Uma proposição poderia resumir só por si a problemática de A Justiça na Revolução e na Igreja. Ela provém do oitavo estudo deste livro, onde Proudhon escreve: “assim a necessidade e a liberdade estão antiteticamente unidas, são dadas à priori, pela metafísica e experiência, como a condição essencial de toda a existência, de todo o movimento, de todo o fim, partindo de todo o saber e de toda a moralidade “. (1)
O autor falava um pouco antes da “primeira antinomia”, da “polaridade do universo”. Necessidade e livre arbítrio estão por vezes opostos e unidos, opostos na união ou unidos na oposição. Entre eles reina, senão o conflito, no mínimo a tensão, uma tensão entre pôlos irreconciliáveis. A hipótese segundo a qual existe um livre arbítrio dá conta da existência das ciências da natureza e da existência da humanidade. A necessidade reenvia ao que é possível chamar de “força das coisas”, a razão das coisas: a razão sendo ela inerente às coisas, necessidade objectiva da natureza.
O homem é o único ser que escapa a esta necessidade da natureza: ele não é determinado, mesmo por sua própria natureza. Assim ele não é dirigido por um instinto, como a abelha ou o castor. O vazio e a distância internas que o caracterizam neste sentido, não constituem portanto nem uma fuga fora da ordem natural, nem uma independência relativamente à natureza. Não é a contemplação da natureza, mas, 1) a acção sobre ela; 2) a troca de linguagem com outros a este propósito, que permitem decifrar a necessidade natural, as suas leis, de criar as ciências da natureza: noutros termos, em descobrir a razão natural. Mas nem tudo depende das ciências da natureza. Existe este domínio intermediário, onde os homens transformam os materiais com vistas em assegurar ou melhorar a sua própria existência: o domínio do trabalho. A ciência de referência - a economia política - comporta uma dimensão que contém a razão natural, pois não se pode fazer nem importa o quê com um material a transformar, nem o fazer importa como (é necessário aceitar, por exemplo, uma certa divisão do trabalho). Ela não vai constantemente sem uma outra dimensão, ela própria humana, que é o direito, ou a justiça. A economia política bem compreendida atingindo um regime da justiça é o lugar de reencontro da razão natural (que coloca um limite à damiurgidade humana) e da razão humana: ela é um exemplo privilegiado da razão prática. Mas o que é esta “razão humana”? Com ela, as coisas complicam-se, o que nos obrigará a regressar, para o complicar, justamente, sobre o que nós vínhamos dizer.
Existe, primeiramente, o que Proudhon chama a razão individual. Tão bem intencionada que ela possa ser, ela permanece sempre um pouco manchada de paixão pessoal, diz e repete Proudhon. A razão individual visa primeiro lugar o interesse pessoal. Isso pode ir até ao puro e simples refúgio ao levar em conta outrém e os seus interesses. Esta razão e o que a sub - entende - erguem-se então em absoluto. É preciso, para compreender o que tem lugar, seguir-se que a razão humana tem a redutível capacidade de valorizar, de erguer num último valor ou superior as coisas tais como o egoísmo, autoritarismo, ou a pura estética, por exemplo, estes “ideais” desprezam, ou podem desprezar, da verdade ou da realidade: eles desenvolvem-se em representações e em discursos fechados que fornecem uma justificação teórica aos egoísmos individuais, ou de grupo, ou de classe, ou de instituição. Estes ideais devem ser combatidos recorrendo à verdade, o que coloca um redutível problema, já que precisamente instalam-se, ou podem instalar-se, sobre uma negação de toda a realidade e de toda a verdade.
