segunda-feira, novembro 21, 2005

PROUDHON E A DEFINIÇÃO DE JUSTIÇA

A Justiça esta “ Ideia princesa” que está tanto no coração de Proudhon, no que é que consiste? O momento chegou para a investigação, apesar desta ideia não ser simples.
É antes de tudo uma ideia moral, “ a regra dos nossos direitos e dos nossos deveres”, o respeito que devemos a todos os homens porque são pessoas morais iguais em dignidade, sejam quais foram as desigualdades aparentes ou reais que podem diferenciá-las. Todas as concepções económicas e políticas de Proudhon residem sobre a reciprocidade e a troca, e esta reciprocidade justifica-se pela igual dignidade dos contratantes. A moral de Proudhon encontra-se por inteiro nestas proposições, herdeiras de Descartes e de Kant.
O homem em virtude da razão de que está dotado, tem a faculdade de sentir a dignidade na pessoa do seu semelhante como na sua própria pessoa, de afirmar-se ao mesmo tempo como indivíduo e como espécie.
“ A Justiça é o produto desta faculdade: é o respeito, espontaneamente experimentado e reciprocamente garantido, da dignidade humana, em qualquer pessoa e em qualquer circunstância que se encontre comprometida, e a qualquer risco que nos exponha a sua defesa.” (38)
A Justiça é portanto em primeiro lugar uma ideia, uma regra moral, mas não é só isso. Se fosse uma simples noção, uma relação concebida pelo entendimento e admitida pela vontade, o cepticismo poderia negá-la. Para preencher o seu ofício de razão suprema das coisas, a Justiça deve ser uma realidade. Proudhon insiste várias vezes com grande energia, sobre o realismo da Justiça. (38) É uma realidade interior e exterior, que rege a natureza como o homem, que é por sua vez faculdade do espírito, função orgânica e lei das coisas.
“ A Justiça toma deste modo diferentes nomes, segundo as faculdades às quais se dirige. Na ordem da consciência, o mais elevado de todos, ela é a Justiça propriamente dita, regra dos nossos direitos e dos nossos deveres; na ordem da inteligência, lógica, matemática, etc, ela é igualdade ou equação; na esfera da imaginação, tem o nome de ideal; na natureza é equilíbrio. (39)
Ideia, regra, faculdade, função, lei objectiva, a Justiça é tudo isso, e não é sempre fácil de agarrar a unidade desta síntese. A Justiça é mesmo em maior número. Esta grande lei que rege o universo físico como o universo moral, a ciência descobre mas não inventa, para além dos fenómenos e as suas relações sustentam o universo num equilíbrio eterno, esta lei evoca invencivelmente uma Ideia platónica, permanecendo imanente. É neste sentido que se pode falar dum platonismo do Proudhon.
Proudhon está tão ocupado da realidade e da sublimidade da Justiça que chega no seu entusiasmo, a divinizá-la. Ela é para ele, o nome autêntico de Deus. “ O que é, com efeito, esta Justiça, a não ser a essência soberana que a Humanidade de todos os tempos adorou sob o nome de Deus”. (40) “ O que é preciso mais ao homem? O que é que os céus e as virtudes dos céus poderiam oferecer-lhe?” (41) Arrastado por esta exaltação Proudhon vai quase à personificação da Justiça, a adorá-la como uma divindade, para grande escândalo de alguns dos seus amigos, como Herzen, que desconfia de querer voltar à transcendência. (42)
Não era nada, o impulso de adoração de Proudhon permanece totalmente imaginativo e simbólico, brilho da sua ardente sensibilidade. E mesmo quando diviniza a Justiça não lhe vê outra justificação que ela própria. Não diz, como o cristianismo, Deus é Amor, decreta Deus é Justiça, pois a Justiça “ não admite rivalidade nem na consciência, nem no espírito e todo aquele que a sacrifique, seja à Ideia, seja mesmo ao Amor, exclui-se da comunhão do género humano”. (43) Falta perguntar se a Justiça e o Amor se combatem ou se abracem, procuraremos precisar o pensamento de Proudhon.
Não podemos estudar aqui separadamente todos os aspectos da Justiça, da qual a síntese não é fácil a fazer. Em definitivo reenvia a duas ideias complementares. É a igualdade nas relações sociais e o equilíbrio no universo.
A igualdade, sabemo-lo, é a paixão maior de Proudhon, com a liberdade que não se separa dela. Não é para ele uma simples noção ou um sentimento arbitrário, é um facto e uma lei, a desigualdade é que é uma anomalia. Que a igualdade é um facto natural, é o que prova, segundo Proudhon, a igualdade dos dias do ano, dos anos, das quantidades de chuva, dos fluxos e dos refluxos, das folhas e das flores, etc. “Lei do mundo”, a igualdade é também “ a lei do género humano”.
