quarta-feira, abril 15, 2009

Que vão todos embora

Ver as multidões na Islândia a baterem panelas e caçarolas até o seu governo cair recordou-me um canto popular em círculos anti-capitalistas no ano de 2002: «Vocês são a Enron. Nós somos a Argentina».

A sua mensagem era suficientemente simples. Vocês – políticos e presidentes executivos reunidos em alguma cimeira de comércio – são como os fraudulentos e negligentes executivos da Enron (é claro, não sabíamos metade da história). Nós – a turba do lado de fora – somos como o povo da Argentina que, no meio de uma crise económica assustadoramente semelhante à nossa, tomou as ruas a bater panelas e caçarolas. «Que se vayan todos!» («Que vão todos embora!»), gritavam eles, e forçaram a saída de uma sucessão de quatro presidentes em menos de três semanas. O que tornou único o levantamento da Argentina de 2001-2002 foi que não foi dirigido contra um partido político particular ou mesmo contra a corrupção em abstracto. O alvo era o modelo económico dominante – esta foi a primeira revolta nacional contra o capitalismo desregulamentado contemporâneo.

Demorou um bocado, mas da Islândia à Letónia, da Coreia do Sul à Grécia, o resto do mundo está finalmente a ter o seu momento Que se vayan todos!.

As estóicas matriarcas islandesas a amassarem as suas panelas enquanto os seus filhos pilham o frigorífico em busca de projécteis (ovos, com certeza, mas iogurte?) reflectem as tácticas que ganharam fama em Buenos Aires. O mesmo se passa com a raiva colectiva contra as elites que arruinaram um país outrora próspero e pensaram que podiam escapar impunes. Como disse Garden Jonsdottir, um empregado de escritório islandês de 36 anos: «Estou farto de tudo isto. Não confio no governo, não confio nos bancos, não confio nos partidos políticos e não confio no FMI. Tínhamos um bom país e eles arruinaram-no».

Outro reflexo: em Reykjavik, os manifestantes claramente não serão subornados por uma mera mudança de caras no topo (mesmo que a nova primeira-ministra seja lésbica). Eles querem ajuda para o povo, não apenas para os bancos; investigações criminais sobre a derrocada; e uma profunda reforma eleitoral.

Exigências semelhantes podem ser ouvidas por estes dias na Letónia, cuja economia se contraiu mais drasticamente do que qualquer país da União Europeia, e onde o governo cambaleia no limiar do abismo. Durante semanas a capital tem sido abalada por protestos, incluindo um tumulto com arremesso de pedras a 13 de Janeiro. Tal como na Islândia, os letões estão estarrecidos com a recusa dos seus líderes em assumir qualquer responsabilidade pela confusão. Questionado pela TV Bloomberg sobre o que provocou a crise, o ministro das Finanças da Letónia encolheu os ombros: «Nada de especial».

Mas os problemas da Letónia são realmente especiais: as mesmas políticas que permitiram ao “Tigre do Báltico” crescer a uma taxa de 12% em 2006 estão também a provocar uma contracção violenta prevista de 10% este ano: o dinheiro, liberto de todas as barreiras, foge tão rapidamente quanto entra, com bastante sendo desviado para bolsos políticos. (Não é coincidência que muitos dos lesados de hoje sejam os “milagres” de ontem: Irlanda, Estónia, Islândia, Letónia).

Algo mais argentinesco está no ar. Em 2001, os líderes da Argentina responderam à crise com um brutal pacote de austeridade prescrito pelo Fundo Monetário Internacional: 9 mil milhões de dólares de cortes nas despesas, grande parte dos quais atingindo a saúde e a educação. Isto demonstrou ser um erro fatal. Os sindicatos realizaram uma greve geral, os professores levaram as suas aulas para as ruas e os protestos nunca cessaram.

Esta mesma recusa dos de baixo em suportar o fardo da crise une muitos dos protestos de hoje. Na Letónia, grande parte da raiva popular concentrou-se nas medidas de austeridade do governo – despedimentos em massa, redução dos serviços sociais e cortes nos salários do sector público – tudo isso para ter direito a um empréstimo de emergência do FMI (não, nada mudou). Na Grécia, os motins de Dezembro seguiram-se ao alvejamento pela polícia de um jovem de 15 anos. Mas o que os manteve em andamento, com os agricultores tomando a dianteira aos estudantes, foi a fúria generalizada contra a resposta do governo à crise: os bancos obtiveram um resgate financeiro de 36 mil milhões de dólares, enquanto os trabalhadores tiveram as suas pensões cortadas e os agricultores não receberam quase nada. Apesar dos incómodos provocados pelos tractores a bloquearem as estradas, 78% dos gregos consideram que as reivindicações dos agricultores são razoáveis. Analogamente, em França, a recente greve geral – desencadeada em parte pelos planos do presidente Sarkozy de reduzir drasticamente o número de professores – inspirou o apoio de 70% da população.

Talvez a linha mais firme ligando esta reviravolta global seja a rejeição da lógica de «políticas extraordinárias» – a expressão cunhada pelo político polaco Leszek Balcerowicz para descrever como, numa crise, os políticos podem ignorar as regras legislativas e apressar “reformas” impopulares. Esse truque está a ficar desgastado, como descobriu recentemente o governo da Coreia do Sul. Em Dezembro, o partido governante tentou usar a crise para forçar um acordo altamente controverso de livre comércio com os Estados Unidos. Levando a política de porta fechada a novos extremos, os legisladores trancaram-se na Câmara de modo a poderem votar em privado, barricando a porta com mesas, cadeiras e sofás.

Os políticos da oposição não estavam para isso: com marretas e uma serra eléctrica, entraram à força e levaram a cabo uma ocupação de doze dias do Parlamento. A votação foi retardada, permitindo mais debate – uma vitória para uma nova espécie de “política extraordinária”.

Aqui no Canadá, a política é nitidamente menos adequada ao YouTube – mas ainda assim tem sido surpreendentemente movimentada. Em Outubro, o Partido Conservador ganhou as eleições nacionais com uma plataforma pouco ambiciosa. Seis semanas depois, o nosso primeiro-ministro conservador descobriu seu ideólogo íntimo, apresentando um projecto de orçamento que despojava os trabalhadores do sector público do direito à greve, cancelava o financiamento público para os partidos políticos e não continha qualquer estímulo económico. Os partidos da oposição responderam formando uma coligação histórica que só foi impedida de tomar o poder por uma suspensão abrupta do Parlamento. Os conservadores acabaram de voltar com um orçamento revisto: as políticas favoritas da direita desapareceram, e está embalado com estímulos económicos.

O padrão é claro: governos que respondam a uma crise criada pela ideologia do livre mercado com uma aceleração daquela mesma agenda desacreditada não sobreviverão para contar a história. Tal como os estudantes italianos gritaram nas ruas: «Não pagaremos pela vossa crise!»
Naomi Klein
http://infoalternativa.org/spip.php?article781

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