É aqui que as coisas fazem ricochete - é preciso voltar ao que nós já tínhamos dito. O estabelecimento e a progressão das ciências da natureza supõem indivíduos trocando entre si argumentos, portanto indivíduos desde logo introvertidos, pelo menos no domínio do fechamento sobre si. Descobrir a razão natural tem como condição um certo regime das relações inter-humanas. É dizer que estas ciências chocam de repente com os ideais “absolutistas” e, ao invés do que o nosso primeiro, antes de tudo deixava pensar, não se desenvolve sem conflito com a instituição religiosa por exemplo; Ele vai mesmo pela economia política, bem mais perto aqui do que ela, o conflito é interno e constitutivo: a economia política que Proudhon não deixou de combater desde O que é a Propriedade? Tem uma tendência para fixar-se nos egoísmos individuais que abandona ao “laisser – faire”. Esta economia política ignora a justiça e o direito - Não reencontra uma razão humana autêntica.
É certo que, para se desembaraçar dos ideais nocivos, ou pelo menos para moderar a sua influência, é preciso opor-lhe um ideal mais forte, que por vezes é um ideal efectivo, e oculta a verdade. O ideal em questão consiste em valorizar justamente a verdade, a procura da verdade e da justiça, assim que o tipo de bens humanos o permita. O ideal suplementar redobra-o que é valorizado. Ele será uma espécie por vezes prática (ele impregnará toda a sociedade) e teórica - já que ele orienta todos os esforços em direcção ao respeito e à busca da verdade. Este ideal é o da razão pública, que Proudhon definiu assim: ”guardiã de toda a verdade e de toda a justiça, centro e eixo de toda a razão particular, e sem qual a Fé pública, o que as gentes de negócios, num sentido mais restrito, chamam à confiança, bem precioso que todo o governo lisonjeia em dar, é impossível”. (2) Uma “fé pública”; o termo é singularmente forte…
A Justiça… é um livro todo ressonante de conflitos. Quer-se à partida, uma simples resposta a Eugéne de Mirecourt e à biografia mais ou menos cavalheira que ele faz de Proudhon; ele acaba por tomar a forma de uma gigantesca carta polémica a M. Matthieu. O inimigo e a Igreja, mas também mais que a Igreja: a Igreja desde que ela leve uma maneira de ver e de compreender o mundo, e em governar os corpos e os espíritos, que se entende bem mais além dela mesma e pode servir de paradigma a tudo o que é anti-revolucionário a tudo o que bloqueia, para, obstrui o desenvolvimento da justiça O comunismo, o jacobinismo, o consentimento liberal, o feudalismo industrial, o plebeísmo cesariano, acabarão por enumerar as figuras dos adversários e dos ideais - económicos, estéticos, políticos - último dos quais ele avança e se dissimula. Terá como consequência uma primeira maneira de estudar os conflitos na Justiça…, que considerava analisar como o livro é todo o tecido dos conflitos. Não é por este lado que eu desejo aqui dirigir-me.
Contra todos estes adversários, Proudhon propõe neste livro um esboço - um pouco mais que um esboço - de um bom regime sócio - político - que assenta sobre o direito, a justiça, a elaboração por todos a razão pública. Ora, este bom regime não é um regime brando, ele é um regime incluindo conflitos. O que faz a diferença com o momento onde Proudhon escreve é o que os conflitos serão, devem ser, de algum modo institucionalizados. O regime da justiça - da razão pública - inclui o conflito; o conflito surge de maneira constitutiva no reino da justiça. Existe a espécie, excepto os bons conflitos, pelo menos os conflitos inultrapasssáveis, fatais, por oposição sem dúvida aos conflitos ultrapassáveis que eu venho evocando. Há uma oportunidade de poder fazer a diferença entre os dois se e somente se começa por estudar os conflitos inultrapassáveis e constitutivos. O que eu proponho fazer.