“Todos os indivíduos de que se compõe a sociedade são em princípio, da mesma essência, do mesmo calibre, do mesmo tipo, do mesmo modelo: se qualquer diferença se manifesta entre eles, provém não do pensamento criador que lhes deu o ser e a forma, mas circunstâncias exteriores sob as quais os indivíduos nascem e desenvolvem-se. Não é em virtude desta desigualdade, singularmente exagerada aliás, que a sociedade se sustenta mas apesar desta desigualdade.” (44)
Proudhon está tão convencido desta verdade que encontra estranho que ela encontre contraditores. Minimiza em todas as desigualdades, que são “acidentes” que se exagera. Desigualdade de talentos, de direcção, de génio? Digamos antes diversidade de aptidões, entre as quais “ a constituição da alma humana e a divisão industrial” devem encontrar “compensações”.
Que se lhe não fale da “ pretendida superioridade” do talento e do génio. “ Diante da razão analítica, a única autoridade que reconhece o trabalho, o génio não existe”. Ou quando existe “ escapa à apreciação; é uma quantidade incomensurável”, gratuita da sua natureza, como a estatura dos novatos ou a beldade das raparigas (45); “ é rebaixar ao reclamar para ele, a mais das honras, honorários”. (46) Será a tese dos Majorats littéraires. Quanto à desigualdade das raças, Proudhon hesita a afirmar, e habilmente lembra que “ o catolicismo faz muito barulho da unidade original da nossa espécie”. Em todo o caso, se há raças realmente inferiores, “ será dessas raças mal nascidas ou abastardadas como há, na nossa sociedade civilizada, criaturas doentes... serão absorvidas e acabarão por se extinguir. A igualdade ou a morte, tal é a lei da Revolução”. (47)
Aliás, quando a igualdade não está na natureza a função dos homens é de aí a colocar. É o papel da verdadeira economia política, que não é a dos economistas oficiais. Esta declara fatais as variações caprichosas dos factos económicos: “ a ciência, para estes senhores, acaba ou acaba a fatalidade”. Mas para Proudhon a ciência deve dominar os fenómenos e não sujeitar-se a eles. Deve “ compensar os minima et maxima” entre os quais oscilam os fenómenos, e “ libertar as médias” : tal é “ a aplicação da Justiça à economia política”, que é o que diz Léon Walras. (48) Deste modo a igualdade é tanto uma lei natural, como o resultado duma intervenção para restabelecer à média as desigualdades naturais ou sociais. Devem colaborar “ a prudência do legislador, a habilidade do economista, a sabedoria do pedagogo”.
Esta igualdade que importuna Proudhon, que se esforça de justificar por raciocínios por vezes tão extraordinários, encara-a sob todas as suas formas. È antes de tudo a igualdade moral das pessoas, da qual deriva a reciprocidade do respeito. É de seguida a igualdade das funções, pedra angular da doutrina económica, e a igualdade dos serviços que ela arrasta, pois “ o princípio da reciprocidade do respeito converte-se logicamente no da reciprocidade dos serviços”. É enfim, o que deveria ser a igualdade das condições, das fortunas e dos salários, Seria se Proudhon fosse legislador social, e nas suas primeiras Mémoires concluía ousadamente à igualdade dos salários. Irá rejeitá-la, como suspeita de comunismo. Com mágoa, com muita mágoa, reconhece que não é completamente possível, por causa da “ aceitação de ninguém” e do “ parasitismo”, mas mantém que ela é “ a tradução exacta da lei da reciprocidade”. Consente que um “ cidadão prodígio” seja igual a 16 cidadãos ordinários. Terá de, aplicando a lei de troca de serviços, “ o vencimento 16 vezes mais consideráveis que o rendimento do cidadão ordinário”. “ Nisto não haverá de injustiça”. Mas que se não desenvolva, como os românticos, “ a imbecil adoração do génio”.
“ Para nós, que não queremos nem idolatrar nem rebaixar o génio, concluímos desta discussão duas coisas, que satisfazem igualmente a lei económica e a lei do ideal. A primeira é que o homem de génio, como o homem de trabalho, deve ser remunerado pelas suas obras, nem mais nem menos; a segunda é que a preeminência do talento e do génio não se podem reconhecer a não ser por distinções honoríficas, e nunca por um adiantamento sobre o produto comum. (49)
Subsistirá portanto uma certa hierarquia, mas fundada sobre os serviços entregues, não sobre uma superioridade de castas ou de classes, sobre privilégios que destroem a igualdade. Daí a aversão que experimenta Proudhon pelos filósofos e os políticos que em nome duma pretensa desigualdade intelectual, entendem manter a desigualdade social. Não há entre os homens que diferenças de degrau, que é possível reduzir através duma melhor educação, e não há entre as funções que diversidade, numa igualdade de dignidade.
