Resgate para poucos, escravidão pela dívida para muitos
Estamos agora a entrar nos Dias Finais em termos financeiros. O "Plano A" do salvamento (compra das hipotecas lixo) fracassou, o "Plano B" (compra de acções substitutivas dos bancos a fim de recapitalizá-los sem eliminar os maus administradores) está a falhar, e as dívidas ainda não podem ser pagas. Esta é a realidade com que a Wall Street evita confrontar-se. "Primeiro eles o ignoram, a seguir eles o denunciam, e finalmente dizem que sempre souberam o que estava a dizer", dizia Gandhi. O mesmo se pode dizer do inchaço de dividas de hoje, que ultrapassa a capacidade da economia para pagar. Primeiro os decisores políticos pretenderam que as mesmas podiam ser pagas, a seguir denunciaram os pessimistas como propagadores do pânico, e finalmente disseram ser evidente, como os estudiosos sabem desde há quatro mil anos, que a "mágica do juro composto" mantém dívidas a duplicarem e reduplicarem mais depressa do que a economia pode ser espremida a fim de extrair um excedente económico para pagá-las. O que acabou agora é a ideia de que "a magia do juro composto" pode tornar ricas as economias sem ter de trabalhar e sem indústria. Espero bem que tenhamos visto o fim de fórmulas derivativas a tentarem fazer dinheiro através de jogos de soma zero. Uma dívida inchada acaba sempre ou em arresto da propriedade do devedor ou numa anulação da dívida a fim de preservar a liberdade e a equidade geral da economia. Isto significa que a economia pós-moderna tal como a conhecemos deve acabar em uma de duas alternativas – ou em polarização financeira e escravidão pela dívida (debt peonage) junto a uma nova elite oligárquica, ou num cancelamento da dívida, num Ano Jubileu a fim de resgatar a sociedade. Mas quando o governo diz que está a rever "todas" as opções, estas alternativas não estão entre elas. A primeira opção do secretário do Tesouro Henry Paulson foi comprar pacote de hipotecas lixo (collateralized debt obligations, CDOs) para impedir os investidores institucionais mais ricos de terem de assumir perdas sobre as suas más apostas. Quando se verificou que isso não era suficiente, ele saiu-se com o "Plano B", de dar dinheiro aos bancos. Mas apesar de a Grã-Bretanha e países europeus falarem em nacionalização de bancos ou pelo menos em tomar uma participação de controle, o sr. Paulson cedeu aos seus compadres da Wall Street e prometeu que as compras de acções pelo governo não seriam reais. Não haveria qualquer diluição dos accionistas existentes, e o investimento do governo seria sem direito a voto. Para coroar a dádiva feita aos seus compadres, o sr. Paulson concordou mesmo em não pedir aos executivos que abandonassem seus paraquedas dourados, nem os seus bónus anuais ou os seus salários exorbitantes. O Plano A (os US$700 mil milhões para comprar lixo apoiado por hipotecas que o sector privado jamais compraria) fracassou parcialmente porque deixava as instituições financeiras fugirem ao estabelecimento de um valor justo nos pacotes de dívida que estavam a vender. Ao invés de contar a verdade acerca da sua posição financeira (pela marcação dos activos aos preços de mercado), elas podem "marcar para modelar", estilo Enron. Já vimos o resultado disso: uma semana de mergulho maciço nos preços das acções. Os media públicos chamam isto de pânico, mas não há nada de irracional a respeito. Quem em sã consciência compraria títulos ou compraria participação num banco sem saber o que valem eles? A fé em modelos matemáticos lixo acabou. Assim, ainda aguardamos uma resposta pública para o problema do cancelamento de dívidas. Qual será o interesse económico que predominará: o dos devedores, como tem sido o caso progressivamente ao longo dos últimos oito séculos, ou o dos credores, os quais lutaram contra isso a fim de criar uma economia neoliberal controlada pelo sector FIRE? Não é demasiado tarde para decidir qual estrada tomar, mas banqueiros da Wall Street e credores tomaram a dianteira no posicionamento. Ao verem a direcção em que sopravam os ventos políticos, movimentaram-se a fim de esvaziar o Tesouro antes das eleições de 3 de Novembro, à semelhança do modo como populações medievais fugiam diante de uma horda de atacantes mongóis sob Genghis Khan. "Estamos a mudar. Limpem os armários", tal como a Lehman Brothers esvaziou as suas contas bancárias externas, na Grã Bretanha e alhures, pouco antes de declarar bancarrota, sacando o