A origem do conflito inultrapassável é sempre a mesma: ela reside na tensão entre a razão individual, que visa o interesse pessoal, e a razão colectiva, ou razão pública, mesmo e sobretudo o quanto esta razão colectiva ou pública é habitada e orientada pela ideia da justiça. Proudhon afirma claramente, existe uma diferença de qualidade e de poder entre razão pública e razão individual, (3) no benefício bem entendido da primeira. Diferença de qualidade, porque a razão pública não é nem a soma, nem a coligação das razões individuais (argumento que Proudhon utiliza na sua crítica do sufrágio universal); diferença de poder, como a força social (esta força, ligada à existência de um grupo, que o individualismo liberal recusa pagar porque ele não reconhece a existência) é maior que a força individual, que é pois um componente de uma força. A razão pública é superior em qualidade e em poder, mas será preciso que por outro lado ela seja de alguma força por nada a permitir das razões individuais - como a força social é formada a partir de forças individuais qualquer que seja toda a outra coisa que se lhe some ou mesmo, na ocorrência, que se sintetiza. (4) Se razão pública é formada a partir das razões individuais, ela não pode aboli-las sem suprimir-se ela mesma, ou pelo menos sem entorpecer-se, sem perder o movimento que a constitui e a faz viver. Não há movimento, de movimento de justiça, sem este reenvio perpétuo, esta tensão perpetuada, as razões individuais à razão pública. Consideremos a coisa mais perto, primeiro ao nível intra-psíquico, de seguida ao nível inter-psíquico.
O nível intra-psíquico, o nível da consciência, para usar vocabulário mais proudhoniano parece, desde que eu o apresente, primeiro paradoxal, já que ele surge à primeira vista poder passar-se de toda a exterioridade, de toda a razão pública. Aparecia somente como nós o vemos.
No primeiro estudo, Proudhon colocou o problema que o preocupa: “Quem formulará a lei? Quem dirá o direito e o dever?”. (5) Ele recusa que este seja a comunidade, ou que sejam as liberdades absolutizadas, ou que seja o princípio de utilidade. Ele responde que formular a lei, dizer o direito e o dever regressam à própria Justiça, como meio e fim tendo a sua própria realidade. Ele acrescenta: “a justiça sendo o produto da consciência, cada um se encontra juíz, em último caso, do bem ou do mal, e constituído em autoridade em frente de si mesmo e de outros”. (6)
A justiça tem uma realidade própria, e todavia ela é dita ser um produto da consciência. Para o compreender, é preciso passar pela análise de um desenvolvimento de Proudhon que se encontra no Segundo estudo, “As Pessoas”:
“Um amigo remete-me em depósito uma soma considerável, depois vem a morrer. Ninguém tem conhecimento do depósito, do qual nem mesmo o proprietário exigiu o recibo. Devolvo-lhe a soma?
Isso seria não conhecer o coração humano, negar que o primeiro movimento não foi um secreto desejo de guardar. O defunto não tem só parentes afastados, ricos, indignos, que ele não amava. Eu acreditei que se ele previu o seu fim, ele teria instituído o seu legado: a sua confiança é um testemunho. Porque falhei? Dos estrangeiros, a quem esta fortuna do acaso chegará como caída do céu! Porque não caiu ela sobre mim? Quem me dará conta? Quem saberá algo?
Eu reflecti, é verdade que a lei estabelecida não está obrigatoriamente de acordo com a minha avidez, que uma circunstância inatendida pode fazer descobrir o segredo, que eu sou desonrado, que não seria o mesmo um pequeno embaraço em explicar tal riqueza, etc.
Tudo isso deixou-me perplexo. Enfim, a minha consciência ergue-se: Digo que uma semelhante meditação é desde logo uma vergonha; que se a lei é imperfeita, se a prudência humana é errada, se o destino que enriqueceu uns e frustrou outros é absurdo, se este concurso de circunstâncias é imoral, como resultado eu não tenho o direito, e que todos os prazeres da riqueza mal adquirida não valem um quarto de hora da minha própria estima.
Breve, eu restituo o dinheiro.
