antigo líder de uma das piores milícias que aterrorizaram os timorenses em 1999. Uma outra força que pressionou a queda de Alkatiri foi a hierarquia da Igreja, e não foi só a rezar. "Fontes fidedignas no alto comando do exército disseram à Dateline que foram aconselhados pessoalmente por dois padres a expulsar Alkatiri". Mas há mais: No final de 2005, o chefe das forças armadas, brigadeiro-general Taur Matan Ruak, e o tenente-coronel Falur Rate Kaek foram abordados por dois líderes timorenses acompanhados de dois estrangeiros em duas ocasiões diversas. Os quatro também pediram ao exército, ou FFDTL, para derrubar o primeiro-ministro Alkatiri.' Aqui os testemunhos são pouco claros. Os estrangeiros eram americanos ou australianos? Ninguém tem a certeza. Alkatiri não pode provar que houve uma conspiração generalizada contra ele. Diz apenas: "Não há provas. Mas o único primeiro-ministro do mundo que na verdade me 'aconselhou', cito, a demitir-me, foi o primeiro-ministro da Austrália". Parece que à medida que avançam as investigações sobre os acontecimentos dos últimos meses, as únicas personagens que aparecem como culpados são Reinado e Railos. Mário Carrascalão, outro político da ala direita, queixou-se de que "Railos sente-se frustrado. Forneceu informações para ajudar a resolver o problema e agora querem prendê-lo". [3] Canberra acabou por obter o que queria quando José Ramos Horta substituiu Alkatiri. Horta é um paladino do neoliberalismo e dos investidores estrangeiros: declarou há pouco tempo que "a Austrália não pode estar sempre a ser filantrópica em tudo o que faz por Timor Leste". Isto a respeito dos depósitos de petróleo e gás situados entre os dois países, sobre os quais a Austrália tem sido totalmente impiedosa nas negociações. Mas, a partir da fuga da prisão, de que parece terem uma parte da culpa – supostamente deviam estar a guardar o exterior da cadeia – as forças australianas começaram a sofrer uma pressão política maior. Em Julho o antigo ministro do interior Rogério Lobato acusou-as de infringirem os direitos humanos quando lhe apreenderam carregamentos de armamento, dizendo que elas tinham utilizado a força e não tinham nenhum mandato. Em 28 de Agosto, o chefe da academia da polícia de Timor Leste, Júlio Hornai disse ao jornal The Age que os polícias australianos o tinham obrigado a despir a farda em público. Em 22 de Agosto atiradores de pedras feriram sete polícias australianos, e no início de Setembro, uma multidão agrediu polícias australianos após um confronto de rua. Até a primeira dama pró-australiana, Kirsty Sword Gusmão, diz que os australianos estão afastados da população e "têm muito pouco conhecimento local". [4] Entretanto, desmoronou-se a tentativa já antiga das Nações Unidas para encobrir os abusos sexuais feitos pelo seu pessoal civil e à paisana em Timor Leste. A verdade veio ao de cima. [5] Dado o crescente desagrado com a presença estrangeira, dado que a Fretilin ainda se mantém a organização política mais forte do país, e dada a fuga de Reinado e Railos para as montanhas com espingardas e manifestos, com 100 mil pessoas em campos de refugiados, também se exerce alguma pressão sobre Horta para ser mais do que um fantoche do imperialismo. Esta pressão tomou forma naquilo que um importante correspondente sediado em Nova Iorque chamou de "tom agressivo anti-australiano" e até de "crítica venenosa" na reacção à fuga da cadeia. Relacionadas com isto, embora de forma imprecisa, estão as exigências para que as forças australianas se submetam ao controlo das Nações Unidas. [6] O que falta é um significativo movimento político de esquerda que oriente as raízes do conflito. Sem ele, o descontentamento popular pode ser canalizado para apoiar Reinado, ou a ala direita, ou grupos perigosos como os 30 mil fortes grupos de artes marciais que pululam em Timor Leste. É verdade que para algumas pessoas as coisas estão melhor com Horta. "Os homens de negócios dizem que agora as autorizações são emitidas em horas e não em dias, os contentores movimentam-se mais rapidamente nos portos e a corrupção parece estar contida". [7] O governo está a esforçar-se para ir ao encontro das necessidades do capital. Entretanto, 100 mil deslocados continuam a viver em tendas, e está a chegar a estação chuvosa que vai transformar tudo num verdadeiro inferno.
Notas [1] Transcrição da SBS Dateline, "East Timor - Downfall of a Prime Minister," 30 August 2006. This is the source for everything not otherwise footnoted. Available at news.sbs.com.au/dateline/ . [2] Parece que o gabinete do presidente também pagou a conta de um hotel a Reinado a primeira vez que ele fugiu. Mark Dodd, "Claim That President Paid Major's Hotel Bill," The Australian, 12 September 2006. [3] Lindsay Murdoch, "Timor Faces New Rebellion," The Age, 2 September 2006. [4] John Stapleton, "Forces Must Know the People," The Australian, 4 September 2006. [5] Ver Lindsay Murdoch, "UN Acts to Stamp Out Sex Abuse by Staff in East Timor," The Age, 30 August 2006. [6] David Nason, "Venom Threatens Separate Mission," The Australian, 4 September 2006. Como sugerem as acusações dos abusos, as Nações Unidas não são obrigatoriamente uma melhoria. [7] Murdoch, "Timor Faces New Rebellion."
Tom O'Lincoln
http://resistir.info/

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