quarta-feira, abril 15, 2009

Os ciclos dos movimentos sociais

Os foros sociais mundiais, regionais e nacionais nasceram num período de ascensão das lutas sociais contra a primeira fase do modelo neoliberal, como forma de estabelecer relações não hierárquicas nem centralizadas entre os mais diversos movimentos do mundo. Em boa medida, os seus sucessos deveram-se a que, em contraste com os movimentos anti-sistémicos do período anterior, não reproduziram alguns dos seus erros e afirmaram a sua autonomia dos partidos de esquerda e dos governos progressistas, ainda que mantenham relações fluídas com eles.

Naturalmente, depois da ascensão veio o declive da actividade pública dos movimentos, que se confrontaram com cenários políticos bem mais complexos nos quais nem sempre acertaram em situar-se. Em pouco tempo, deixaram de ocupar, como na década anterior, um lugar central no tabuleiro político. A chegada aos governos de uma camada de forças e presidentes progressistas e de esquerda, graças à onda de mobilizações e resistências que deslegitimaram o modelo neoliberal, contribuiu para deslocá-los do lugar que tinham disputado na década de 1990. Como se apontou repetidamente no recente Foro Social Mundial em Belém, o papel dos movimentos foi e continuará a ser relevante do ponto de vista da mudança social, apesar de uma boa parte deles terem sido cooptados. No entanto, seria pouco responsável culpar disso apenas uma das partes, já que no seio dos movimentos as tendências para a subordinação substituíram, em não poucos casos, as tendências para a autonomia. Este deveria ser um dos eixos dos debates no período actual.

O maior problema que o continente atravessa está, no entanto, noutro lugar. Seria demasiado simplista assegurar que o neoliberalismo é coisa do passado pelo simples facto de o aparelho estatal ser gerido por forças que adoptam um discurso anti-neoliberal. O modelo inspirado no Consenso de Washington, apesar da profunda crise em curso e da erosão da sua credibilidade, está longe de ter desaparecido. Depois de uma primeira fase ancorada nas privatizações, na abertura das economias e num conjunto de desregulações que resultaram num debilitamento do Estado, foi crescendo, até se tornar hegemónica, uma segunda fase baseada na mineração a céu aberto, nos monocultivos de soja e de cana de açúcar destinados a biocombustíveis e no complexo florestação-celulose.

Este tipo de empreendimentos demonstra a hegemonia do capital financeiro no controle dos recursos e bens comuns, em tal magnitude que estão a redesenhar de cima abaixo as economias sul-americanas. Enquanto a primeira fase do modelo foi dirigida por governos conservadores como os de Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem, esta segunda fase é comandada pelos governos progressistas, o que induz à confusão numerosos analistas que se focam no discurso dos governantes. Mas os movimentos não se deixaram seduzir pelos argumentos que falam de um “pós-neoliberalismo”. O MST do Brasil assegura uma e outra vez que o agronegócio cresceu como nunca sob o governo de Lula, substituindo a agricultura familiar e expandindo a fronteira agrícola ao ponto de pôr em perigo a sobrevivência da Amazónia.

Em segundo lugar, é costume omitir as contradições existentes aqui e agora entre os governos progressistas e os movimentos sociais. Sob o discurso de Rafael Correa, desenrola-se no Equador uma duríssima batalha dos movimentos indígenas contra a mineração a céu aberto apoiada com entusiasmo pelos mesmos que falam de “socialismo do século XXI”. A greve e mobilização do dia 20 de Janeiro para impedir a aprovação da Lei Mineira saldou-se com dezenas de feridos e detidos no âmbito de uma repressão não muito diferente da que exerciam governos anteriores. A compacta defesa de Correa de uma actividade como a mineira, que é ponta de lança do neoliberalismo actual, coloca preto no branco os limites do progressismo da região.

A debilidade que os movimentos atravessam não permite concluir que sejam agora os governos a ponta de lança contra o neoliberalismo ou os fazedores da mudança social. É verdade que o progressismo reforçou o papel do Estado na economia, travou as privatizações quando já resta pouco para privatizar, promove políticas sociais mais ambiciosas e procura regular alguns aspectos da actividade económica. Mas de modo algum se pode dizer que se esteja a processar uma ruptura com o modelo, talvez com a excepção da Bolívia. Apesar destas mudanças, a “acumulação por despossessão”, que é o núcleo do neoliberalismo, continua intacta, como é demonstrado pela crescente concentração de riqueza e pela depredação do meio ambiente. Será impossível sair do modelo sem passar por uma profunda crise política, pois as forças interessadas em mantê-lo acumularam muito poder material e mediático e contam com amplos apoios sociais que abarcam camadas nada desprezáveis dos assalariados.

Nos períodos de recuo da mobilização social é costume tecer na sombra os laços das futuras acções que conformarão novos ciclos de luta. Assim aconteceu nos obscuros primeiros anos da década de 1990, e é muito provável que agora esteja a suceder algo similar. Quando a acção social voltar a retomar-se com todo o seu vigor, serão os governantes progressistas aqueles que deverão tomar o seu lugar de um lado ou outro das barricadas. Porque no próximo ciclo de lutas serão, em boa medida, o alvo da actividade dos movimentos sociais.
http://infoalternativa.org/spip.php?article771

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