segunda-feira, novembro 21, 2005

FAZER JUSTIÇA

Sorel, ao reler Proudhon no fim da sua vida em vista de uma obra que não vive o dia, teve a atenção atraída pelos textos sobre a justiça penal, os justiceiros e os tribunais impetuosos. Lá, ele via um signo do seu génio: “Como todos os homens de génio Proudhon permanece até à sua morte muito jovem de coração”. Isto não é uma utopia da qual Proudhon se afasta pois ele pode observar no meio dos operários cortadores parisienses a forma com a qual eles puniam os espiões. Sorel considerava que em 1861 ele exigia à justiça suplementar para punir não tanto os actos criminais como os actos ignominosos. Ele pensava poder prolongar estas ideias não saídas de Proudhon: os sindicatos deveriam poder fazer funcionar esta justiça suplementar aos olhos dos renegados; e os representantes autênticos dos operários deveriam poder notar de infância, não somente os traidores, mas todos aqueles que desonram a classe operária.
Proudhon, na Justiça, faz efectivamente citação de um sonho de juventude onde ele fazia questão em fazer justiça de tudo o que a justiça dos homens não reprime por impotência, negligência ou cumplicidade. Sorel notava que ele só chegava a uma concepção também satisfatória através de outras ideias que ele tinha para aperfeiçoar. Ele está pois interessado em vêr como Proudhon evoluiu sobre este tema na sua obra de maturidade sobre a Justiça.

Ideal de Juventude de Proudhon: os “justiceiros”.

É o próprio Proudhon que confessa, numa nota acrescentada à segunda edição da Justiça, ter criado este ideal de homens carregados em fazer justiça. Ele não actua numa reconstituição ex-post ou para as necessidades da demonstração, mas sim de um compromisso que foi sério como testemunham os traços mais antigos. Não se saberia lá ver mais o fruto duma imaginação adolescente inflamada. Proudhon, disse pois que a ideia veio-lhe quando adolescente, mas ela tem ainda trinta e tal anos. É uma ideia que ele confia aos amigos e da qual ele mesmo nos diz que fez teoria numa idade desde já madura.
Nesta famosa página do álbum onde ele exalta a amizade, existe precisamente a questão deste cuidado de justiceiro. Eliminando todas as outras formas de felicidade que o homem pode conhecer, compreendida a amizade, Proudhon concluía na verdadeira “obra sagrada” que eles deviam realizar: “Os jovens homens generosos, batalhão sagrado dos amigos, uma vocação gloriosa é a nossa: nós estamos predestinados para a extirpação do vício e da tirania. Falharemos na nossa missão?” Não se saberia aí ver uma exaltação passageira provocada pela amizade e exprimida sob a forma de reminiscências antigas. A ideia persegue Proudhon ainda por muito tempo. Ele faz a confissão ao seu amigo Ackermann logo que ele conta o seu processo aos Assisses du Doubs seguido da terceira memória sobre a propriedade. Ele explicita o sentido da passagem onde ele proferia as ameaças contra os proprietários, explicação que ele não tinha querido dar ao tribunal já que esta frase fazia parte da incriminação. Ele tinha-los ameaçado de alguma coisa mais terrível e de mais eficaz que o assassinato, a pilhagem, a insurreição, o incêndio, … Proudhon explica então ao seu amigo: “Neste momento, creio-me perdido. Enfraquerce-ia em conjunturas sobre o segredo fatal; era um bom texto para fazer de mim um génio infernal. Eu posso dizer-vos que eu tinha em vista a reorganização dos cursos impetuosos ou tribunais secretos da Alemanha, na qual eu fiz uma teoria apropriada ao nosso tempo”. Não parece que existam traços escritos conhecidos da adaptação moderna que Proudhon diz ter feito desta justiça medieval alemã. A Sainte Vehme consistia, historicamente, em tribunais secretos formados pela burguesia das vilas alemãs desde o século XII para disfarçar a insuficiência dos tribunais principescos ou imperiais. Ele actuava em confrarias secretas; eles julgavam a partir de uma lei, mas esta permanecia também secreta. Estes tribunais só conheciam uma sanção, a pena de morte imediata pelo enforcamento. É pois uma justiça temível com a qual sonhava Proudhon mesmo que não se conhecesse sobre o quê traziam as adaptações de que ele falava. O que o deve seduzir, mais que a sanção, é a eficácia desta confraria secreta, sobretudo se ela se compõe de amigos, de julgamentos infalíveis e fiéis à sua missão de justiceiros.
Na Justiça, Proudhon volta a esta lembrança que ele diz estar ainda muito viva. Ele está ligado a uma violenta indignação moral diante “de algum destes delitos que crêem em vingança”. É aí que ele recorda o seu projecto de justiceiros, inspirado na Vehme: “… não existem sociedades de vingadores para a repressão de todas estas infâmias. Eu teria desejado ir, e teria ido, se tivesse encontrado um chefe, dos associados, dos irmãos pela exterminação dos traidores, dos exploradores e dos hipócritas. Tanto zelo da justiça nesta idade feliz dos sentimentos cavalheirescos devora-me”. Ele espanta-se que a multiplicação, desde a revolução das cabanas maçónicas, sociedades do Templo, da Carbonaria, dos Bons-Primos, dos Companheiros do Dever ou ainda das sociedades de socorro mútuo, de beneficiência, de estímulo, não chegaria a um melhoramento da sociedade. Ele via, efectivamente, “um trabalho ininterrupto de aperfeiçoamento moral”, todos estes agrupamentos tendo directa ou indirectamente como objectivo fazer progredir a Justiça e a Liberdade.

