A corrente mais profunda da história do XIX século favorizava a afirmação do princípio nacional. O ponto de vista federalista que foi expresso ao mesmo tempo, apesar de não ter nenhuma possibilidade de se afirmar, permitiu denunciar o aspecto negativo desta fase da história da Europa e os limites do estado nacional.
Pierre Joseph Proudhon condenou a formação do Estado nacional italiano e reconheceu no princípio nacional e no Estado unitário, não factores de desenvolvimento da democracia, mas novas formas de opressão, não factores de paz, mas fontes de antagonismo duma violência inaudita entre os Estados.
A propósito da unificação italiana, Proudhon escreve: “Um Estado de vinte e seis milhões de almas, como seria a Itália, é um Estado no qual todas as liberdades provinciais e municipais são confiscadas em proveito duma potência superior, que é o governo. Aí, toda a localidade deve obedecer, o espírito de bairro, calar-se: fora o dia das eleições, no qual o cidadão manifesta a sua soberania por um nome próprio escrito num boletim, a colectividade é absorvida no poder central... A fusão, numa palavra, quer dizer a destruição das nacionalidades particulares, onde vivem e se distinguem os cidadãos, numa nacionalidade abstracta onde não se respira nem se conhece mais: eis a unidade...” E conclui “E quem lucra deste regime de unidade? O povo? Não, as classes superiores.”(7)
A democracia de tipo jacobino, quer dizer a “república una e indivisível”, que confere a soberania ao povo, entendida como fechada em si mesma, uniforme, monolítica e que condena como um atentado à soberania popular tudo o que pode dividir, diferenciar, opor as vontades que concorrem à formação da vontade nacional, não deveria, falando com propriedade, nomear-se democracia, porque todos os grupos sociais, todas as comunas e todas as outras colectividades locais, submetidas à mesma autoridade e à mesma administração, perdem a sua autonomia.
Uma democracia que não se manifesta a não ser ao nível nacional, sem autonomia local, é uma democracia nominal, porque controla do topo, sufocando as comunidades, quer dizer a vida concreta dos homens. O princípio da soberania popular transforma-se mesmo num mito que serve para legitimar a subordinação do povo ao poder central.
Proudhon também mostra que a estrutura do estado unitário reduz o princípio da divisão dos poderes, que é a garantia fundamental do governo livre, a uma fórmula jurídica vazia. Com efeito, existe uma contradição insuperável entre o princípio da limitação do poder pela sua divisão e o da centralização do poder pela eliminação de todo o limite á acção do governo central. Enquanto que o primeiro repousa na autonomia de centros de poder determinados relativamente ao governo central e logo na existência de contrapesos, de oposições e de antagonismos entre os poderes de Estado, o segundo não tolera nenhum centro de iniciativa política fora do governo central.
Proudhon antecipa (8) também, de modo pertinente, os aspectos autoritários e centralizadores dum regime colectivista: a planificação rígida e centralizada, o controle burocrático e policial de todos os aspectos da vida social, a supressão da liberdade de expressão e de associação, o culto da personalidade. São, nas suas grandes linhas, os mecanismos sociais e políticos que conduzirão ao estalinismo.
O ponto de vista federalista permite portanto esclarecer os limites do modelo de Estado unitário e centralizado, tanto na sua variante liberal-democrática como na sua variante comunista.
Sobre a crítica do princípio nacional, quer dizer, da fusão do Estado e da nação, Proudhon exprime-se, mais uma vez, com uma lucidez surpreendente nas páginas publicadas após a sua morte numa recolha intitulada France et Rhin (1867), onde parece estar condensado o resultado da sua longa e penosa reflexão sobre a questão nacional.
Para ele, é claro que existe uma nacionalidade espontânea, que é o produto de laços naturais entre as comunidades locais e o seu território, a sua cultura e as suas tradições, e uma nacionalidade organizada, que é o produto artificial dos laços entre o Estado e os indivíduos que residem no seu território, expressão da necessidade de uniformidade social e cultural e de lealismo exclusivo ao Estado burocrático e centralizado.(9)
Proudhon traz também uma contribuição importante à compreensão do princípio moderno de nacionalidade, explicando como é que um mito serve para justificar um tipo determinado de organização política: o Estado democrático unitário nascido da Revolução Francesa, que se mantém graças ao apoio material do exército permanente, fundado sobre o recrutamento obrigatório, e dum aparelho burocrático e policial centralizado e graças ao apoio ideológico da fusão do Estado e da nação.
Proudhon previu que a mistura explosiva do Estado e da nação acentuariam a agressividade e o belicismo dos Estados, transformando-os em “máquinas de guerra”. Compreendeu, em particular, que a aplicação do princípio nacional na Europa central e oriental, onde era impossível delimitar os Estados com precisão na base deste princípio, teria o efeito dum detonador. A organização da Europa em Estados nacionais teria como resultado romper o equilíbrio das potências, complicar de tal modo a situação internacional e levar o continente para uma série de “guerras nacionais”. A Europa negligenciará esta sábia advertência, ontem como hoje.