Vocês vêm, escreve Le Rochefoucauld, que vocês têm sido homens honestos pelo egoísmo!…
Nós entendemos: sim, por egoísmo da justiça, o que é uma contradição nos termos, e reenvia completamente a nossa inculpação”. (7)
O exemplo do depósito é venerável, e encontra-se, entre outros autores, desde logo, junto de Kant, junto do qual ele revela a moral. Parece que junto de Proudhon, ele revela o direito, mas Proudhon confessa voluntariamente que o que ele chama direito não é mais que uma moral prolongada. É sempre nele que o exemplo se desenvolve em três momentos, que correspondem a tantos movimentos do sujeito. O primeiro movimento está cheio de egoísmo e de monopólio. Como ninguém sabe nada, eu regresso a um estado de solidão, uma espécie de estado de natureza. Proudhon sublinha que este movimento é inevitável, natural, espontâneo; aqui, a justiça não fala, ela permanece calada. O segundo movimento faz surgir uma exterioridade, a da lei. Notar-se-á que a legitimidade e a validade desta lei não parece identificar-se a elas. Aqui a lei intervém como pura força exterior com a qual é preciso contar, se assim for: parece que nós estamos no universo onde não reina verdadeiramente a justiça (a estrofe sobre os destinos que presidem a riqueza interpretam-se no mesmo sentido). Nós temos, com este segundo movimento, uma lógica do cálculo, mas do cálculo defensivo: é sempre o interesse puramente pessoal que domina; simplesmente, a questão torna-se: o meu interesse consiste em eu me apoderar do depósito, com o risco de perder toda a consideração, ou em restituir-lhe afim de conservar esta consideração?
O terceiro movimento é aquele onde a consciência “se eleva”. Eu não tenho o direito… O que é esta consciência? O consentimento ao qual eu sou mais profundo. E o que sou eu? Um ser desnaturado, responde Proudhon, “capaz de tomar partido pelos outros contra si mesmo…” Um ser capaz de descentrar-se suficientemente para apreender os seus interesses imediatos, como injustos; ele está formado, “do alto da sua primeira vontade, uma vontade jurídica, que eu chamaria mesmo sobrenatural, não que eu a transporte a uma causa transcendente ou divina, e que tende frequentemente a apagar“. (8) Este sobrenatural está acima da natureza, ainda que não transcendente, e reenvia a liberdade, que escapa à determinação, mesmo por si, mesmo porque o homem é como um simples ser natural.
Notar-se-à que esta vontade jurídica não surgiu mais que ao opôr-se a um primeiro movimento: o ser humano não é monoliticamente jurídico. Por outro lado, o segundo movimento, que iria em direcção a uma acção simplesmente conveniente, exteriormente conveniente, à justiça não chega. A acção verdadeiramente justa é uma acção segundo a justiça, em vista da justiça, o que supõe uma adesão íntima do sujeito à justiça - e não uma obediência por pena ou cálculo.
Objectar-se-à ao exemplo e à sua análise antes de mais, as coisas aí passam a vaso fechado; nenhuma necessidade aqui faz chamamento a uma razão pública: a consciência suficiente. É necessário responder, primeiramente, que nós somos ainda, com este texto, no início da Justiça…: Proudhon tem necessidade em mostrar que existe outra coisa no sujeito que um ser no estado de natureza seguindo os seus interesses. É preciso em seguida notar que se o sujeito do exemplo está isolado, não está igualmente num estado de solidão. Proudhon escrevera no segundo estudo: “a justiça é inerte numa existência solitária; ela tem necessidade, para agir, em desenvolver-se, uma consciência comum, aduela ou plural; é esta comunidade de consciência que, em última análise, faz toda a força da Justiça”. (9) O estado de solidão é quer um estado pré-social, que um estado, o de Robinson por exemplo, onde os problemas se regulam na ausência de outrém. O homem do depósito não revela nenhum destes casos: um estado momentâneo de isolamento não tem nada a ver com um estado de solidão. É dizer que a Justiça que fala e surge na consciência do homem em questão deve o seu desenvolvimento a uma “comunidade de consciência”, aos benefícios inter -humanos nos quais ele viveu.
Não é preciso deduzir que a Justiça se impunha do exterior ao sujeito, que acabaria por interiorizá-lo, sobre o modelo do “sobre-mim” freudiano. O modelo proudhoniano é outro. A Justiça está no sujeito ao estado virtual; este virtual só se desenvolve através dos bens humanos efectivos. Isso são estes bens que acordam a consciência, a qual, sem eles, demora a acalmar.