O tema dos “Justiceiros” na Justiça.

É num contexto muito preciso que Proudhon evoca esta lembrança de juventude. Ele fá-lo no caderno do 12º e último estudo do seu livro, intitulado “Da sanção moral”. O essencial da referência encontra-se nas “notas de esclarecimentos” acrescentadas à 1ª edição; estes ainda são mais reveladores do contexto: nota H, “Da sanção numa outra vida: refutação de um argumento dos espiritualistas”; nota I, “Do regicídio”; nota J, “Das abolições: se a minoria tem o direito de julgar a maioria?”. O contexto geral desta evocação é aquele da sanção das obras do além. Mesmo que ele actue na sanção moral, o terreno sobre o qual se situa Proudhon é largamente político. Ele actua em mostrar ao Cardial Matthieu que se pode fundir uma lei moral válida e efectiva na sociedade sem ter que fazer apelo à sanção religiosa.

Este contexto permite situar a questão fundamental à qual Proudhon tenta responder apesar de evocar de novo a temática dos justiceiros. É necessário partir da fórmula que cita Proudhon para a contestar: “O crime triunfa e permanece impune, nós repisamos sem parar estes moralistas além-túmulos; a virtude é infeliz”. A questão é pois, aquela do mal sob a forma política e social. “De quem é a culpa se o vício está impune, a virtude desconhecida e afligida?” interroga Proudhon. A interrogação implícita é aquela mesma que Robespierre evoca sob o Terror. Que sociedade humana pode subsistir se ela não é capaz de punir todos os crimes e de recompensar todas as dedicações a começar pela abnegação suprema aos olhos da pátria? Como obter dos cidadãos o empenho supremo se a abnegação deve permanecer totalmente obscura e desconhecida enquanto o crime ou o egoísmo subsistiriam prósperos e nunca punidos. Robespierre ressentiu este relativismo moral como destruidor de toda a vida social. O ateu que não crê no além deveria logicamente considerar que este que não apareceu aos outros homens, a bem ou a mal, não existe; o crime oculto como a abnegação obscura não teriam nenhuma existência social e histórica e os homens só deveriam empenhar-se em agir para que haja possibilidades plausíveis de aparecer aos outros. É todo o sentido político e social do culto do ser supremo defendido o 18 floreal, 2º ano e ainda nessa altura do seu último discurso do 8 termidor onde Robespierre lança uma última vez esta confissão em todo o ponto de vista dramático : “ Os bons e os maus desaparecem da terra, mas existem diferentes conflitos … Não, Chaumette, não a morte não é um sono eterno. “Quando Robespierre ataca Chaumette sobre o seu ateísmo, ele inquieta-se explicitamente em saber o que, na sociedade, obrigaria a não fazer o mal (quando ele não vê ninguém), ou em incitar a fazer boas acções (mesmo que não vistas e, por isso, não recompensadas). Esta sociedade ateia não é uma sociedade do puro parecer onde a única coisa que conta é o que mostrar, não obstante a verdade ou a realidade autêntica. É uma sociedade onde o único parecer conta, em detrimento duma realidade justa e verdadeira que seria