Se a igualdade é o nome moral da Justiça, o seu nome científico, enquanto realidade objectiva, é o equilíbrio, que simboliza a balança. Toda a filosofia proudhoniana é um sistema de “balanços”, individuais e colectivos, económicos, políticos, nacionais, internacionais, cósmicos. Salta aos olhos que o equilíbrio tem como condição a igualdade: para que forças se balancem é necessário que elas sejam iguais, senão há desequilíbrio e desordem. O equilíbrio é a chave da moral, pela reciprocidade de respeito entre pessoas iguais em dignidade; ela é a chave da economia pelo balanço entre os grupos industriais e agrícolas no mutualismo, e a chave da política pelo balanço dos estados ou das nações no federalismo. Importa, para que este equilíbrio seja estável, que se estabeleça entre indivíduos ou entre grupos que não sejam demasiado poderosos. Não haverá mutualismo ou federalismo que entre contratantes médios, Proudhon é o adversário decidido dos grandes blocos centralizados, grandes concentrações capitalistas ou grandes Estados. Será a base do Princípio Federativo.
O equilíbrio será portanto a condição de ordem e de paz. Todas as desordens sociais provêm das violações desta lei fundamental. E tudo, como Proudhon mostrará na Guerra e Paz, reenvia ao desequilíbrio económico, ao pauperismo que engendra o crime e a guerra. Há correlação entre “o defeito de equilíbrio na economia geral” e o “ defeito de equilíbrio na razão pública e nos costumes”, (50) tal é o fundamento da sua teoria das sanções. Desde logo o remédio está ao nosso cuidado. “A primeira coisa a fazer para destruir o pauperismo e assegurar o trabalho é voltar à sabedoria, quer dizer ao equilíbrio”. É preciso duma e doutra parte uma igual inteligência e uma igual boa vontade, a fim de evitar as revoluções desordenadas. Pela sua parte Proudhon oferece-se a falar ao povo, aos proletários; que o Cardeal Matthieu, pelo seu lado pregue aos “burgueses”, as “classes ricas”, e “ a paz será brevemente feita”.
“Disse em 1849, diante do tribunal de la Seine, que o socialismo era a reconciliação de todos os antagonismos. Esta reconciliação, dou-vos hoje a fórmula: não tem nada que possa justificar a oposição da alma que vive, é o retorno à Justiça, ao equilíbrio. (51)
Deste modo Proudhon, diante do príncipe da Igreja como diante do jurí põe em valor o lado conciliador do socialismo, que lhe censuram com azedume os marxistas. Mas não se coíbe de fazer Proudhon mais ingénuo do que ele é. Indica a condição da reconciliação, mas sabe bem que ela não está preparada de ser posta em prática, porque os homens não são ainda razoáveis para realizar o equilíbrio e a paz. O equilíbrio social não será sem dúvida perfeitamente realizável a não ser numa sociedade sem classes, e deste modo a utopia proudhoniana aparenta-se à utopia marxista. Para nos aproximarmos deste ideal a luta permanece necessária, mas ela só pode diminuir o desequilíbrio se for uma luta pelo direito.
Por outro lado poderia dizer aqui um budista ou um discípulo de Schopenhaeur ou de Nietzsche, que é feliz por o equilíbrio não ser totalmente realizado no planeta, pois a igualdade absoluta seria a imobilidade, a petrificação, a morte. Que os dois pratos da balança estejam ao mesmo nível: sem movimento, a vida pára. “ Toda a sentença de Justiça, dizia Rémy de Gourmont, é uma sentença de morte”. E Jules de Gaultier, em eco: “ A igualdade não é realizável a não ser no nada”. (52) Não é necessário acreditar que se possa dizer a igualdade ou a morte, o que é verdadeiro é que a igualdade é a morte.
Proudhon previu esta objecção ilusória, e preparou uma resposta notável, fundada sobre a negação metafísica do Absoluto. Pode o equilíbrio ser o nada no Absoluto, não o podemos saber; mas no mundo real, no mundo da natureza e da vida, tudo é movimento. “ Não há nada de permanente e de eterno a não ser as próprias leis do movimento”. (53) O todo é bem de compreender o infinito, não somente o espaço infinito, mas o tempo infinito, a criação virtualmente infinita.
“ Sob esta condição inevitável da infinidade que compete à criação, a hipótese duma conclusão, duma consumação final é contraditória. O universo não tende ao imobilismo; o seu movimento é perpétuo, porque ele próprio, o universo, é infinito. A lei do equilíbrio, que resiste não o empurra à uniformidade, ao imobilismo; Assegura, pelo contrário a eterna renovação pela economia das forças, que são infinitas.” (54)
Seguro sobre a impossibilidade do imobilismo eterno, Proudhon mostra de seguida que não devemos temer a petrificação nas coisas humanas. A constituição da humanidade é a mesma que a do universo.