que podiam e destinando-a aos seus melhores amigos. A pretensão era ser necessário um salvamento a fim de restaurar a confiança. Mas a semana que se seguiu mostrou que tal afirmação era falsa. Não inverteu a tendência no mercado de acções como fora prometido. O índice Dow Jones Industrial Average caiu 2.200 pontos desde quarta-feira, 1 de Outubro até a sexta-feira seguinte, 10 de Outubro – oito dias de pregão directo, sem mesmo uma pausa para os zig-zags habituais. O mergulho de sexta-feira foi de 100 pontos por minuto durante os primeiro sete minutos – uma queda de 690 ponto, para menos de 8000. Cada 100 pontos era mais do que uma queda de 1 por cento, a qual reflectia-se no NASDAQ. Não havia nada que pudesse aguentar a pressão de tantos americanos a converterem em dinheiro da noite para o dia os seus fundos mútuos e de tantos estrangeiros em fusos horários antecipados a colocarem ordens de venda ao preço do mercado. Os vendedores a descoberto (short sellers) fizeram uma das maiores e mais rápidas fortunas de todos os tempos, e a seguir cobriram suas posições comprando de volta as acções que haviam vendido anteriormente. Isto levou os preços a ascenderem mesmo a território positivo pouco antes das 10h30 quando George Bush começou a falar. Metade das acções financeiras mostravam ganhos – um sinal de que a Plunge Protection Team havia saltado. Mas o sr. Bush nada disse de útil e as acções tornaram a cair em queda livre, acabando por baixar outros 128 pontos apesar da anunciada reunião do G7 no fim de semana. Não houve de todo qualquer referência à redução dos níveis de dívida – só se falou em dar mais dinheiro a bancos, companhias de seguros e outros administradores de dinheiro, como se isso de alguma forma os levasse a conceder ainda mais empréstimos a uma economia já cavalgada pela dívida. Se o Congresso realmente quisesse restaurar a confiança, eis o que poderia ter feito: Primeiro, marcar [a dívida] ao valor do mercado, não do modelo. Os investidores já não acreditam na contabilidade americana estilo Enron, nas agências de classificação de dívida ou em seguradoras de risco monoline. Eles não acreditam que os bancos dos EUA estejam a ser honestos acerca das suas posições financeiras. Preocupam-se acerca de acusações de fraude apresentadas por procuradores da justiça de onze estados contra prestamistas predatórios tais como o Countrywide e o Wachovia que o Citibank, o JPMorgan Chase e o Bank of America estavam ansiosos por comprar. Será demasiado tarde para o Congresso mudar de ideia e recusar a dádiva? Se os US$700 mil milhões da esmola não estabilizaram o que não tem salvação para pequenos investidores, fundos de pensão e mesmo o próprio sector financeiro, o que é que ela fez? O que é que o Fed tem estado a fazer enquanto os media não estão a olhar? Vamos colocar a dádiva em perspectiva. Enquanto senadores e deputados sujeitos à escolha dos eleitores estavam a debater os US$700 mil milhões para os grandes contribuintes da Wall Street a ambos os partidos (reconhecidamente só para começar, explicou o sr. Paulson), o Federal Reserve já havia dado ainda mais, sem qualquer discussão pública e sem que os media principais noticiassem. Desde que o Bear Stearns fracassou em Março último, o Federal Reserve tem utilizado as letras pequenas do seu estatuto para ir além dos seus clientes normais (os quais são supostos serem bancos comerciais), para dar a bancos de investimento, casas correctoras e agora grandes corporações, quase indiscriminadamente, uns US$875 mil milhões em permutas de "cash por lixo". (As estatísticas são divulgadas a cada semana no relatório H41 do Fed). Tal como Aladino a oferecer novas lâmpadas em troca de velhas, o Fed trocou títulos do Tesouro por hipotecas lixo e outros títulos que casas correctoras e bancos de investimento não haviam tido tempo de colocar junto à OPEP, a fundos de riqueza soberanos asiáticos ou outros investidores. A imprensa louva o sr. Bernanke como "um estudioso da Grande Depressão". Se ele o fosse, deveria saber que o que levou ao colapso de 1929 foram duras políticas de credor do governo dos EUA em relação aos governos aliados da Primeira Guerra Mundial. Isto criou uma situação em que o Federal Reserve tinha de proporcionar crédito fácil para manter taxas de juro artificialmente baixas de modo a encorajar investidores estado-unidenses a emprestarem à Grã-Bretanha e Alemanha, as quais utilizariam estes influxos de dólares