quarta-feira, novembro 23, 2005

DIALÉCTICA IGUALDADE - LIBERDADE

Na divisa deste acontecimento fundador que foi aos seus olhos “a gloriosa Revolução Francesa”, Proudhon sempre colocou no mesmo plano a igualdade e a liberdade. Desconfia em compensação da fraternidade, substituindo-a por aquilo que hoje em dia chamamos solidariedade; mas essa temática não é o objecto de estudo deste trabalho.
Tomando os dois primeiros termos, um axioma do liberalismo político - nomeadamente em Tocqueville - coloca entre os dois uma contradição teórica insuperável. Egoisticamente agarrado à liberdade da qual se diz “propenso a adorar”, o autor da “Democracia na América” reconhece na tendência em direcção à igualdade uma característica fatal das sociedades pós-revolucionárias. Mas ele não a ama, nem tem medo. Para ele a igualdade não pode ser outra coisa que nivelamento, esmagamento das diferenças que são a garantia de todas as liberdades. Perigo que largamente está presente naquilo que observa à sua volta.
É também que, falando dos homens de 89 e dos seus sucessores, o aristocrático lúcido escreve: “Eles queriam ter sido livres para se fazerem iguais, e à medida que a igualdade se estabelecia mais com a ajuda da liberdade, tornava a liberdade mais difícil” (69). Repare-se que não fala de justiça nesta consideração. A dificuldade reside na localização da causa dum tal desvio.
Subjacente ao texto citado - e a tantos outros com a mesma ressonância - há a convicção que a igualdade, sendo contrária à natureza humana, a sua instauração e a sua manutenção não são susceptíveis de se realizar a não ser pela violência. Somente um poder implacável poderia reduzir o funcionamento benéfico das diversidades, de tal modo que nenhuma personalidade poderia emergir do conjunto, mas suprimindo do mesmo golpe estas personalidades. Claro que devemos esforçar-nos por reduzir as desigualdades excessivas. Em conclusão, não é possível suprimi-las sem terríveis perdas.
O ponto de vista de Proudhon (que conhece mal Tocqueville) é totalmente oposto. Também ele afirma, uma paixão pela liberdade e abomina “a uniformidade beata e estúpida” (70). É inútil insistir longamente neste ponto. Sabemos que toda a sua obra em germe se encontra aqui nesta memória, “O que é a Propriedade?” sendo a ideia directriz que a liberdade proclamada ficará um engodo enquanto que a igualdade não puder ser instaurada por uma mudança radical do direito de propriedade. O poder político, não terá nunca outra função que manter as desigualdades ditas “naturais” em proveito dos interesses em jogo. Encontramo-nos no âmago da questão.
Numa tal concepção, a igualdade e a liberdade não somente deixam de se opor como são rigorosamente correlativas. Nada pode ser dito livre se, oprimido ou opressor, não é igual aos outros. Inversamente, a igualdade imposta conduzindo a servitude, os cidadãos igualmente livres não saberiam ser livremente iguais. A partir dum primeiro escrito de aparência pouco subversiva - “A Celebração de Domingo” - Proudhon colocava este axioma: “A igualdade dos bens é uma condição da liberdade”(71). No texto seguinte, o explosivo “Primeira Memória”, retoma a fórmula refazendo-a:
“Sem liberdade não há igualdade”(72).
Este laço íntimo, indissociável, entre liberdade e igualdade constitui a essência da pessoa. Esta é una por definição e dispõe dum livre arbítrio. Por esta razão fundamental, a dignidade humana exige ser igualmente admitida e respeitada por todos. Quem nega reconhecer o homem no outro nega-o nele próprio.
Neste ponto e desde o início compreende-se o porquê da liberdade e da igualdade não se excluírem, como para além disso, se apoiarem mutuamente. Seres livres são necessariamente iguais, pois não saberíamos conceber degraus na liberdade. Correlativamente reconhecem-se iguais não por causa da identidade dos seus caracteres mas por uma livre afirmação. Esta exigência filosófica aplica-se a todos os domínios e em primeiro lugar à economia, condição da liberdade. Quem nada possui é escravo da sua miséria. Quem se arroga para além da parte dos bens indivisos da humanidade que lhe dizem respeito, não é livre, o privilégio ao qual se encontra amarrado privando-o da sua dignidade de homem.
A demonstração destas premissas exige uma definição da liberdade e uma preparação sobre a significação de igualdade.
