quinta-feira, abril 29, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

§ 3.º - Do terceiro grau da sociabilidade

Talvez o leitor não tenha esquecido o que eu disse no capítulo III sobre a divisão do trabalho e a especialidade das aptidões. Entre os homens é igual a soma dos talentos e capacidades e a sua natureza é similar: todos, tantos quantos somos, nascemos poetas, matemáticos, filósofos, artistas, artesãos, trabalhadores; mas não nascemos todos igualmente e as proporções são infinitas na sociedade, de um homem a outro, de uma faculdade a uma outra faculdade do mesmo homem. Esta variedade de grau nas mesmas faculdades, esta predominância de talento para certos trabalhos é, dissemos nós, o próprio fundamento da sociedade. A inteligência e o génio natural foram repartidos pela natureza com uma tal economia e uma providência tão grandes que o organismo social nunca tem que temer superabundância ou falta de talentos especiais, porque cada trabalhador, entregando-se à sua tarefa, pode sempre adquirir o grau necessário de instrução para gozar dos trabalhos e descobertas de todos os seus associados. Por esta precaução da natureza tão simples e sábia, o trabalhador não fica isolado na sua tarefa; está, pelo pensamento, em comunicação com os seus semelhantes antes de lhes estar unido pelo coração, de maneira que para ele o amor nasce da inteligência.
Não se passa o mesmo com as sociedades dos animais. Em cada espécie, as aptidões, aliás, muito limitadas, são iguais entre os indivíduos pelo número e até pela energia, quando não nascem do instinto: cada um sabe fazer o que fazem todos os outros e tão bem como os outros, procurar comida, escapar ao inimigo, cavar um buraco, construir um ninho, etc. Não estando nenhum livre e disponível não espera nem pede auxílio do vizinho, que, por sua vez, igualmente passa sem ele.
Os animais associados vivem uns ao lado dos outros sem nenhuma troca de pensamentos, sem conversação íntima: fazendo todos as mesmas coisas, não tendo nada a aprender ou a reter, vêem-se, sentem-se, estão em contacto, não se penetram. O homem faz com o homem uma troca perpétua de ideias e sentimentos, produtos e serviços.
Tudo o que aprende e executa na sociedade lhe é necessário; mas desta imensa quantidade de produtos e ideias aquilo que é dado a cada um para fazer e adquirir solzinho é semelhante a um átomo frente ao Sol. O homem não é homem senão pela sociedade, a qual, por sua vez, não se mantém senão pelo equilíbrio e harmonia das forças que a compõem.
A sociedade nos animais é de modo simples; no homem é de modo composto. O homem é sócio do homem pelo mesmo instinto que associa o animal ao animal; mas o homem está associado de modo diferente do animal: é essa diferença de associação que faz toda a diferença da moral.
Demonstrei, talvez demasiado longamente, pelo espírito das próprias leis que ditam a propriedade conto base do estado social e pela economia política, que a desigualdade das condições não pode justificar-se, nem pela anterioridade de ocupação nem pela superioridade de talento, de serviço, de indústria e de capacidade. Assim, se a igualdade das condições é uma consequência necessária do direito natural, da liberdade, das leis da produção, dos limites da natureza física e do próprio princípio de sociedade essa igualdade não detém a expansão do sentimento social no limite do direito e do ter; o espírito de benevolência e amor estende-se para além disso; e quando a economia faz a sua balança a alma começa a gozar da sua própria justiça e o coração espraia-se no infinito das suas afeições.
O sentimento social toma então um novo carácter, segundo as relações das pessoas: no forte, é o prazer da generosidade; entre iguais, é a amizade franca o cordial; no fraco, é a felicidade da admiração e do reconhecimento.
O homem superior pela força, talento ou coragem, sabe que se deve todo à sociedade, sem a qual não é nem pode nada; sabe que, tratando-o como o último dos seus membros, a sociedade está quite em relação a ele. Mas não saberia desconhecer ao mesmo tempo a excelência das suas faculdades; não pode escapar à consciência da sua força e grandeza: e é pela homenagem voluntária que então faz de si próprio à humanidade, é confessando-se o instrumento da natureza, que só deve ser glorificada e bendita em si; é, digo, por essa confissão simultânea do coração e do espírito, verdadeira adoração do grande Ser, que o homem se distingue, se eleva e atinge um grau de moralidade social, ao qual o animal não consegue chegar.

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