para pagar a sua armas inter-aliadas e as suas reparações de guerra. O antecessor do sr. Bernanke, Alan Greenspan, promoveu o crédito fácil simplesmente por razões ideológicas, para enriquecer a Wall Street permitindo-lhe vender mais dívida. Um estudante da Grande Depressão entenderia os conflitos de interesse entre banca comercial a retalho e banca de investimento grossista e administradores de dinheiro que em 1933 levaram o Congresso a aprovar o Glass-Steagall Act – conflitos desencadeados novamente quando o presidente Clinton apoiou o então presidente do Fed Alan Greenspan, e o líder republicano (e herói de McCain) senador Phil Gramm, levando à revogação desta lei, abrindo as comportas para a inundação de fraudes financeiras que tanto tem custado à economia americana. Se o sr. Bernanke não conhece esta história, o seu comportamento é simplesmente o de um estudante oportunista da arte da auto-promoção política, de servilismo à Wall Street ao fazer campanha para uma última grande fraude antes de a administração Bush cair fora. O Fed deu à Wall Street títulos do Tesouro recém impressos, acrescentados à dívida nacional a partir do nada. Ele fez isto sem sentir qualquer necessidade de dar explicações ao traçar quadros absurdos de relações públicas acerca de como o governo pode "proporcionar um lucro para os contribuintes". O presidente do Fed não é eleito democraticamente. Ele tradicionalmente é designado pelo sector financeiro da Wall Street que o Fed é suposto regular, actuando como lobbyista para os interesses dos credores – os 10 por cento da população no topo – contra aqueles dos endividados "90 por cento da base". Esta "independência do banco central" é trombeteada como uma marca distintiva da democracia. Mas ela é não democrática precisamente por estar isolada do controle público. A era da oligarquia O secretário do Tesouro Paulson não desfruta deste luxo. O Tesouro é suposto representar o interesse nacional, não aquele dos banqueiros – embora a sua chefia nestes dias seja retirada da Wall Street e ele actue como o seu lobbyista. O sr. Paulson apresentou a sua dádiva de forma quase totalitária, dirigindo-se rispidamente ao Congresso, numa base de pegar-ou-largar, anunciando que se o Congresso não salvasse a Wall Street e esta tivesse de assumir perdas sobre a sua montanha de maus empréstimos, os bancos estavam desejosos de levar a economia ao crash por puro despeito. "Por favor, não nos façam arruinar a economia", disse ele efectivamente. Tal como Margaret Thatcher costumava dizer enquanto vendia as jóias da coroa do governo britânico na década de 1980, TINA: Não há alternativa (There is no alternative). Ao fazer esta ameaça pesada o sr. Paulson comportou-se tão arrogantemente quanto o fez o presidente do Lehman, Richard Fuld, quando tentou lograr a Coreia e outros investidores em perspectiva [convencendo-os] a pagar o pleno valor fictício inscrito na contabilidade da sua companhia. (O seu logro fracassou e o Lehman entrou em bancarrota, liquidando seus accionistas, incluindo os empregados e administradores que possuíam 30 por cento das suas acções.) Isto aconteceu reiteradamente. Reagindo à mais estrondosa condenação pública de que há memória, o Congresso aprovou o logro do sr. Paulson. O que tornou o seu Programa de alívio para activos perturbados (Troubled Asset Relief Program, TARP) de US$ 700 mil milhões muito mais visível para os media do que as acções do Fed foi o envolvimento do Congresso, e isto num ano de eleições. O nível de engano e de falsa argumentação é portanto enorme – juntamente com umas poucas compensações e cortes fiscais para distrair as atenções. O senador Jeff Sessions, antigo opositor republicano do Alabama, estava certo quando disse "Esta lei foi empacotada com um bocado de coisas muito populares a fim de lhe dar mais força", de modo que (como explicou The New York Times ), "ao invés de tomar partido por um salvamento de US$700 mil milhões, agora os legisladores podiam dizer que votaram pelo protecção acrescida aos depósitos no banco da vizinhança, pelo alívio do imposto sobre rendimento para contribuintes da classe média e por ajuda a escolas em áreas rurais onde o governo federal possui grande parte da terra". Enquanto os crentes da Wall Street nas virtudes dos mercados livres abraçavam o paraíso do "socialismo para os ricos", eram abandonados os devedores hipotecários, os devedores dos empréstimos para estudantes, a Pension