quarta-feira, junho 30, 2010

O NEGRO E O VERMELHO

CAPÍTULO VI

Posição do Problema Político. – Princípio de Solução

Se o leitor seguiu com alguma atenção a exposição precedente, a socie¬dade humana deve aparecer¬ lhe como uma criação fantástica, repleta de espantos e mistérios. Relembremos brevemente os seus diferentes termos:
a) A ordem política assenta sobre dois princípios conexos, opostos e irredutíveis: a Autoridade e a Liberdade.
b) Destes dois princípios, deduzem¬ se paralelamente dois regimes con¬trários: o regime absolutista ou autoritário e o regime liberal.
c) As formas destes dois regimes são tão diferentes entre si, incom-patí¬veis e inconciliáveis, como as suas naturezas; tínhamo¬ las definido em duas palavras: Indivisibilidade e Separação.
d) Ora, a razão indica que toda a teoria deve desenvolver¬ se segundo o seu princípio, toda a existência acontecer segundo a sua lei: a lógica é a condição da vida assim como do pensamento. Mas é justamente o con¬trário que se manifesta em política: nem a Autoridade nem a Liberdade podem constituir¬ se à parte, dar lugar a um sistema que seja exclusi¬vamente próprio a cada uma; longe disso, elas estão condenadas, dentro dos seus estabelecimentos respectivos, a fazerem¬ se perpétuos e mú¬tuos empréstimos.
e) A consequência é que a fidelidade aos princípios não existindo em política senão em ideal, a prática sendo obrigada a sofrer transacções de toda a espécie, o governo reduz¬ se, em última análise, apesar da melhor vontade e toda a virtude do mundo, a uma criação híbrida, equívoca, a uma promiscuidade de regimes que a lógica pura repudia, e diante da qual a boa fé recua. Nenhum governo escapa a esta contra¬dição.
f) Conclusão: Entrando o arbitrário fatalmente na política, a corrupção torna¬ se depressa a alma do poder, e a sociedade é arrastada, sem repouso nem tréguas, pela rampa sem fim das revoluções.
O mundo encontra¬ se aí. Não é nem o efeito de uma brincadeira satâ¬nica, nem de uma enfermidade da nossa natureza, nem de uma condenação da providência, nem de um capricho da sorte ou de uma paragem do Des¬tino: as coisas são assim, é tudo. Depende de nós tirar o melhor partido desta situação singular.
Consideremos que desde há mais de oito mil anos, – as recordações da história não passam para além, – todas as variedades de governo, todas as combinações políticas e sociais foram sucessivamente experimentadas, abandonadas, retomadas, modificadas, disfarçadas, esgotadas, e que o insucesso recompensou sempre o zelo dos reformadores e iludiu a espe¬rança dos povos. Sempre a bandeira da liberdade serviu para abrigar o despotismo; sempre as classes privilegiadas se rodearam, no próprio inte¬resse dos seus privilégios, de instituições liberais e igualitárias; sempre os partidos mentiram ao seu programa, e sempre a indiferença sucedendo à fé, a corrupção ao espírito cívico, os Estados sucumbiram devido ao de¬sen¬volvimento das noções sobre as quais se tinham fundado. As raças mais vigorosas e mais inteligentes cansaram¬ se nesta tarefa: a história está cheia da descrição das suas lutas. Por vezes uma série de triunfos criando ilusão sobre a força do Estado, fez acreditar numa constituição excelente, numa sabedoria de governação que não existiam. Mas, vinda a paz, os vícios do sistema saltaram aos olhos, e os povos repousaram na guerra civil as fadigas da guerra exterior. A humanidade tem ido assim de revolu¬ção em revolução: as nações mais célebres, as que tiveram a mais longa carreira, não sobreviveram senão dessa forma. De todos os governos conhecidos e praticados até hoje, não existe um que, se condenado a sub¬sistir pela sua virtude própria, durasse a vida de um homem. Coisa estra¬nha, os chefes de Estado e os seus ministros são de todos os homens aqueles que menos acreditam na duração do sistema que representam; até à chegada da ciência, é a fé das massas que mantém os governos. Os Gregos e os Romanos, que nos legaram as suas instituições com os seus exemplos, chegados ao momento mais interessante da sua evolução, afun¬daram¬ se no desespero; e a sociedade moderna parece chegada por sua vez à hora da angústia. Não acrediteis na palavra desses agitadores que gritam: Liberdade, Igualdade, Nacionalidade; eles não sabem nada: são mortos que têm a pretensão de ressuscitar os mortos. O público escuta¬ os um instante como faz com os bobos e os charlatães; depois vai¬ se, com a razão vazia e a consciência desolada.
Sinal certo de que a nossa dissolução está próxima e que uma nova era vai começar, a confusão da linguagem e das ideias chegou ao ponto em que qualquer um se pode proclamar à vontade republicano, monárquico, democrata, burguês, conservador, divisionista, liberal, e tudo isto à vez, sem temer que alguém o convença da mentira nem do erro. Os príncipes e os barões do primeiro Império tinham feito as suas provas de republica¬nismo intransigente. A burguesia de 1814, repleta de bens nacionais, a única coisa que compreendeu das instituições de 89, era liberal, mesmo revolucionária; 1830 refê¬ la conservadora; 1848 tornou¬a reaccionária, católica e mais que nunca monárquica. Actualmente são os republicanos de Fevereiro que servem a realeza de Vítor¬ Emanuel, enquanto os socia¬listas de Junho se declaram unitários. Antigos amigos de Ledru¬ Rollin juntam¬se ao Império como a verdadeira expressão revolucio¬nária e a forma mais paternalista de governo; outros, é verdade, tratam¬ nos como vendidos, mas reagem com furor contra o federalismo. É o lamaçal siste¬mático, a confusão organizada, a apostasia permanente, a traição universal.

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