Que o sentimento de justiça não se desenvolve só através dos bens humanos isso não significa de todo que a justiça se encontra em todos os factos incarnada nas leis. As leis reinantes podem ser injustas - o que impede o sentimento de justiça em estar presente por outro modo: como seria possível, senão, em apreender-se e dizer que as leis são injustas - e que portanto o sujeito não pode ai aderir intimamente? Assim, para Proudhon, a Revolução e a razão pública, embora maltratadas, reprimidas, injuriadas, não estão mesmo activas: repete retomadas vezes que não fala no seu próprio nome, mas que é o seu porta-voz… É por adesão a que autênticas relações humanas desenvolveram em si, que o sujeito do depósito pode conduzir-se segundo a sua “vontade jurídica”…
Bem forte, objectar-se-à de novo, mas é recuar para melhor saltar. O sujeito no qual ele se agita é no fundo tomado entre um mundo injusto, onde existem os ricos, as leis mais ou menos válidas, etc., e uma aspiração à Justiça. Uma vez que se terá entrado no verdadeiro reino da Justiça, os homens seguirão frequentemente, “naturalmente”, sem conflito, a vontade jurídica: eles terão “naturalizado o sobrenatural. Desde logo, o que é apresentado como um conflito fatal, inultrapassável, entre razão individual e razão pública, nunca é mais que um resto do passado que a revolução manifestando-se reduzia pouco a pouco a nada.
A objecção é forte, e merece consideração. Seria necessário para aí responder adequadamente, mobilizar todo o debate proudhoniano com a economia política, as memórias sobre a propriedade na Criação da Ordem e na Ideia geral da Revolução. Eu não posso aqui tomar um abreviado, referindo-me a um texto do primeiro estudo composto de A Justiça… (10) Este texto começa por estabelecer que se considera o sujeito isoladamente, ele é o seu próprio servidor; ele suborna a natureza; a sua dignidade e a sua felicidade são a sua única lei: “a contradição não surge em nenhuma parte”, comenta Proudhon. Tudo muda quando se considera o sujeito nos seus bens com os seus semelhantes. Além das diferenças de costumes, os indivíduos procuram sempre a felicidade. Ora, chega todos os dias que os interesses estejam em “oposição diametral”. A questão torna-se: “como conciliar estes interesses divergentes (…) Como satisfazer ao mesmo tempo as vontades antagónicas, exigindo cada uma o que é o objecto da reclamação dos outros?”
A saída está, note-se, nos interesses individuais. O problema não suporta o seu bem-fundado, mas a sua possível conciliação. Duas soluções vão ser evocadas e em seguida revogadas. A primeira é a hipótese comunista: o indivíduo absorve-se na colectividade. Desde logo, ele não tem mais direitos, mais existência jurídica: ele agita-se em “dominar o indivíduo, afim de dar a massa livre”: (11) tirania mística e anónima. A segunda hipótese é a da liberdade ilimitada de todos: livre-câmbio, permissão. Se existem desarmonias, elas viriam da “ingerência da autoridade nas coisas que não são da sua competência, da mania em regulamentar e legislar”. (12) Fora disso, os interesses harmonizam-se infalivelmente. Isso não é resolver a dificuldade, “é negar que ela existe”, comenta Proudhon. E acrescenta que a teoria seria verdadeira se os interesses pudessem ser fixados uma vez por todas e rigorosamente definidos, se tivessem sido iguais à partida e tivessem caminhado em seguida com um passo igual.
