quarta-feira, abril 02, 2008

Os equívocos da actual política educativa

Escrito por Paulo Guinote
01-Abr-2008
Após a década de 90 em que se desenvolveu de forma consistente, apesar da mudança política operada a meio do processo, uma política educativa caracterizada por critérios de baixo rigor em relação ao desenvolvimento das aprendizagens dos alunos, da respectiva avaliação e disciplina, ao mesmo tempo que a compreensão sindical era conseguida mediante uma coreografia negocial que se transformou em rotina, a primeira década do século XXI ameaça tornar-se um dos períodos mais falhados da História da Educação no nosso país, um daqueles momentos em que da ebulição e efervescência legislativa não restará nada de particularmente notável quando o balanço for feito daqui por uma geração.
Se os primeiros anos foram marcados por medidas que não tiveram grande continuidade ou articulação, desde 2005 assistiu-se a uma tentativa de reformar o sistema educativo público português que demonstrou uma coerência na acção, mas infelizmente uma coerência ao serviço de objectivos só parcialmente correctos e recorrendo a metodologias profundamente erradas.
Recuperemos aqui o essencial dos objectivos da política governativa deste Governo e do seu Ministério da Educação, o qual se pode resumir a dois pontos:
• Reduzir os encargos com o sector da Educação suportados pelo Orçamento do Estado.
• Reduzir os níveis de insucesso e abandono escolar.
A isto convencionou-se considerar uma política visando a melhoria da eficácia do sistema, usando-se uma série de conceitos-chave para consumo mediático como «sucesso», «mérito», «autonomia», «avaliação», «rigor» e outros similares ou aparentados.
Do mesmo modo funcionaram fórmulas de consumo rápido como as «Aulas de Substituição», a «Escola a Tempo Inteiro» e a «Ocupação Plena dos Tempos Escolares» destinadas a fornecer um serviço de acolhimento universal e gratuito das crianças e jovens, enquanto as famílias passavam a não ter desculpa para verem os seus horários laborais flexibilizados.
A estratégia para levar a cabo esta reforma do sistema passou principalmente por produzir uma mensagem comunicacional forte no sentido de conquistar a opinião pública, ao mesmo tempo que se procuravam estabelecer relações preferenciais de negociação com alguns dos «parceiros» no terreno em detrimento de outros.
Em termos práticos definiram-se como alvos a abater os números do «insucesso» ou «ineficácia» do sistema, recolheram-se alguns dados estatísticos avulsos e selectivos, alimentou-se a comunicação social com dossiês sobre os temas e apontou-se o dedo aos professores como grandes responsáveis pelos males detectados.
A partir desse momento passou-se à fase que eu já qualifiquei como de «torrente legislativa», com uma catadupa de diplomas a serem formalmente discutidos e publicados em rápida sucessão, com diversas lacunas ou falhas de fundamentação, calendarização e substância.
Para melhor demonstrar a minha opinião, gostaria de dividir as minhas discordâncias relativamente à política desenvolvida por este Ministério da Educação em questões de forma e conteúdo.
Comecemos pelas de forma:
• O Ministério da Educação optou por encetar as suas reformas parciais do sistema educativo sem rever primeiro a Lei de Bases do Sistema Educativo ainda em vigor. Por isso, algumas soluções propostas são incompatíveis com a LBSE, embora pareça existir um consenso alargado para não fazer alarde desse facto, desde logo no que se refere ao novo modelo de gestão escolar.
• Desde a sua entrada em funções, esta equipa ministerial decidiu delinear as suas políticas de acordo com uma metodologia que desvalorizou sistematicamente o papel dos professores enquanto intermediários negociais para a definição daquelas políticas e aferição da sua exequibilidade no terreno. O Conselho de Escolas surgiu tardiamente criado sob atento controle da tutela.
• Em termos de discurso para a opinião pública, o ME apoiou-se numa retórica agressiva, direccionada contra os professores e os sindicatos, apostando na sua diabolização perante a opinião pública. O objectivo, com uma dupla vertente, foi claro: indispor a opinião pública contra uma classe profissional de absentistas, incompetentes, acomodados e privilegiados e minar a sua posição nas Escolas perante os restantes intervenientes no processo educativo, desde logo os pais e encarregados de educação e, em segunda instância, os alunos.
• Em termos de calendarização, os vários diplomas foram aprovados de forma atabalhoada, mostrando-se deficientemente preparados, o que se traduziu na necessidade (concurso para professores-titulares, legislação sobre Necessidades Educativas Especiais, avaliação dos docentes) de proceder a sucessivos remendos para os tornar viáveis ou minimamente compreensíveis.
• Muitos destes processos legislativos foram caracterizados por entorses jurídicos, com prazos definidos em decretos a serem alterados por despachos ou portarias ou com regras de concursos a serem alteradas com os ditos já em decurso, desorientando candidatos e causando perturbação nas escolas.