assim, definitivamente, desconhecida. Robespierre sobre um plano mais político reencontra a experiência que pertubará Rousseau, aquela do contraste entre ser - inocente e parecer culpado. O ser supremo é, pois, aquele que poderá atestar, ver recompensar ou punir as acções que escaparam à vigilância do poder político. Renan, não poderia explicar a abnegação, totalmente obscura e destinada em permanecer desconhecida dos outros homens, dos couraceiros de Reichshoffen do que da existência de um Deus retribuidor e melhor ainda, atestador da existência desta abnegação que permanecia desconhecida dos homens e da história e cuja existência permaneceria de alguma forma nos limbos.
Ora, Proudhon suspende precisamente neste texto a questão da imortalidade e, pois, a duma retribuição ou dum atestado que devolveria plenamente a justiça no outro mundo. Ela não lhe levanta mais do que a psicologia e a metafísica. Ele vai pois, começar por responder sem o socorro da imortalidade ao problema da virtude não recompensada e da maldade triunfante e nunca punida e da retribuição dos méritos ou das faltas permanecidas desconhecidas dos homens e da justiça terrestre. Ele fá-lo de um ponto de vista ateu, sobre o plano metadológico, pelo menos. Ele entende resolver a questão sobre o plano político e social sem fazer apelo ao Deus retribuidor de Robespierre e das Igrejas. É sintomático que Proudhon evoca o revolucionário que acreditava na imanência da Justiça e na moralidade própria do homem. É todo o sentido da demonstração do capítulo II deste estudo que mostra que “a sanção da Justiça tem o seu centro na consciência”. Proudhon define a sanção moral como “o movimento da consciência, jovial quando nos faz bem, triste e má quando nos torna culpados”.
É, pois, neste preciso momento que ele se recorda deste sonho de juventude: um pequeno grupo secreto de justiceiros. Ele contradiz efectivamente: “A justiça é nula, como o patrotismo se ela não está armada … Esta impunidade do crime que os denuncia com tanta amargura é o crime dos que vós chamastes de justos: é o vosso”. A solução dos “justiceiros” é, então, aquela da qual Proudhon se lembra para escapar a uma dupla perplexidade ou a traição da justiça oficial. Ele não quer encarar a retribuição no além; mas ele não quer suportar a ausência de toda a justiça se se afasta a hipótese de um Deus que sonde os rins e os corações e retribua cada um segundo a sua verdade. Para o dizer como Kojève que adoptava esta análise ateia, o que não foi visto pelos homens não existe. Assim, o crime não punido nem reconhecido pelos homens não teria existência e tem um forte castigo. O escândalo é aqui redobrado onde o sentimento subjectivo da injustiça não encontra nenhuma confirmação da sua realidade objectiva e da sua existência na percepção e no reconhecimento dos outros. A questão para Proudhon é em saber se se pode obter justiça neste mundo no momento em que esta escapa às instituições normais. Estes justiceiros secretos, não terão eles como função substituir o Deus retribuidor e de completar a mesma missão sobre esta terra?