Na visão proudhoniana o homem é um ser social que, no sentido forte, não existiria sem os outros. Nem a sociedade nem os indivíduos são primeiros: eles são co-extensivos. A prova está em que os bens necessários à sobrevivência assim como à manifestação de cada um, inacessíveis aos esforços isolados, resultam duma força colectiva de que, antes de Marx, Proudhon estabeleceu a existência. Basta lembrar a parábola do obelisco, levantado num dia por duzentos granadeiros, enquanto que o trabalho dum único homem em duzentos dias foi incapaz de, conseguir o feito.(Primeira Memória, p. 215)
Deste modo a liberdade e a igualdade, fundadas na qualidade de valores morais, impõem-se igualmente como uma necessidade da economia. O poder de dominar as coisas é o único capaz de abolir o do homem sobre o homem. Entretanto não saberia ser exercido a não ser vulgarmente, o que tem por efeito que nenhum de nós pode aceder à dignidade de homens fora da sociedade. O trabalho - que nos torna mestres da natureza - sendo a condição da liberdade, esta por sua vez deve ser reconhecida como idêntica em nós. Dito de outro modo a nossa própria libertação exige a cooperação de cada um e reciproca-mente. No limite, ela é o facto da humanidade inteira.
Segue-se que, o que nos é devido também o devemos. “A liberdade é o balançar dos direitos e dos deveres: tornar um homem livre é nivelá-lo com os outros, quer dizer, colocá-lo ao nível de todos”, (73) é afirmado na “Primeira Memória”. “Balançar” sempre teve em Proudhon o sentido de “equilibrar” não pela equivalência mas na complementaridade. O grande tratado “Da Justiça” desenvolverá este conceito da reciprocidade dos valores cerca de vinte anos mais tarde, esforçando-se por tirar todas as consequências.
A capacidade unificadora da liberdade não deve, portanto, dissimular que ela é também um formidável poder de contradição, logo de conflito. Ela “não reconhece nem lei, nem razão, nem autoridade, nem fim, nem limite, nem princípio, nem causa à excepção dela. (...). Ela é o contraditor eterno, que se mete através de todo o pensamento e de toda a força que contribuiria a dominá-lo; o indomável insurgido, que só tem fé nele próprio, respeito e estima por ele próprio, que não suporta mesmo a ideia de Deus do mesmo modo que reconhece em Deus a sua própria antítese, sempre ele”.(74). Concepção dialéctica, segundo a qual a contradição está inscrita no real. “A antinomia e a força de colectividade, precisa Proudhon, são os dois princípios sobre os quais repousa toda a teoria da liberdade” (75). Esta chave dá acesso ao centro do seu pensamento.
Assim, apesar da acentuação tenha sido posta primeiramente - com um atrevimento provocador - sobre a igualdade, a teoria da liberdade está em primeiro lugar: “A ordem social não é um organismo, um sistema, é o pacto da liberdade, a sua equação de pessoa a pessoa, o que comporta (...) a maior variedade possível de combinações, a maior independência dos indivíduos e dos grupos” (76). O fosso que separa Proudhon do liberalismo não é tanto que ele dê menos confiança à liberdade mas esta não é definida por ele como valor privado, opondo o indivíduo à sociedade. O estado social humano é liberdade, ou nada é. Daí a afirmação da anarquia, noção englobando a autonomia e a auto-organização.
Nesta perspectiva, a igualdade aparece ainda melhor como o corolário indispensável da liberdade, o valor mais singular, o mais pessoal e por isso mesmo o mais universal. Não somente a igualdade intrínseca das pessoas não exclui em nada as suas disparidades, mas estas são constitutivas da própria pessoa. O homem é, por definição, o ser que mais se distingue, que não existe a não ser na medida em que é único. Esta infinita diversidade dos seres livres fá-los iguais entre eles, não a despeito das suas diferenças mas por causa delas.
Isto confirma que a igualdade não é em nada identidade. Ela é equivalência, igualdade de valor. Afirmar: todo o homem vale tanto como um outro, não é de modo algum dizer que eles são o mesmo. No fundo insatisfeito com a palavra “igualdade” - bandeira agitada contra aqueles que a recusavam - Proudhon retoma, para melhor a aprofundar, esta noção de balanço da qual dissemos que ela exprime a relação necessária entre dois pólos, por sua vez de oposição e de complementa-ridade. “Igualdade, palavra inexacta, escreve para ele próprio; é o equilíbrio”(77). Ainda seria necessário acrescentar que não se trata de modo algum de um equilíbrio estático, inerte, mas sempre instável e por consequência sempre em movimento.
Esta igualdade de direito - que exige todavia uma progressiva egualização das condições materiais - deve então reger o conjunto das relações no seio duma sociedade de homens livres e, em primeiro lugar, a troca dos produtos do trabalho. Aí ainda não há nunca similaridade mas “balanço”, naquela infinita variedade de desejos e dos bens postos em equilíbrio, ofertas e pedidos em aparência heterogénios.