Mas os problemas de substância são bem mais graves pois, do meu ponto de vista, baseiam-se em concepções erradas e conduzirão inevitavelmente a consequências negativas, previsíveis e óbvias, mas que o ME opta por ignorar. Para comodidade da exposição, seleccionarei apenas uma meia-dúzia de diplomas e alguns dos erros ou equívocos que considero serem mais evidentes.
• Estatuto da Carreira Docente – a criação de um modelo de duas carreiras sobrepostas, com um estrangulamento artificial na passagem de uma para a outra é potenciador de enorme desmotivação entre os docentes. Em vez de apostar num modelo de carreira verdadeiramente novo, com a docência como tronco comum e carreiras especializadas paralelas com base no exercício de funções específicas (administração escolar, educação especial, gestão de recursos e equipamentos, etc) o ME preferiu aquele que tem, na sua essência, meros intuitos de economia dos gastos e frustração das expectativas profissionais individuais.
• Formação de Professores – o ME apostou numa formação de modelo bolonhês para os professores do 1º Ciclo do Ensino Básico (e eventualmente para o que agora é o 2º Ciclo), com uma licenciatura e um mestrado integrado como condição sine qua non para o exercício da docência. Observados alguns planos curriculares dos cursos já aprovados ou em funcionamento verifica-se que à sobrequalificação formal (todos os professores terão mestrado) corresponde uma desqualificação académica efectiva, em virtude da opção por uma formação científica generalista. Para além disso, a imposição de um exame de acesso à profissão (com patamar mínimo de 14 valores em todas as provas) torna algo irrelevante a formação anterior e respectiva classificação.
• Avaliação dos Docentes – apostou-se na criação de um modelo complexo, burocrático, pesadíssimo em termos de produção de registos e instrumentos de avaliação e classificação, que desde logo demonstrou ser inadequado quando o ME confessou não ter os meios humanos necessários para a sua monitorização. Não se deve esquecer que rapidamente se soube que os professores titulares, avaliadores, não seriam avaliados nesta primeira fase, conforme previsto, pelos inspectores da IGE. Para além disso o modelo incorpora na sua versão legislada, paradoxalmente, tanto mecanismos fortemente condicionadores da autonomia das escolas como outros que deixam larga margem à subjectividade dos avaliadores. A definição de critérios, por exemplo, é prevista como confidencial (entre avaliadores e avaliados) e de forma opaca e abre toda uma avenida para as más práticas. Tudo seria mais fácil com um modelo mais simples e transparente.
• Novo Modelo de Gestão Escolar – sob o lema da «autonomia», o ME acabou por prescrever um modelo único de funcionamento às escolas, forçando a existência de um Director Executivo e determinando, com uma margem de liberdade mínima, a constituição dos respectivos órgãos de gestão e direcção, administrativa e pedagógica. Mais grave: em vez de testar a fórmula num grupo restrito de escolas/concelhos, decidiu avançar para uma solução generalizada, quando se sabe que reformas deste tipo em outros países, quando tiveram sucesso e não resultaram de práticas já historicamente consolidadas, demoraram diversos anos a colocar no terreno. E confundiu-se a «territorialização» das políticas educativas com a «municipalização» dos serviços, o que são situações razoavelmente diversas.
• Necessidades Educativas Especiais – sendo uma área muito sensível das políticas educativas, por tocar nos métodos de enquadramento e trabalho com as crianças e jovens mais vulneráveis, esta política deveria atender de forma muito cuidadosa às melhores práticas conhecidas ou já em decurso entre nós. Pelo contrário, optou-se por uma solução padronizadora e redutora que deixa de fora a possibilidade de solucionar problemas graves de potencial insucesso escolar, mas que não se enquadram numa grelha classificativa de tipo médico. De novo, optou-se pela solução fácil e barata sob o manto da «inclusão», quando em muitos casos é essencial a diferenciação das abordagens.
• Estatuto do Aluno – muito em voga em virtude de recentes ocorrências do foro disciplinar, este Estatuto enviou, desde que surgiu a público, uma mensagem errada de laxismo e facilitismo. Ao contrário da propaganda oficial, este Estatuto não contém medidas preventivas eficazes para reduzir os problemas da indisciplina e violência (que o ME insiste em desvalorizar), diminui os poderes dos professores, em particular dos Conselhos de Turma, subalterniza o poder de decisão das escolas aos das instâncias regionais ou centrais do ME e institui um regime de assiduidade que, no seu objectivo central, apenas visa ocultar situações de abandono escolar efectivo. Porque, estando ou não a ir às aulas, o aluno deixará de ser excluído da frequência por faltas e, enquanto tal, o abandono desaparece. Sendo um óptimo truque para as estatísticas é uma medida péssima para um ambiente de responsabilidade e rigor nas escolas.
Paulo Guinote é Professor do 2º Ciclo do Ensino Básico. Doutorado em História da Educação. Autor do blogue “A Educação do meu Umbigo” (http://educar.wordpress.com/).

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