“ Não caminhamos a uma perfeição ideal, a um estado definitivo, que dependeria de nos atingir num momento, transpondo pela morte o intervalo que nos separa. Somos importados com o universo numa metamorfose incessante, que se realiza tanto mais seguramente que nos desenvolvemos mais inteligência e moralidade. (55)
O mesmo que a igualdade da razão em todos os homens não impede as desigualdades quantitativas que os distinguem, o mesmo a perfeição ideal que realizaria o equilíbrio absoluto não impede na realidade dos factos, as transformações das sociedades no sentido deste ideal, que não esperamos, aliás, nunca. Pois “ nascemos perfectíveis, nunca seremos perfeitos”. “ Não saberíamos nunca o fim do Direito, porque nunca cessaríamos de criar entre nós novas relações”. À medida que um progresso é realizado, que uma etapa é atingida nesta marcha para a Justiça, descobrimos outros desequilíbrios e após estes outros ainda, até ao infinito. Deste modo se conjuga com a ideia de equilíbrio a ideia de progresso, que Proudhon tinha já desenvolvido em 1851, para se justificar das contradições que lhe censuravam, nas duas cartas que constituem a Filosofia do Progresso, e que retoma com diferenças notáveis, no nono estudo da Justiça: “ Progresso e Decadência”.
É necessário acrescentar que esta contemplação do infinito, que assustava Pascal e levava Renan para o cepticismo, é precisamente o que cura Proudhon do “ quietismo”. O que importa, grita ele, que vivamos poucos dias num canto de terra miserável, “ a nossa perpetuidade está na perpetuidade da nossa raça, ligada ela própria à perpetuidade do universo”.
“ Nesse momento em que o globo que habitamos... se dispersar no espaço, devemos ver-nos nesta dissolução que uma metamorfose local que, não mudando nada no organismo universal, não poderia causar desespero, não afectaria em nada a nossa felicidade. (56)
Depois de nós, os nossos filhos, após este mundo outros mundos: é assim que “ somos participantes da vida universal, eterna; e quanto mais reflectirmos a imagem na nossa própria vida, pela acção da Justiça, mais felizes seremos”. Tal é na imanência a recompensa do homem justo, que contribuirá à sua eutanásia.
Todo o universo é portanto num eterno movimento. Mas o movimento, pelo menos no que diz respeito a humanidade, tem uma direcção. Esta direcção é o progresso, que é “ a grande lei da história”. Sobre o sentido propriamente filosófico do progresso, como sobre o de absoluto ou de ideal, Proudhon está longe de ser sempre claro; mas como o lembra sensatamente M. Ruyssen, (57) “tudo se torna claro a partir do momento em que o autor se coloca no terreno que lhe é familiar, o da revolução”, ou mais largamente o da marcha da humanidade. “ Entendo por Progresso, dizia já o autor da Criação da Ordem, a marche ascendente do espírito em direcção à ciência”; vimos que é necessário acrescentar a marcha da Religião à Justiça, da autoridade à liberdade e ao contrato, do instinto espontâneo à reflexão, em suma de todas as formas do Absoluto, que chama aqui “ Absolutismo”, a todas as formas do relativo. Negativamente o progresso “ é portanto a negação do absoluto” (excepto a Justiça), positivamente é (a substituição do culto do Ser pretensamente supremo pela cultura da humanidade”. (58) este progresso é certo, como uma lei da natureza. É contínuo, mas não é uniforme. Comporta acelerações e desacelerações, avanços e recuos. “ Todavia, afirmava A Ideia Geral, através das oscilações contínuas, o bem parece arrastar o mal, e tudo bem somado, há um progresso claro para o melhor.”
Este progresso, Proudhon fala algumas vezes duma maneira tão categórica que poderíamos pensá-lo fatal. Chega a afirmar que as sociedades são governadas por “ leis absolutas”, que os acidentes que entravam a marcha do progresso, como o 2 de Dezembro, não têm que uma importância relativa, que “ a sociedade avança sempre”, que “ ela está sempre em erecção”, e nega “ em princípio a decadência das nações”. (59) Mas desde que ele se torna moralista liberta-se deste fatalismo cientista para afirmar a liberdade. Tendo Langlois objectado a sua própria tese da necessidade do progresso, “você parece-me, responde-lhe Proudhon, esquecer totalmente uma coisa essencial, uma coisa que produz todo o bem e todo o mal no mundo, a saber a liberdade”. (60) E é a doutrina da Justiça: o progresso consiste “ não numa evolução fatal da humanidade, mas na sua libertação indefinido de toda a fatalidade”, (61) e isto graças à liberdade. A liberdade, com efeito, é a nobreza do homem, mas ela deixa-se arrastar pelas seduções da natureza e do ideal. A liberdade é a “ força motriz do direito”, mas é também a única potência capaz de provocar um revés à Justiça” (62) É “ uma potência de afirmação de mesmo modo que de negação, de produção como de destruição”. (63) Resulta, do facto que o homem não é um ser simples, mas devolve ao homem o ser mestre do seu destino. É porque a Igreja não gosta dele. “ A liberdade para você, (Monsenhor) é o diabo”. E Proudhon toma contra a Igreja o partido de Satanás. “Vem, Satanás, vem, caluniar os padres e os reis, e eu te abraçarei”. (64)