Quem são os “justiceiros”? Proudhon encara três aspectos sob os quais os meios de “fazer justiça” podem ser, efectivamente, encarados.
Explorando o que poderia completar esta missão, ele apresenta, primeiramente, o modelo de Sainte-Vehme. A sua interrogação encontra uma mesma resposta, a do pequeno grupo organizado ou “sociedade de vingadores”, mas com tonalidades diferentes. A primeira é mais violenta: como se viu, ele estava prestes a andar para a exterminação dos traidores, dos exploradores e dos hipócritas. Sobre um modo muito mais moderado, ele interroga-se ainda um pouco mais: “Porquê, ao redor da Justiça oficial, acusada do enorme trabalho, os cidadãos não estão organizados em júris de honra, com o direito de perseguir, julgar e executar os seus julgamentos?” A fórmula moderada é, pois, aquela do júri de honra, mas ele não exclui a fórmula muito mais severa e rude do justiceiro no sentido clássico do termo. A Justiça que encara aqui Proudhon tem um aspecto essencialmente moral. Ele não actua somente em fazer respeitar a lei, a justiça oficial estaria enfraquecida em obter, mas muito mais em proceder a uma purificação e até a “uma explosão da natureza humana”. É necessário também lembrar-se que todo o capítulo é intitulado “Da sanção moral”. Ele fala, aliás, de associações de virtude: “… ele não fará uma enorme energia para purificar tudo, a humanidade dos larápios, dos burlões, dos ladrões, dos devassos, dos parasitas, dos malfeitores e corruptores de toda a espécie que o envenenam e colocam, sem parar, em perigo a existência do homem honesto, do trabalhoso pai de família e das liberdades públicas”. Assim, na falta da nação espontaneamente formada no decurso da justiça, existiriam, pelo menos, estes “zeladores do direito” que são alguns em “coligar-se contra a invasão do crime impunido, a inaptidão do legislador, a tolerância do juíz, a prevaricação do poder”. Proudhon tinha tido a ideia de um pequeno grupo de homens justos e sociais em fazer triunfar já e imediatamente, a justiça quando todo o resto da sociedade é corrompido, indolente ou indiferente.
Quanto ao regicídio ou tirania, ele constitui uma segunda maneira de “fazer justiça” sobre um terreno mais propriamente político. Pode ser o facto de um homem ou dum grupo de homens. Não se pode deixar de lembrar que na antiguidade o tema estava ligado ao da amizade, por exemplo, na figura perpetuada dos tiranos, Harmodios e Aristogiton, assassinos do tirano Hipparque.
Quando Proudhon se pergunta, enfim, se a minoria tem o direito de julgar a maioria, a questão, apesar das aparências, diz respeito ainda ao tema dos “justiceiros”. O número não faz a razão. Ora, os “justiceiros” constituem precisamente este pequeno grupo decidido a resistir à injustiça ambiente e massiva. Proudhon reencontra aqui a grande objecção dos filósofos e dos liberais contra a democracia: existe a desigualdade das luzes, dos sentimentos de justiça e de honra nas diferentes classes da sociedade. Está-se, pois, destinado a reconhecer que a razão tem mais hipótese de se encontrar numa minoria de elite do que na vulgar multidão. Assim mesmo em democracia, Proudhon faz a apologia da minoria, sobretudo, talvez, no que diz respeito ao sentido de justiça. Ele parece ter sido conduzido a este julgamento sofrivelmente contraditório com o seu sentido de igualdade pela atenção histórica: “Em resultado, as grandes corrupções sociais são o crime das maiorias sociais: teremos nós feito outra coisa a propósito do tiranicida, do que constactar de século em século esta triste verdade”. A isso acrescenta-se o facto que Proudhon se interroga a partir de uma violenta indignação contra a atitude dominante da sua época. A apologia da pequena minoria estava inscrita desde a partida do questionário inicial. A indignação moral é quase, por natureza, elitista já que, como o diz Proudhon, ela actua para se erguer contra “a inércia do mundo” a quem a injustiça está indiferente, provida para que não sofra mais.
Isto é a tal ponto verdade que esta minoria pode mesmo reduzir-se a um só homem. Efectivamente, cada um está apto para julgar sozinho o justo e o injusto: “… todo o homem, possuidor do seu fundo de justiça, nasce justiceiro; … está investido pela sua consciência anteriormente à existência convencional da sociedade, do direito de julgar e, em casos de necessidade, castigar os culpados”. Proudhon constacta que a minoria, ao separar-se da maioria, reencontra a plenitude dos seus direitos, cujo mais temível é o direito da Justiça. A questão do tiranicida reaparece. Proudhon dá exemplos bíblicos destes “justiceiros” que serviram contra a massa injusta, indiferente ou corrompida: Moisés, assistido por uma minoria imperceptível, puniu Israel pagão; Élie decapitou os padres de Baal.
Os “justiceiros” serão, portanto, a solução que convém à indignação moral de Proudhon?