Enquanto que a afirmação do princípio nacional empurrava os Estados a transformarem-se em grupos fechados, hostis e belicosos, o desenvolvimento da revolução industrial tendia a multiplicar e a intensificar as relações sociais e a unificá-las em espaços cada vez mais vastos, exigindo a formação e a organização política de sistemas económicos continentais.
Ao contrário de Constantin Frantz que condenou a formação do estado nacional alemão em que o seu federalismo está ligado à nostalgia de certos aspectos da sociedade pré-nacional e a sua negação do princípio nacional define-se mais como um meio de estabelecer uma continuidade com a ordem universal do império medieval do que em termos de ultrapassagem, no sentido dialéctico do termo, do estado nacional, o federalismo integral de Proudhon é projectado para o futuro. Um dos aspectos mais interessantes do seu pensamento consiste na formulação, ao lado dum federalismo político, nacional e internacional, de um federalismo económico e social, necessário para limitar o poder de Estado e dos privilegiados que sustêm este poder.
NOTAS
7- Proudhon - La Fédération et l‘Unité en Italie (1862), in Du Principe Fédératif, Paris, Marcel Rivière, 1959, pp. 98-100.
“Un Etat de vingt-six millions d`âmes, comme serait l`Italie, est un Etat dans lequel toutes les libertés provinciales et municipales sont confisquées au profit d`une puissance supérieure, qui est le gouvernement. Là, toute localité doit se taire, l`esprit de clocher, faire silence: hors le jour des élections, dans lequel le citoyen manifeste sa souveraineté par un nom propre écrit sur un bulletin, la collectivité est absorbée dans le pouvoir central...La fusion, en un mot, c`est à dire l`anéantis-sement des nationalités particulières, où vivent et se distinguent les citoyens, en une nationalité abstraite où l`on ne respire ni ne se connaît plus: voilà l`unité... Et qui profite de ce régime d`unité? Le peuple? Non, les classes supérieures.”
8- Proudhon - Système des Contradictions Économiques ou Philosophie de la Misère (1846), Paris, Marcel Rivière, 1923, vol. II, p. 258 e 301.
Daí que se compreenda o azedume com que Marx recebeu esta obra precipitando o início do fim do relacionamento entre os dois homens.
9- Proudhon - Du Principe Fédératif, op.cit., pp. 594-595. Todo este problema está presente do princípio ao fim da obra, mas aparece com mais acuidade na primeira parte. Ver a minha tradução Do Princípio Federativo, pp. 39-94.
Pierre Joseph Proudhon condenou a formação do Estado nacional italiano e reconheceu no princípio nacional e no Estado unitário, não factores de desenvolvimento da democracia, mas novas formas de opressão, não factores de paz, mas fontes de antagonismo duma violência inaudita entre os Estados.
A propósito da unificação italiana, Proudhon escreve: “Um Estado de vinte e seis milhões de almas, como seria a Itália, é um Estado no qual todas as liberdades provinciais e municipais são confiscadas em proveito duma potência superior, que é o governo. Aí, toda a localidade deve obedecer, o espírito de bairro, calar-se: fora o dia das eleições, no qual o cidadão manifesta a sua soberania por um nome próprio escrito num boletim, a colectividade é absorvida no poder central... A fusão, numa palavra, quer dizer a destruição das nacionalidades particulares, onde vivem e se distinguem os cidadãos, numa nacionalidade abstracta onde não se respira nem se conhece mais: eis a unidade...” E conclui “E quem lucra deste regime de unidade? O povo? Não, as classes superiores.”(7)
A democracia de tipo jacobino, quer dizer a “república una e indivisível”, que confere a soberania ao povo, entendida como fechada em si mesma, uniforme, monolítica e que condena como um atentado à soberania popular tudo o que pode dividir, diferenciar, opor as vontades que concorrem à formação da vontade nacional, não deveria, falando com propriedade, nomear-se democracia, porque todos os grupos sociais, todas as comunas e todas as outras colectividades locais, submetidas à mesma autoridade e à mesma administração, perdem a sua autonomia.
Uma democracia que não se manifesta a não ser ao nível nacional, sem autonomia local, é uma democracia nominal, porque controla do topo, sufocando as comunidades, quer dizer a vida concreta dos homens. O princípio da soberania popular transforma-se mesmo num mito que serve para legitimar a subordinação do povo ao poder central.
Proudhon também mostra que a estrutura do estado unitário reduz o princípio da divisão dos poderes, que é a garantia fundamental do governo livre, a uma fórmula jurídica vazia. Com efeito, existe uma contradição insuperável entre o princípio da limitação do poder pela sua divisão e o da centralização do poder pela eliminação de todo o limite á acção do governo central. Enquanto que o primeiro repousa na autonomia de centros de poder determinados relativamente ao governo central e logo na existência de contrapesos, de oposições e de antagonismos entre os poderes de Estado, o segundo não tolera nenhum centro de iniciativa política fora do governo central.