Porque são livres, os indivíduos fazem comércio entre eles como mais lhes agradar e do que lhes agradar, com a única condição de ter a operação por equitativa. O que exige que nenhum constrangimento desigual venha deturpá-la. Tal é a definição de troca dada desde a primeira memória: “Quem diz comércio diz troca de valores iguais; porque se os valores não são iguais e o contratante lesado se apercebe disso não consentirá a troca e não se fará comércio. O comércio só existe entre homens livres: por toda a parte pode haver transacção conseguida pela violência ou pela fraude, mas não há comércio. (...) Assim, em qualquer troca, há a obrigação moral de nenhum dos contratantes ganhar algo em detrimento do outro; quer dizer que o comércio, para ser legítimo e verdadeiro, deve estar isento de toda a desigualdade; é a primeira condição do comércio. A segunda condição é que seja voluntário, quer dizer, que as partes transijam com liberdade...”(78)
Os dois grossos volumes das “Contradições Éconómicas” desenvolverão e argumentarão a teoria do mutualismo, inteiramente fundada sobre esta análise inicial.
Seja qual for o ângulo sob o qual se encare as coisas, e pela ponta que as tomemos, liberdade e igualdade aparecem sempre em Proudhon como um casal, em que os termos não podem ser pensados a não ser um em relação ao outro. Bem longe de se excluírem - assim acreditava verificar o pessimismo dos liberais - são as duas faces duma mesma realidade. Mais precisamente, já o dissemos, é a realidade que é concebida dialecticamente, como complementaridade dos contrários.
Dialéctica a dois tempos que exclui no seu princípio qualquer síntese. Em oposição com o hegelianismo, e após ter longamente hesitado, o autor das Contradições teve o mérito de descobrir que toda a resolução final num terceiro termo acaba por suprimir a contradição, assim como toda a liberdade e toda a igualdade verdadeiras. A síntese conduz infalivelmente “ao absolutismo governamental, à omnipotência do Estado, à subalternização do indivíduo”. (79) Dito de outro modo à ditadura totalitária.
Nesta concepção liberdade e igualdade contradizem-se, num certo sentido, e não é para admirar que a experiência a faça parecer. Mas esta contradição é necessária. Se suprimimos um dos dois termos, o outro desaparece. Até ao ponto que Proudhon não hesita em colocar esta equação: “A liberdade é igual-dade”(80). Um pouco mais longe, vai até à invocação lírica do Deus que não existe aos seus olhos como se fosse dual: “Ó Deus de liberdade! Deus de igualdade!”(81) Surpreendente visão, já encontrada, que funda aquilo que alguns não recearam chamar a sua “teologia”.
Assim a exigência de liberdade que conduz à não submissão a quem quer que seja, e a da igualdade que nos une a todos, estão entre elas em tensão perpétua. Esta é a fonte própria da liberdade, o fundamento da igualdade. O “contrário” (no sentido lógico) da liberdade, é a servidão; e o contrário da igualdade a exploração do homem pelo homem. Uma e outra são, ao mesmo título, negação da unidade à qual cada um aspira nas suas relações com os outros: por sua vez ligado a estes pois que eles nos são homólogos e opomo-nos a eles porque são diferentes de nós.
“O homem mais livre, diz Proudhon, é aquele que tem mais relações com os seus semelhantes” .(82)
Proposição que poderia ser inscrita em epígrafo a toda a sua obra. Se os homens não fossem iguais ou renunciassem a combater para fazer prevalecer esta igualdade, seguir-se-ia que alguns nasceriam escravos e outros mestres para sempre. Quer dizer que não haveria género humano.
A expressão desta dualidade “liberdade-igualdade”, é a justiça, “produto misto do instinto social e da reflexão” para nos referirmos sempre de preferência às intuições seminais da “Primeira Memória” (83). A ideia de justiça é por sua vez aspiração e realidade, afirmação da unicidade da espécie humana e da irredutível individualidade de cada um dos seus componentes. Segundo uma das definições, ou sobretudo uma das aproximações, que Proudhon tentará no seu grande tratado sobre o sujeito, é “a faculdade de sentir e de afirmar a nossa dignidade, por conseguinte da querer e da defender, tão bem na pessoa de outrem como na nossa”. (84) Sobrepondo, ultrapassando a realidade do direito, a Justiça transcende a desigualdade de natureza pela afirmação duma especificidade espiritual que se impõe à natureza. Por aí ela é inesgotável irrupção de liberdade no mundo. Esta emergência contínua de homem, medida de tudo, não receia a contradição: ela é contradição. Procura dum equilíbrio, claro, mas sempre inacabado; e também ultra-passagem de todo o equilíbrio. Tensão criadora entre dois pôlos que se repelem do mesmo modo que se atraem.
