quarta-feira, novembro 23, 2005

O PROBLEMA DA OBRA ABERTA NA MÚSICA CONTEMPORÂNEA

"Dès lors, l'oeuvre est "ouverte" au sens où l'est un débat: on attend, on souhaite une solution mais elle doit naître d'une prise de conscience du public. L'ouverture deviant instrument de pédagogie révolutionaire"
Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, Éditions du Seuil, Paris, 1965, pág. 25. (sublinhados meus)
"L'Art est toujours affirmatif"H. Marcuse

A nossa investigação vai partir do conceito de obra aberta tal qual o apresenta Umberto Eco nos livros Oeuvre Ouverte e A Definição de Arte. Eco considera que as composições de música instrumental caracterizam-se pela liberdade que concedem ao intérprete. Este não tem só, como na música tradicional, a faculdade de interpretar, segundo a sua própria sensibilidade, as indicações do compositor: trata-se de agir sobre a estrutura da obra, e de determinar a duração das notas ou a sucessão dos sons, num acto de improvisação criadora, ou seja, o intérprete de uma composição de música contemporânea não é o executante de uma obra totalmente pré-determinada em que toca da mesma maneira as vezes que for preciso, mas é, como o compositor, um criador. A improvisação torna-se desta maneira fundamental na determinação de uma estética para a música contemporânea. Mas podemos perguntar: que composições obedecem a este esquema? Umberto Eco responde dando-nos alguns exemplos, aos quais outros poderíamos acrescentar.(1)
Portanto, o que se está a querer dizer é que as obras musicais contemporâneas não constituem mensagens acabadas e
definitivas, formas determinadas uma vez por todas. Não estamos mais perante obras que pedem para ser repensadas numa direcção estrutural já dada, mas perante obras "abertas", oeuvres ouvertes, que o intérprete concluiu no momento em que assume a mediação.(2) Eco vai explicitamente afirmar: "(...) toda a obra de arte, mesmo que seja forma acabada e "close", na sua perfeição de organismo exactamente calibrado, é "ouverte" pelo menos no que ela pode ser interpretada de diferentes maneiras sem que a sua irredutível singularidade seja alterada. Fruir duma obra de arte passa por dar-lhe uma interpretação, uma execução a fazê-la reviver numa perspectiva original".(3)
Em cada obra o compositor prevê um resultado diferente para cada execução da obra, deixando-a dependente da escolha do intérprete. De facto, a partitura tem um aspecto um tanto ou quanto invulgar, como uma grande folha contida numa moldura, feita propositadamente, sobre a qual surgem grupos de notas, como frases musicais nitidamente separadas umas das outras.(4)
Na obra A Definição de Arte, Umberto Eco levanta um aspecto importante da relação música contemporânea-público: "enquanto certas experiências de obra aberta a uma fruição vaga exprimiam ainda uma sensibilidade de tipo decadente e um desejo de fazer da arte um instrumento de comunicação teoricamente privilegiado, os últimos exemplos de obra aberta a um complemento produtivo exprimem uma evolução radical da sensibilidade estética."(5)
Os meios electrónicos não permitem "fazer música", no sentido habitual da expressão. Quando instrumentos electrónicos o tentam, representam apenas música de substituição ... A nova produção sonora exige antes novas ideias criadoras de composição, e estas só podem provir do próprio som: da "matéria sonora" ... Hoje, o compositor já não tem só que tratar com setenta ou oitenta sons, com seis ou sete intensidades, com meios, quartos ou oitavos de tom, mas sim com frequências eléctricas de cerca de cinquenta a quinze mil vibrações por segundo, com mais de quarenta intensidades exactamente medidas e com uma imensidade de durações (centímetros de fita sonora) que saem do quadro habitual da notação.
A exemplo do pintor, o músico passa agora a produzir a obra executando-a, o que neste caso, equivale a realizá-la em sons; a obra nasce no decurso da sua sonorização. O papel dos aparelhos electroacústicos já não é, portanto, o dos instrumentos: compõe-se para estes, tendo em conta as respectivas particularidades; mas compõe-se com aqueles, pois a sua função é de fabrico ... "Manejar os aparelhos electroacústicos não desumaniza o músico, não mecaniza a música, antes humaniza os aparelhos."(6) Totalidade e continuidade definem o universo sonoro da música electrónica. Esse poder de fazer evoluir qualitativamente a matéria, de maneira contínua, o músico já não o limitará aos fenómenos sonoros de elaboração estritamente electrónica, se é que não o estende aos sons instrumentais e à voz: assim, pode atingir novas regiões de expansão e de diferenciação da matéria instrumental ou vocal, ligadas a novas formas.
Para terminar, uma última citação de Umberto Eco sobre a obra aberta: "Trata-se, portanto, de compreender a obra como um organismo aberto; organismo, porque dotado de uma formatividade originária própria que não pode deixar de condicionar as escolhas efectuadas de entre uma gama de possibilidades; aberto, justamente porque a forma não obriga o fruidor a seguir uma direcção necessária, mas apresenta-se-lhe como campo de possibilidades."(7)(8)

Notas:

(1) Por exemplo, o Klavierstuck XI de Karlheinz Stockhausen, a Sequenza pour flûte seule de Luciano Berio, Scombi de Henri Pousseur e ainda a Troisième Sonate pour Piano de Pierre Boulez. Estes quatro nomes não estão aqui por acaso. Trata-se de quatro compositores contemporâneos que fizeram progredir a música contemporânea nos seus respectivos países: Alemanha Ocidental, Itália, Bélgica e França.