Benefit Guarantee Corporation (PBGC, descoberta nuns US$25 mil milhões), a Federal Deposit Insurance Corporation (FDIC, descoberta em cerca de US$40 mil milhões), bem como a Segurança Social a qual, advertiram-nos, pode incorrer num défice de um milhão de milhões (trillion) de dólares dentro de 30 ou 40 anos. Apenas os mais ricos foram beneficiados, não os eleitores, proprietários de casas e outros devedores. Ainda assim, o Congresso, pressionado pelo terror, foi levado a actuar na sexta-feira, 3 de Outubro, porque uma semana antes, 26 de Setembro, as acções haviam caído 777 pontos depois de congressistas corresponderem a um volume sem precedentes de protestos de eleitores contra o salvamento. "Esta asneira poderia prejudicar", advertiu o presidente Bush quando lobbystas da Wall Street atribuíram a culpa pelo retrocesso no mercado ao fracasso do Congresso em preservar o "sistema monetário", e especificamente os bancos e companhias de seguros que já haviam perdido o seu valor líquido e estavam a mergulhar mais profundamente no território da Situação Líquida Negativa. Os líderes democratas Barney Frank e a porta-voz da Câmara Nancy Pelosi disseram, com efeito, "Olhem o que fizeram! Vocês políticos irresponsáveis estão a exibir princípios e a liquidar poupanças de pessoas aplicadas em acções e a ameaçar seus fundos de pensão. Se não derem às firmas da Wall Street bastante dinheiro para cobrirem suas perdas de modo a que todos ganhem, eles matarão a economia até conseguirem seus intentos". Bem, eles não disseram estas palavras exactamente assim, mas esta foi basicamente a sua mensagem. Era certamente a mensagem da Wall Street: "Seu dinheiro ou sua vida". De modo que o Congresso acabou por dá-lo. Os democratas correram como ratos para "salvar a economia". Mas o mercado de acções caiu umas poucas centenas de pontos, e continuou a mergulhar ao longo de toda a semana, muito pior e mais rapidamente do que havia ocorrido logo depois de o Congresso ter inicialmente derrotado a proposta de lei. O "problema da realidade" O que foi que a teoria do "mercado livre" subjacente à dádiva deixou fora da equação? Para começar, "o sistema monetário" revela-se ser um eufemismo para as fortunas de jogadores financeiros que utilizam matemática lixo (a fórmula dos derivativos de Merton-Scholes ) baseada em teoria económica lixo (abençoada com Prémios Nobel) para comprar, especular e mesmo fazer seguros de hipotecas lixo, títulos lixo e papel comercial lixo, bem como os derivativos baseados sobre os seus preços relativos. Assim, o que é deixado de fora em primeiro lugar é o pleno conhecimento do valor do que está a ser comprado e vendido. Os modelos mark-to-market deixam o preço superior aos banqueiros de investimento. Se existisse confiança e houvesse realmente honra entre estes ladrões, não seria necessário um salvamento do governo porque "o mercado" poderia limpar tudo. A ideologia do "mercado livre" assume que cada parte actuará no seu próprio interesse. Se isto é assim, por que deveriam governos estrangeiros acumular mais direitos em dólar sobre o Tesouro dos EUA, dos quais seus bancos centrais já possuem US$4 milhões de milhões? Quando dificilmente havia suficientes títulos do Tesouro para movimentar no momento em que os Estados Unidos incorriam em défices sem precedentes do orçamento federal, responsáveis estado-unidenses pressionavam estes bancos e fundos de riqueza soberanos a comprarem pacotes hipotecários que proporcionavam uma taxa de retorno mais alta. E pelo menos ao comprarem estes títulos, os governos estrangeiros não seriam acusados de financiar a guerra dos EUA no Iraque a que a maior parte dos seus eleitores se opunha. Mas os investidores cometeram um erro fatal ao acreditar nas encenações estado-unidenses do valor dos seus pacotes de hipotecas lixo. Esta confiança agora foi perdida, assim como tudo o mais desde a permissão deste salvamento para manter a "sinalização para o mercado" ("marking to market"). O Congresso pensou que os seus US$700 mil milhões distrairiam as atenções pelo menos até as eleições de 4 de Novembro. Mas em vão. Os mercados caíram 157 pontos na Sexta-feira da Dádiva, e continuaram a cair mais 800 pontos na segunda-feira, 6 de Outubro (para cerca de 9500) antes de oscilar 500 pontos rumo ao chão, só para cair ainda mais durante a sexta-feira. De modo que a dádiva fracassou na sua finalidade declarada de resgatar os investidores no mercado de