Existe seguramente uma terceira hipótese, aquela, justamente, da Justiça. Ela consiste em partir de igual dignidade em todos, “abstracção feita das capacidade, as quedas merecidas”, e o que quer que custe às antipatias, às rivalidades, à oposição das ideias e dos interesses”. Segue-se um segundo princípio; “a tendência do homem À apropriação é, como a dignidade na qual emana, absoluta e sem limite. Convém dar direito a esta tendência, junto de todos os sujeitos, mas sob algumas condições que servem para constatar a propriedade de cada um e distingui-la da de outrém”. (13) A propriedade é legítima (inviolável, e garantida pelo “poder político”) se ela é adquirida por uso capião, trabalho, compra, sucessão, prescrição, etc a apropriação é aqui apresentada como uma “emanação” da dignidade; ela deve pois arrebatar algo da igualdade como arrebata a primeira. Assim os contratos passados entre sujeitos destes direitos serão contratos iguais, a igualdade transportando-se aos serviços ou objectos trocados. “Sem limite” não significa que a propriedade pode entender-se indefinidamente, mas que, nos limites fixados pela igualdade, ela é intocável por algum poder que seja. Embora justiça, o interessa é informado e limitado pelos princípios fundamentais do direito, ou seja, a dignidade e a igualdade que se deduzem.
Isso parece ir exactamente no sentido do suposto contraditório. Proudhon, todavia, não deixa de repetir que o egoísmo tem em si mesmo uma certa legitimidade. Que pode ser o egoísmo, senão a ignorância ou esquecimento do outro como igual? Então, o desejo de monopolizar autonomiza-se relativamente à igualdade e à reciprocidade. O egoísmo só pode ser verdadeiramente legitimado no quadro da igualdade e da reciprocidade. Desde logo, ao conceder-lhe uma “certa” legitimidade significa que há um “certo” valor por si mesmo, fora deste quadro. A procura egoísta do interesse pertence à natureza humana. Poder-se-ia contentar em dizer que se manifesta assim um realismo de Proudhon quanto ao que são os homens; isso é injusto, mas insuficiente. Existe outra coisa. Primeiramente, o reconhecimento da liberdade no homem: as faculdades do homem são, afirma Proudhon, em luta umas contra as outras: elas não estão hierarquizadas de uma vez por todas. De seguida, o cuidado em não fazer depender tudo da lei: é necessário, ao inverso, que a iniciativa venha e continue a vir dos indivíduos. Porque é que eles estão aborrecidos, se isto não é do interesse egoísta? Os interesses, e as naturezas (humanas) que os levam, só podem chocar-se. Pode-se recusar estes choques, ignorá-los, abandoná-los À sorte: recai-se então no individualismo liberal. Pode-se, inversamente, apreender que estes choques são susceptíveis de ser a ocasião através da qual o outro aparecia como um igual em dignidade. Fazer uma lei sobre a desigualdade não significa, seguramente, impedir estes choques; isso significa informá-los primeiro, indicar às naturezas por qual sobre natureza elas podem conciliar-se. a lei fornece uma referência que permite àquele que se sente lesado, apelar à lei, apelar à igualdade e à reciprocidade: Esse aspecto surge quer na discussão e no entendimento final de homem para homem, quer por um recurso diante da justiça propriamente dita: há então apelo a um terceiro, Estado ou júri. Também há por vezes antagonismo e complementarismo entre o interesse egoísta e a Justiça. Os dois princípios de que fala Proudhon na passagem evocada servem de algum modo para atrair este processo de complementariedade antagónica.
Falando do intra-psíquico, nós já tínhamos reencontrado o inter-psíquico. É lógico: no fundo, o sujeito jurídico não é o tal porque não é só ele que reconhece os direitos iguais para os outros. O facto é tanto mais impressionante no caso do homem do depósito que os outros reais são por assim dizer neutralizados: o amigo está morto, os seus herdeiros são desconhecidos, indigentes ou indiferentes. Resta a pura forma desprovida do outro, o ombro amigo, ou qualquer um será o herdeiro, a quem eu devo restituir…
É no capítulo VI do sétimo estudo (sobre “As Ideias”) que Proudhon aborda de frente o problema ao que ele chama de “constituição da razão pública”. No título do capítulo, a expressão é precedida por estas palavras: “Disciplina intelectual, ou método de eliminação do Absoluto depois dos princípios da Revolução”. Eliminar o absoluto: eliminar o que se barrica por último nos discursos da transcendência ou da autoridade, pois dá-se de improviso como indiscutível; eliminar também o que se dissimula em último dos ideais sedutores, mas que não têm nada a ver com o verdadeiro ou o real.