Proudhon consagra todo um Estudo a aprofundar as ideias de progresso e de decadência. Começa por dizer o que não é o verdadeiro progresso. Não o saberíamos ver nem num facto físico como um melhoramento da raça; nem na esfera do espírito onde, se os conhecimentos aumentam, a “ inteligência não ganha”; nem nas invenções modernas, onde não se faz que “ tirar a perder de vista as consequências dos princípios”; nem na arte onde “ o que há de melhor na humanidade se abate”; nem na indústria, onde “ a complicação de tantas máquinas económicas” não faz que aumentar “ a inquietude, a vontade, o desespero, o ódio surdo”; nem em moral onde, sob nenhuma relação seguimos a impulsão dos moralistas antigos”. A evolução, tal como a descrevem os filósofos contemporâneos, Vico, Herder, Hegel aparece como um processo orgânico e não como um livre progresso. “ O socialismo como a filosofia hegeliana desagregou-se porque às suas teorias orgânicas não soube juntar uma teoria forte e verdadeira da liberdade e da justiça”. (65)
“ (Opondo-se a todos estes fatalismos) o Progresso é antes de tudo um fenómeno de ordem moral, do qual o movimento se irradia de seguida, seja para o bem, seja para o mal, sobre todas as faculdades do ser humano, colectivo e individual.
Esta irradiação da consciência pode-se operar de duas maneiras, a que segue a voz da virtude ou a que segue a do pecado. No primeiro caso, chamo justificação ou aperfeiçoamento da humanidade por ela própria; tem por objecto fazer acreditar a humanidade em liberdade e em Justiça indefinidamente... é nisso que consiste o progresso. no segundo caso, chamo o movimento da consciência Corrupção ou dissolução da humanidade por ela mesma, manifestada pela perda sucessiva dos costumes, da liberdade, do génio, pela diminuição da coragem, da fé, o apobrecimento das raças, etc: é a decadência. Nos dois casos, digo que a humanidade se aperfeiçoa ou se desfigura ela própria, porque tudo depende aqui, exclusivamente da consciência da liberdade. (66)
Vemos que Proudhon tende a sublinhar a ideia que, para o progresso como para a decadência, a humanidade age por ela própria, o que é característica da imanência. Acrescenta que a humanidade dirigindo-se em direcção à Justiça, “o progresso é o estado natural da humanidade.” “Nada de mais agradável de conceber que o seu adiantamento; a dificuldade real, a única dificuldade, ter acesso a um recuo”, quer dizer sobre a decadência. Como explicar isto? Proudhon responde a esta questão pela teoria pouco clara do idealismo, que nos parece equívoca porque Proudhon, tanto toma a palavra no seu sentido ordinário, como lhe dá uma significação claramente pejorativa. O homem tende naturalmente para a Justiça, que conhece cada vez mais pela ciência. Mas deixa-se dominar pela imaginação ou “faculdade de idealização”, que às realidades imperfeitas substitui “imagens esplendorosas e puras, às quais se esforça de reconduzir de seguida as realidades do qual o uso entra na economia da sua existência”. (67) O ideal embeleza tudo, mesmo a Justiça; adora-o sob o nome de Deus. Mas a Justiça, tal que a produz a inevitável imperfeição humana, é falível e retrógrada; torna-se “ um falso modelo, um inútil simulacro.” A fé na Justiça destruída, a sociedade cai na idolatria. “O princípio de todas as retrogradações sociais está na separação, mais ou menos fortuita, do que o homem possui nele de mais elevado, o justo e o ideal”. (68) De modo que
“ A doutrina do progresso resume-se em duas proposições, das quais é fácil verificar historicamente a veracidade:
Toda a sociedade progride pelo trabalho, a ciência e o direito idealizados;
Toda a sociedade retrógrada pela preponderância do Ideal.
Ora o idealismo tem sobretudo por expressão a religião, que podemos definir, no ponto de vista que nos ocupa, um sistema de idealidades.
É portanto a Igreja que acuso sobretudo de favorizar a usurpação do ideal, e consequentemente de ser a grande manobreira da mistificação universal, da qual a última palavra é degradação. (69)