Como sabemos a realização política deste duplo movimento de convergência e de particularismo entre as pessoas e os grupos deve fazer-se para Proudhon - No último estádio do seu pensamento que o resume por inteiro - pelo federalismo. Podemos defini-lo brevemente como um edifício complexo de sociedades sobrepostas mas não hierarquizadas, no seio do qual a igualdade dos membros garante a liberdade do conjunto. Projecto onde se conjuga a dialéctica das ideias e o diálogo das pessoas, a diversidade infinita da espécie e a sua fundamental unidade.
Tudo o que esta obra afirma, por consequência, é que a igualdade, não mais que a liberdade, não são dadas, mas, sem cessar, a conquistar. A vida humana é um combate que não se pode dissociar do risco e onde ninguém - mesmo que seja um Deus -age em nosso lugar. A liberdade remete a cada um de nós um destino único. Sendo igual entre todos, a responsabilidade que daí resulta une-nos uns aos outros, sem os quais seríamos aliás incapazes de o assumir. É necessário sempre agarrar as duas extremidades da corrente.
Pesado esforço por um êxito duvidoso e feridas asseguradas. Pelo menos, vencedores ou vencidos encontrarão a única honra que vale a pena: a de se ser respeitado no olhar do outro.

NOTAS


69- “Ils avaient voulu être libres pour se faire égaux, et à mesure que l`égalité s`établissait davantage à l`aide de la liberté, elle leur rendait la liberté plus difficile” (Démocratie, II, 320).
70- “l`uniformité béate et stupide” (Prem. Mém.,325).
71- “L`égalité des biens est une condition de la liberté” (Célebr. Dim., 61).
72- “Pas de liberté sans égalité” (Prem. Mém., 228)
73- “Premier Mémoire” (342, em nota)
“La liberté est la balance des droits et des devoirs: rendre un homme libre c`est le balancer avec les autres, c`est-à-dire le mettre à leur niveau”
74- (De la Justice, III, 424).
“ne reconnaît ni loi, ni raison, ni autorité, ni fin, ni limite, ni principe, ni cause hormis elle.(...).Elle est le contradicteuréternel, qui se met en travers de toute pensée et de toute force qui tendrait à la dominer; l`indomptable insurgé , qui n`a de foi qu`en soi, de respect et d`estime que pour soi, qui ne supporte même l`idée de Dieu qu`autant qu`il reconnaît en Dieu sa propre antithèse, toujours soi.”
75- “L`antinomie et la force de collectivité, sont les deux principes sur lesquels repose toute la théorie de la liberté” (ibid, noteJ, 455-456).
76- “L`ordre social n`est point un organisme, un système, c`est le pacte de la liberté, son équation de personne à personne, ce qui comporte (...) la plus grande variété possible de combinaisons, la plus grande indépendance des individus et des groupes” (ibid. 429).
77- “Egalité, mot inexact, c`est équilibre” (Carnets, III, 394).
78- “Qui dit commerce dit échange de valeurs égales, car si les valeurs ne sont point égales, et que le contractant lésé s`en aperçoive, il ne consentira pas à l`échange, et il ne fera point de commerce.Le commerce n`existe qu`entre hommes libres: partout ailleurs il peut y avoir transaction accomplie avec violence ou fraude, il n`y a point de commerce. (...)Ainsi, dans tout ´change, il y a obligation morale à ce que l`un des contractants ne gagne rien au détriment de l`autre: c`est-à-dire que, pour être légitime et vrai, le commerce doit être exempt de toute inégalité; c`est la première condition du commerce, la seconde condition est qu`il soit volontaire, c`est-à-dire que les parties transigent avec liberté...” (Prem. Mém., 228).
79- “à l`absolutisme gouvernemental, à l`omnipotence de l`Etat, à la subalternisation de l`individu” (Prem. Mém., 107).
80- “La liberté est égalité” (Prem. Mém., 343).
81-“Ô Dieu de liberté! Dieu d`égalité!” (ibid, 347).
82- “L`homme le plus libre, diz Proudhon, est celui qui a le plus de relations aves ses semblables” (Confessions, 249).
83- “produit mixte de l`instinct social et de la réflexion” (Prem. Mém., 312)
84- “la faculté de sentir et d`affirmer notre dignité, par conséquente de la vouloir et de la défendre, aussi bien en la personne d`autrui qu`en notre propre personne” (Justice, I, 413)

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