O abandono do mito dos “justiceiros”

Proudhon coloca em situação critica: “Desde à trinta anos… o que faltou à sociedade são os justiceiros: os que os governos designam para fazer o serviço, funcionários dos despachos, trabalhadores, não passam de simulacros”.
Este revés tem, primeiramente, a dificuldade em constituir este pequeno grupo de justiceiros: “Não, não há em França, nem em nenhum outro país, um homem por 340.000 capaz de dedicar-se inteiramente à Justiça, ao ponto de alistar-se numa sociedade secreta para a conservação do direito, o respeito pela verdade e pela moral, a repressão de todas as desigualdades políticas, civis, judiciárias, literárias, etc”. Supondo que se poderia encontrar cem homens virtuosíssimos, não existiria nenhuma confiança entre si, não acreditariam na santidade da sua empresa e ousariam menos ainda executar a sua sentença. “Vós não chegarieís nunca a acreditar e a manter no coração de cem indivíduos reunidos em júri este fervor, esta convicção, esta autoridade que constitui o justiceiro e que faria deste supremo tribunal o verdadeiro orgão e o digno vingador da consciência social”. Proudhon dá conta que a eficácia dos “livres-juízes” da idade média era devido ao apoio do poder político do imperador e dos condes; eles não se podem manter sós contra o poder imperial e desaparecem logo que estes lhes faltem.
Há ainda, como viu Proudhon, os próprios justos. Ele censura-los sempre do mesmo: a moleza que conduz a uma cúmplicidade objectiva. “Do que é que nós nos queixamos?… Nós somos punidos por onde nós pecamos. A perseguição que se prende aos justos é o castigo da sua moleza, para não dizer da sua cumplicidade”. Ele evolui, de facto, quanto à solução do problema, ao passar de um ponto de vista político para um ponto de vista moral sob o golpe de uma dupla rejeição.
Notou-se desde logo que a rejeição da sanção do outro mundo era o tema essencial da sua polémica com o cardial Matthieu. Ele sustenta que a moral pode existir e ser garantida sem a lei religiosa. É necessário deixar de falar ou de consolar-se à ideia de uma sanção numa vida ulterior que determinaria na verdade, a nossa justiça ou a nossa injustiça. Isto conduz à cobardia e à desmoralização. Para Proudhon “a nossa sanção está em nós mesmos” e manifesta-se pela alegria ou remorsos. Ele conclui que nós temos cá em baixo o que merecemos. Ele adopta, por conseguinte, uma solução muito “positiva”: “Se nós não somos nem bem-aventurados, nem taumaturgos, a falta está na firmeza dos nossos corações e dos nossos miolos e nós já não sabemos ser os nossos próprios JUSTICEIROS, é necessário que nós sejamos os nossos próprios justiceiros. Mesmo que ele nos adivinhe o nosso futuro, tudo cá embaixo está em ordem”. O jogo da palavra de Proudhon permite sublinhar a verdadeira finalidade da sua diatribe: mostrar aos homens que eles devem abandonar a sua atitude passiva por uma atitude activa e que isso só dependa deles mesmos. Proudhon apela pois para que aumente em nós a Justiça pela prática dos deveres civis e domésticos, o culto da nossa alma, o desenvolvimento da inteligência e o exercício do dever de justiça para com os culpados. Ele escolhe aparentemente a via da reformação moral individual.
É necessário ser justiceiros mas não regicidas. É a segunda rejeição que coloca Proudhon em direcção à exemplaridade moral. Ele supera a sua impaciência moral para desenvolver uma paciência histórica. Duas razões essenciais lá colocadas.
O regicídio não pode ter sucesso. Proudhon denuncia, efectivamente, uma série de contradições na teoria do tiranicídio. Nós conversaremos na realidade com o tirano um benefício bastante equivoco. O tiranicídio “não é o acto de uma comunidade juridica que sozinha terá poder para regenerar a sociedade; ele é o produto de uma comunidade de pecado”. A oposição destas duas comunidades invalída o recurso ao regicídio ou ao tiranicídio como solução de justiça contra o mal político. Por “comunidade de pecado“, Proudhon quer dizer que ninguém, nem o individuo, nem o grupo humano é puro para poder utilizar a violência contra a tirania e a injustiça e para pretender regenerar por este meio a sociedade. “Vós adorais um mestre e vós o odeiam ao adorá-lo e vós o matam. Mas vós o matais em vão, porque o mestre, sois vós; e apesar do que ele tenha feito, vós não o matais sem crime, porque o verdadeiro culpado sois ainda vós.”
Vê-se aqui, Proudhon desenvolve mais uma visão de moralista na tradição cristão do que uma análise política. Existe uma cumplicidade colectiva com a tirania porque há cumplicidade colectiva com o “pecado”. Este consiste, primeiramente, na conivência colectiva com a injustiça e a violência. Assim Proudhon considera que um tiranicídio consequente deveria também castigar todos os cúmplices do tirano: “Uma abolição de massas: eis o cordário do tiranicídio”. Mas Proudhon deixa ainda claramente entender que é preciso também incriminar o benefício que cada um mantém com o poder e sobretudo com o desejo do poder. Pode-se desde logo compreender o sentido de expressão “comunidade jurídica” como designa este grupo humano que teria escapado á violência e aos benefícios do poder porque ela teria sido dada ao direito.