NOTAS

38 Justiça, segundo estudo, cap. VII, I, 422.

39 Em particular primeiro estudo, cap.IV, I, 315.

40 Justiça, Programa de filosofia popular & VIII, I, 217.

41 Justiça, Programa, I, 223.

42 Ibid, 221.

43 R. Labry: Herzen et Proudhon, p. 171-172.

44 Justiça, programa I, 225.

45 Justiça, terceiro estudo, II, 69.

46 Justiça, sexto estudo, III, 100.

47 Notas e esclarecimentos ao sexto estudo, III, 131.

48 Justiça, terceiro estudo, II, 71.

49 Notas e esclarecimentos ao terceiro estudo, Justiça, I, 147-150.

50 Notas e esclarecimentos ao terceiro estudo: génio. Justiça, I, 125-131.

51 Justiça, décimo segundo estudo, sanção na economia, IV, 391.

52 Ibid, IV, 394.

53 J. de Gaultier, Nietzsche, p. 126-127.

54 Filosofia do Progresso, 1ª carta. Edit. Ruyssen, 49.

55 Justiça, Programa I, 232.

56 Ibid, I, 233.

57 Justiça, programa I, 233.

58 Th. Ruyssen. Introdução à Filosofia do Progresso, edição Bouglé-Moysset, p. 20.

59 Filosofia do Progresso 1ª carta, edit Ruyssen 74.

60 Correspondência, 1852 e 1853, V, 109, 247, 249.

61 Correspondência, III, 259-260.

62 Justiça, doze estudo VI, 431.

63 Justiça, nono estudo III, 518.

64 Justiça, oitavo estudo III, 424.

65 Ibid, 433.

66 Justiça, nono estudo III, 485 à 504.

67 Ibid, 512.

68 Ibid, 522.

69 Ibid, 536.

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