acções (o "capitalismo popular") ou os seus fundos de pensão. Mas esta não era a finalidade real do salvamento. O tempo simplesmente veio esclarecer as coisas. Lançar bancos e seguradoras no jogo de soma zero dos derivativos, de modo a que os vencedores pudessem arrecadar as suas apostas e os perdedores pudessem vender seus maus investimentos para o Tesouro, é suposto re-inflacionar a pirâmide do crédito. A ideia é resolver o problema da dívida com ainda mais dívida para impelir os preços da habitação mais uma vez para níveis incomportáveis! Isto não é uma solução a longo prazo, mas daria aos iniciados tempo suficiente para arranjar um conserto e cair fora do jogo mais rapidamente, vender suas hipotecas lixos e títulos lixo ao proverbial "louco maior" – neste caso, o "maior louco de último recurso", o Tesouro dos EUA, enquanto ele puder ser dirigido pelo sr. Paulson ou, sob o sr. Obama, talvez o antigo responsável da Goldman-Sachs Robert Rubin. Os bancos querem "ganhar" a saída da sua posição de situação líquida negativa vendendo mais do seu produto – crédito – para aumentar os níveis de endividamento da economia e portanto receber mais pagamentos de juros. O problema é que a maior parte das famílias já está sobrecarregada de empréstimos. Elas já não têm rendimento discricionário a comprometer a fim de arcar com mais dívida. Sem o cancelamento das suas dívidas, não haverá novas concessões de empréstimos, e portanto nenhuma fonte de crédito e poder de compra para novos automóveis, electro-domésticos, bens e serviços em geral. A deflação da dívida está a ser imposta à economia "real". Só credores e especuladores devem ser mantidos intactos. Se antes desta dádiva já não havia rendimento disponível para a Segurança Social futura, para cuidados de saúde pública e para reparar a desgastada infraestrutura do país, pense quão vazio estará o armário agora que o governo comprometeu os recentes milhões de milhões em nova dívida sem ter cancelado um único centavo das dívidas hipotecárias podres que estavam a ser culpabilizadas como a causa da derrocada. Podemos ver para onde isto conduz. Os 1 por cento mais ricos da população ficarão na posse de ainda mais retornos da riqueza do que os actuais 57 por cento de que agora se apropriam. Em contraste com a inscrição na Estátua da Liberdade, "dê-me seus pobres ... anseiam respirar liberdade", o Fed – e agora o Tesouro, com a bênção do Congresso – está a tomar fundos públicos e a dá-los aos mais ricos investidores e iniciados da América. Este programa "Robin dos Bosques ao Inverso" está a ser efectuado sem condições, sem pedir aos bancos que cessem de pagar dividendos, salários exorbitantes e paraquedas dourados para os seus executivos, e sem a tomada de bancos com valor líquido negativo como acontece agora com muitos proprietários de casas. Ninguém está a falar num cancelamento de dívida ou numa moratória. O problema da hipoteca subprime poderia ter sido resolvido pelo cancelamento de apenas US$1 ou US$2 milhões de milhões do valor facial e das taxas de juros de empréstimos predatórios. Ao invés disso, os mais de US$10 milhões de milhões de prejuízos no sector financeiro das últimas semanas reflecte o fraudulento empacotamento e venda de hipotecas lixo da Wall Street a preços irrealistamente altos, utilizando matemática lixo para calcular derivativos lixo e vendê-los a investidores crédulos que acreditam que estas pretensas matemática, classificações de crédito e rendimento projectado tem alguma base na realidade. A característica admirável do crash de hoje é quantas firmas da Wall Street realmente acreditaram que a dança das cadeiras financeiras podia continuar antes de terem de parar de dançar e, na verdade, fugir da sala. Recordo-me de um dia na década de 1970 quando adverti Frank Zarb, do Lazard Freres, acerca da probabilidade de incumprimentos de dívidas do Terceiro Mundo, e sugeri que a firma deveria fazer uma análise das capacidades de pagamento. "Nós não temos de fazer nada disso", respondeu ele. "Já temos a lista do que eles devem aqui neste relatório do FMI". Era um grosso impresso do serviço da dívida escalonado de um país africano que logo se tornaria insolvente. Mas a mentalidade da Wall Street era aquela de Herbert Hoover na véspera da Grande Depressão. Uma dívida é uma dívida, e isso é tudo. A resposta é culpar a vítima, como se a irresponsabilidade residisse nos devedores e não nos credores. Não é oferecida