A complexidade do benefício da sociedade na verdade e na justiça conduz Proudhon, algures, a uma grande prudência nas suas veleidades de justiceiro. Ele tinha afirmado, ao actuar no conhecimento da verdade e da justiça, a capacidade de aceder à minoria e até ao indivíduo solitário. Ele não esquece no entanto, o que deve, na sociedade, combinar este princípio da individualidade com o princípio da igualdade política ou da igualdade liberta dos cidadãos. Ele fá-lo não no estado do conhecimento que pode permanecer solitário, mas àquele da difusão e da transmissão. “Ele só deseja que o direito seja conhecido para alguns, é necessário que seja reconhecido por todos, ou pelos delegados nomeados para este efeito da sua liberdade, em não submeter-se só a uma lei por ele reconhecida. “Contra a acção imediata e forçada dos justiceiros Proudhon reconhece que a justiça só sobrevive verdadeiramente no termo duma pedagogia histórica e política. Os justiceiros não associaram ninguém à sua obra de justiça; desde logo este só sossega sobre uma base frágil, até mesmo inexistente. “Antes de recorrer à força e de usar contra uma multidão de refractários do terrível direito de justiça, é necessário previamente que o direito lhe seja notificado, submetido á reflexão; que ele tenha tido tempo para meditar e portanto reconhecê-lo”. Seria inútil avançar em direcção á justiça numa marcha forçada. Há um argumento mais fundamental ainda para incitar Proudhon á paciência. “Nós temos a razão absoluta, a infinita sanidade para qualificar os nossos semelhantes de má fé e mostrar-nos tão prontos nos nossos julgamentos e tão severos”. À maneira de Abraham negociando a solução de Sodome, Proudhon livra-se então do cálculo da demora que é preciso acordar entre os homens antes que os justiceiros castiguem: um dia, dois dias, um ano, dez anos …. O simples facto de entrar nesta negociação alonga a demora ao infinito. A conservação das sociedades à justiça não será nunca súbita; ela é portanto segura. É preciso saber esperar. É o exemplo dos primeiros cristãos que Proudhon propõe seguir e imitar. A comparação é fundamental no que diz respeito à sua filosofia da história. É preciso, efectivamente, lembrar-se da impaciência escatalógica dos primeiros tempos; a expectativa da solução tinha quase conduzido certas comunidades cristãs a suspender o modo de vida normal. Passados estes primeiros abusos, os cristãos instalaram-se na expectativa.
É o exemplo que é preciso seguir por aqueles que, até estão na expectativa, a da salvação pela justiça, ou seja a expectativa da realização da justiça. Proudhon pormenoriza assim, a exemplo dos primeiros cristãos, a atitude que devem adoptar os partidos da justiça.
Eles anunciam a boa nova, ou seja, no caso destes últimos, a moral nova ou a justiça. Mas, por outro lado, eles continuam a viver no meio do império pagão, pequena minoria dos justos no meio dos corrompidos e dos indiferentes. Enfim, e mais ainda, eles dividem a vida em comum com estes pagões ou com estes injustos, salvo no que diz respeito aos atentados à liberdade de consciência. Eles devem, neste caso, ficar-se ás perseguições apesar deles recusarem estes golpes.
Proudhon em título de conclusão no que diz respeito à questão da justiça: “Tal é a regra … . a submissão das minorias ás maiorias, salvo a faculdade da livre discussão, é a entrada no direito público … “. Seguramente, a minoria conserva o direito em revoltar-se se a maioria abusa da sua força. Isso permanece verdadeiro para Proudhon mesmo no “nosso século parlamentar”. A sua última resposta rejeita a ideia em organizar “as sociedades de vingadores”, mas ele não exclui as revoltas causadas pela injustiça.
No fim de contas, o verdadeiro julgamento destas revoltas não pode ser a maioria; isso será sobretudo a história e a posteridade que, sozinhos, podem reabilitar a minoria justa que tinha razão contra todos os outros: “ Sim, que os povos aprendam que é de momentos onde toda a vida moral duma sociedade se concentra num pequeno número de homens; onde, por conseguinte, este pequeno número de homens poderia ter o direito, o caso vencível de fazer justiça duma imensa multidão, como Moisés no deserto. Elegido sobre o monte Carmel, Mathias e as suas crianças na judeia e um grande peso será feito em direcção à reconciliação, a tolerância e a paz. “Proudhon apela aqui, de algum modo, para a maioria mais inerte e indiferente em tolerar esta pequena minoria de justos, aí compreende provavelmente no que ela pode ter de intempestivo e de incómodo. A revolta da minoria permanece pois, possível, ainda que Proudhon não pareça querer provocar mais. Só a posteridade poderá julgá-la.