Proudhon antecipa (8) também, de modo pertinente, os aspectos autoritários e centralizadores dum regime colectivista: a planificação rígida e centralizada, o controle burocrático e policial de todos os aspectos da vida social, a supressão da liberdade de expressão e de associação, o culto da personalidade. São, nas suas grandes linhas, os mecanismos sociais e políticos que conduzirão ao estalinismo.
O ponto de vista federalista permite portanto esclarecer os limites do modelo de Estado unitário e centralizado, tanto na sua variante liberal-democrática como na sua variante comunista.
Sobre a crítica do princípio nacional, quer dizer, da fusão do Estado e da nação, Proudhon exprime-se, mais uma vez, com uma lucidez surpreendente nas páginas publicadas após a sua morte numa recolha intitulada France et Rhin (1867), onde parece estar condensado o resultado da sua longa e penosa reflexão sobre a questão nacional.
Para ele, é claro que existe uma nacionalidade espontânea, que é o produto de laços naturais entre as comunidades locais e o seu território, a sua cultura e as suas tradições, e uma nacionalidade organizada, que é o produto artificial dos laços entre o Estado e os indivíduos que residem no seu território, expressão da necessidade de uniformidade social e cultural e de lealismo exclusivo ao Estado burocrático e centralizado.(9)
Proudhon traz também uma contribuição importante à compreensão do princípio moderno de nacionalidade, explicando como é que um mito serve para justificar um tipo determinado de organização política: o Estado democrático unitário nascido da Revolução Francesa, que se mantém graças ao apoio material do exército permanente, fundado sobre o recrutamento obrigatório, e dum aparelho burocrático e policial centralizado e graças ao apoio ideológico da fusão do Estado e da nação.
Proudhon previu que a mistura explosiva do Estado e da nação acentuariam a agressividade e o belicismo dos Estados, transformando-os em “máquinas de guerra”. Compreendeu, em particular, que a aplicação do princípio nacional na Europa central e oriental, onde era impossível delimitar os Estados com precisão na base deste princípio, teria o efeito dum detonador. A organização da Europa em Estados nacionais teria como resultado romper o equilíbrio das potências, complicar de tal modo a situação internacional e levar o continente para uma série de “guerras nacionais”. A Europa negligenciará esta sábia advertência, ontem como hoje.
Enquanto que a afirmação do princípio nacional empurrava os Estados a transformarem-se em grupos fechados, hostis e belicosos, o desenvolvimento da revolução industrial tendia a multiplicar e a intensificar as relações sociais e a unificá-las em espaços cada vez mais vastos, exigindo a formação e a organização política de sistemas económicos continentais.
Ao contrário de Constantin Frantz que condenou a formação do estado nacional alemão em que o seu federalismo está ligado à nostalgia de certos aspectos da sociedade pré-nacional e a sua negação do princípio nacional define-se mais como um meio de estabelecer uma continuidade com a ordem universal do império medieval do que em termos de ultrapassagem, no sentido dialéctico do termo, do estado nacional, o federalismo integral de Proudhon é projectado para o futuro. Um dos aspectos mais interessantes do seu pensamento consiste na formulação, ao lado dum federalismo político, nacional e internacional, de um federalismo económico e social, necessário para limitar o poder de Estado e dos privilegiados que sustêm este poder.
NOTAS
7- Proudhon - La Fédération et l‘Unité en Italie (1862), in Du Principe Fédératif, Paris, Marcel Rivière, 1959, pp. 98-100.
“Un Etat de vingt-six millions d`âmes, comme serait l`Italie, est un Etat dans lequel toutes les libertés provinciales et municipales sont confisquées au profit d`une puissance supérieure, qui est le gouvernement. Là, toute localité doit se taire, l`esprit de clocher, faire silence: hors le jour des élections, dans lequel le citoyen manifeste sa souveraineté par un nom propre écrit sur un bulletin, la collectivité est absorbée dans le pouvoir central...La fusion, en un mot, c`est à dire l`anéantis-sement des nationalités particulières, où vivent et se distinguent les citoyens, en une nationalité abstraite où l`on ne respire ni ne se connaît plus: voilà l`unité... Et qui profite de ce régime d`unité? Le peuple? Non, les classes supérieures.”
8- Proudhon - Système des Contradictions Économiques ou Philosophie de la Misère (1846), Paris, Marcel Rivière, 1923, vol. II, p. 258 e 301.
Daí que se compreenda o azedume com que Marx recebeu esta obra precipitando o início do fim do relacionamento entre os dois homens.
9- Proudhon - Du Principe Fédératif, op.cit., pp. 594-595. Todo este problema está presente do princípio ao fim da obra, mas aparece com mais acuidade na primeira parte. Ver a minha tradução Do Princípio Federativo, pp. 39-94.
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