qualquer reversão dos cortes fiscais de Bush a fim de reinflacionar a economia, nem qualquer movimento rumo a uma tributação mais progressiva dos especuladores da Wall Street que pagam apenas uma taxa de imposto de 15 por cento sobre "ganhos de capital" ao invés da taxa sobre o rendimento muito mais elevada e das taxas de retenção que pagam os assalariados. (a Wall Street tem o seu próprio programa de paraquedas dourado, então porque deveriam eles pagar Segurança Social para o resto da sociedade?) Não vai haver redução nos benefícios fiscais especiais para o imobiliário, cujo favoritismo fiscal conduziu à crise ao "congelar" mais rendimento do fisco para ser comprometido junto aos banqueiros hipotecários como juro. A Bolha da Economia é para ser re-inflacionada pela Fannie Mae, pelo Freddie Mac e pelos empréstimos do FHA a fim de ajudar compradores a cobrirem novamente os preços da habitação e dos escritórios comerciais a uma taxa que promete impor aos proprietários das casas a escravidão pela dívida. O défice orçamental elevar-se-á, sem qualquer coibição das fraudes de evasão fiscal por parte do UBS ou do KPMG. Ao invés de um cometa fiscal ou regulamentar que levasse estes dinossauros à extinção, o clima tornou-se mais favorável à proliferação dos mesmos. Nossa Era do Engano está a ser atada ainda mais duramente. A suspensão das regras mark-to-market com este salvamento do Congresso, a fim de confiar na "auto-regulação" da Wall Street, deveria ganhar o prémio do Oxímoro 2008 pois os investidores não têm qualquer indicação de quanto valem os activos financeiros. Não é de admirar que a concessão de empréstimos tenha secado, especialmente para os próprios bancos. Assim como as vítimas financeiras deixam de votar e de defender o seu próprio interesse, os predadores também acabam por perseguir estratégias de "mercado livre" auto-derrotantes. O curto-prazismo do sector financeiro é o maior inimigo da sua sobrevivência. Ele traduziu a sua riqueza num controle político fatal do seu clima legal, bloqueando [com o apoio explícito de Barack Obama, editores de Counter-Punch] esforços do Congresso para reescrever as opressivas leis das bancarrota cuja aprovação foi pressionada arduamente por bancos com cartões de crédito, [com a ajuda crucial de Joe Biden, o senador sénior da companhia de cartões de crédito HQ, do estado de Delaware, editores de Counter-Punch]. O resultado é a situação líquida negativa de hoje, colocando simplesmente a questão de quem vai arcar com o custo de fazer com que as dívidas fiquem novamente em conformidade com a capacidade da economia para pagar. Serão as instituições financeiras que patrocinaram a inflação de preços de activos e fizeram lobby pela desregulamentação dos prestamistas? Ou serão os devedores que pensavam estar a cavalgar a onda a fim de ganhar um almoço gratuito inflacionário? Ao invés de exigir aos credores que absorvam perdas sobre os excessos de dívidas além daquilo que pode ser pago, as dívidas estão a ser mantidas e não desescaladas para aquilo que a economia possa pagar. O governo está a manter intactos os credores e os especuladores com derivativos computorizados – e actuará como agente arrecadador da sobreacumulação de dívidas podres em que a economia incorreu. Hoje podemos ver a bolha alimentada pela divida da inflação dos preços dos activos – que Alan Greenspan trombeteou ser criação de riqueza real – como aquilo que ela realmente é: criação de crédito para cobrir preços de imóveis, acções e dívida empacotada. A formação de capital tangível foi deixada fora dos cálculos, como se as economias pós-industriais já não precisassem disso. Será que os eleitores verão a assimetria no fracasso do Congresso em oferecer alívio da dívida aos proprietários de casas quando os preços imobiliários mergulham bem abaixo do valor das hipotecas que possuem? Será que os seus membros serão culpabilizados por não reescreverem as leis da bancarrota do país a fim de libertar as famílias da escravidão pela dívida – e libertar os mercados habitacionais dos declínios de preços que resultam da actual proliferação de vendas de casas arrestadas? Quanto a isto, será que não haverá alívio para corporações que cortaram nos seus investimentos a fim de aplicar em títulos lixo e outras dívidas com que os especuladores da Wall Street e "accionistas activistas" as carregaram? Evidentemente não.
Michael Hudson
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