Conclusão

Porque é que Proudhon abandonou o seu projecto dos “justiceiros”? Isso não é certamente seguido de uma insipidez da sua capacidade de indignação moral. Ele aprofundou na realidade o seu refúgio da solução religiosa do problema do mal e da injustiça na sociedade e o sentido da sua indignação moral. Efectivamente ele descobriu um certo número de dificuldades.
1º) Quem é verdadeiramente justo para poder julgar e sancionar os outros membros da sociedade? Os limites e a distinção entre os justos e os outros não é tão clara. O nosso benefício ao poder ou à riqueza permite ocasionalmente uma discriminação evidente. Ninguém é verdadeiramente puro para poder fazer obra da justiça e usar a condenação suprema.
2º) Quem sabe em que consiste a Justiça? Proudhon mostra que é uma noção em tornar e em progresso; ela está pois submetida ao pluralismo da discussão que interdita a repressão do justiceiro.
3º) Supondo que se pode conhecer o todo da justiça, esta exige que se respeite também a Igualdade e a Liberdade. É preciso aceitar um trabalho de educação moral e política junto dos outros membros da sociedade.
No fim de contas o abandono do mito dos “justiceiros” por Proudhon, corresponde ao aprofundamento do seu projecto de ateísmo metadológico no que diz respeito à sanção moral. Ele não faz menos do que abandonar por lá o sonho duma posição divina na sociedade. Só Deus vê tudo e sabe tudo e ninguém pode desejar substituí-lo nesta função de retribuição. Proudhon sabe bem que ele não é Robespierre; ora, o seu projecto de “justiceiros” não estava longe de substituir a função que este desejava fazer jogar ao Ser supremo. O que Proudhon cumpriu contra o incorruptível quando se coloca não ser alguma ironia sob a invocação dos revolucionários, é a paciência histórica (respeito pela liberdade igual para todos, exemplaridade acima que sanção penal, trabalho de educação moral e político…) à qual é necessário resolver se estes são os homens que, sozinhos e de forma autónoma, são conduzidos à Justiça, não pelos Justos mas mais humanamente por aqueles que desejam a Justiça. A última lição e implícita que Proudhon nos dá é que ninguém é Deus para poder apresentar-se como Justiceiro. Há pois a exigência e a coerência pessoal em não mais lhe procurar sucedâneo. É uma outra forma de levar a sério a liberdade do homem.

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