(2) Eco tem a preocupação de nos tentar evitar um equívoco. Diz ele: "Il convient d'eliminer tout de suite une équivoque: l'intervention de cet interprète qu'est l'executant (le musicien qui joue une partition ou l'acteur que récite un texte) ne peut évidemment se confondre avec l'intervention de cet autre interprète qu'est le consommateur (celui qui regarde um tableau, lit en silence um poème ou écoute une oeuvre musicale que d'autres exécutent). Cependant, au niveau de l'analyse esthétique, les deux opérations peuvent être considerées comme des modalités différentes d'une même attitude interprétative: la "lecture", la "contemplation", la "jouissance" d'une oeuvre d'art représentent une forme individuelle et traite d'"exécution". La notion de processus interprétatif englobe l'ensemble de ces comportements". Ver L'Oeuvre Ouverte, pág. 38.

(3) Eco, Umberto - L'Oeuvre Ouverte, pág. 17.


(4) Stockhausen diz-nos o seguinte a propósito desta questão: "O intérprete olhará a folha sem intenções preconcebidas, ao acaso, e começará por seguir a parte do primeiro grupo que o seu olhar encontrar: ele próprio escolherá a velocidade, o nível dinâmico e o tipo de entrada em que este grupo deve ser articulado. Terminado o primeiro grupo, o intérprete lerá as indicações de velocidade, de dinâmica e de entrada, assinaladas no fim; depois, olhará, ao acaso, um outro grupo e tocá-lo-á de acordo com as tais três indicações...Cada grupo pode ser ligado a qualquer dos outros dezoito, de forma que poderá ser executado em cada uma das seis velocidades, das seis intensidades e das seis formas de entrada."
Mostra-se aqui que é óbvio que a causalidade das escolhas torna possível uma infinidade de execuções diferentes, pois muitos grupos poderão não aparecer nunca no decurso de outras execuções, e outros aparecem mais do que uma vez na mesma. Todavia, uma coisa que não podemos esquecer. Os grupos são aqueles e não outros; o autor, ao estabelecê-los, orientou e determinou implicitamente a liberdade do intérprete.

(5) Umberto Eco ainda vai acrescentar dizendo que "Neste contexto, até fenómenos como os musicais, até agora ligados à relação apresentação-contemplação típica da sala de concertos, implicava uma fruição activa, uma co-formação, que, ao mesmo tempo, consiste numa educação do gosto, numa renovação da sensibilidade perceptiva. Se uma das razões da falta de educação estética do público (e, portanto, da clivagem entre arte militante e gosto corrente) está no sentimento da inércia estilística, no facto do fruidor ser levado a fruir apenas os estímulos que satisfazem o seu sentido das probabilidades formais (por forma a apreciar apenas melodias iguais às que já ouviu, linhas e relações o mais óbvias possível, histórias com um final habitualmente "feliz"), deve admitir-se que a obra aberta de tipo novo também pode constituir, em circunstâncias sociologicamente possíveis, uma contribuição à educação estética do público comum." Eco, Umberto - A Definição da Arte, pág. 159.

(6) Schloezer, Boris de e Seriabine, Marina - Problèmes de la musique moderne, com um prefácio de Xenakis, Ed. Minuit, Paris, 1959, pág. 24.


(7) Eco, Umberto - A Definição de Arte, pág. 172.


(8) Uma música nova tem necessidade de signos novos. A passagem da notação Gregoriana, à nossa escritura tradicional, depois a evolução desta, até à notação da música vanguardista, prova-nos bem o que acabo de dizer. Os problemas que se põem aos compositores da segunda metade do século XX são de duas espécies: Certos autores querem escrever com precisão as suas partituras. Querem dispor de um modo de escrita claro e inequívoco. Utilizam a notação tradicional à qual acrescentam signos novos, ou na qual certos signos são transformados. Os intérpretes devem aprender estes novos códigos, que variam algumas vezes de compositor para compositor.
Outros autores rejeitam completamente a notação tradicional. As partituras consistem em gráficos, em desenhos, em fotos, que os intérpretes realizam em toda a liberdade ou tendo em conta as indicações do autor. O olho inspira a orelha. Esta notação é perfeita se o intérprete é capaz de improvisar e por conseguinte participar na criação da obra tanto ou mais que o compositor. A imensa diversidade de obras tem por consequência diferentes tipos de notação musical.

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