O capítulo começa por uma alusão a Aristóteles dizendo que o teatro tem como objecto purificar as paixões. Mesmo, Proudhon diz procurar “um meio para purificar as ideias”. (14) A teatralização aristotélica encontra o seu pendente na publicidade da razão. Público opõe-se ao privado, ao particular, ao secreto. É público o que não pertence a ninguém em particular, a nenhuma pessoa privada, e que está aberta a todos, visível por todos e para todos. Ele agita-se, com Proudhon, na razão pública, não na opinião pública. O conceito de opinião sub-entende algo de flutuante, que orienta ou desorienta as circunstâncias. Falar de razão, é, inversamente, sub-entender que um laço persiste e insiste com a verdade. O que se agita em purificar, eliminar, precisamente, é a fuga fora da verdade, as constituições de ilhas pessoais ou supra-pessoais de certeza que se absolutizam.
Qual é o princípio destas “absolutizações”? Reencontramos sob a pluma de Proudhon as afirmações similares àquelas que nós já conhecemos. O homem, afirma, é um livre absoluto, livre no sentido que ele pode dizer “eu”: “na qualidade de livre absoluto, o homem tende a subordinar tudo o que o envolve, coisas e pessoas, os seres e as suas leis, a verdade teórica e a verdade empírica, o pensamento como a inércia, a consciência e o amor como a estupidez e egoísmo”. (15) Quem raciocina, quem coloca em si o centro e princípio universal, tende a tornar-se uma dedução de si mesmo. Breve, a razão individual é por essência absolutista. A simples lógica mostra que ela envolve uma rejeição do social, a sua destruição permanente.
Como sair? Opondo o absoluto ao absoluto. “É o que se chama vulgarmente liberdade das opiniões ou liberdade de imprensa”. (16) Os absolutos exprimindo-se querem chocar-se uns contra os outros. Falando da Revolução e das suas “declarações”, Proudhon escreve: “ela suscitou, como garantia suprema de verdade e de Justiça, o quê? a guerra civil das ideias, o antagonismo dos julgamentos”. (17) Mesmo que a vida da alma seja dada à oposição das faculdades, mesmo que a vida da sociedade esteja “na oposição dos poderes nos quais se compõe o grupo social, citados, corporações, famílias, individualidades”. (18)
A referência à Revolução, e em particular à Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, indica que o modelo provém da filosofia das Luzes. Não se pode pensar no texto de Kant, intitulado: Resposta à questão: o que é que são as Luzes? que articula três princípios:
Um princípio de actividade: eu só desenvolvo a minha razão tomando a iniciativa, que eu ensaio;
Um princípio de manifestação: eu não avançaria no perfeccionismo da razão e na maturação que eu ouso exprimir, a minha expressão expõe-se fogo da crítica de outrém;
Um princípio de reflexão, pelo qual eu tomo esta crítica para rectificar ou aprofundar o meu pensamento.
O modelo explícito de Proudhon está todavia emprestado à constituição do pensamento científico. Um sábio existe se e somente se existem outros sábios que retomem as suas hipóteses, discutem-nas, criticam-nas, aperfeiçoam-nas ou rejeitam-nas… Da troca nasce, por outras hipóteses, também a exploração da verdade progressiva. Este papel de mediação, ou de acerto, da verdade, é importante. Entre os absolutos e por sua oposição surge um espaço de verdade; de verdade relativa a quê? a necessidade natural para as ciências da natureza, a necessidade social para a razão pública: descobrem-se os benefícios que devem reger a sociedade para que ela seja uma autêntica sociedade. Estas relações são relações jurídicas. Todavia, o que produz os choques entre razões individuais é outra coisa que elas, um outro tipo de razão que não modifica a sua essência e a sua energia a razões individuais, que se encontram somente limitadas nas suas pretensões a todo o reger. Certamente, à medida que as coisas evoluem, a razão pública acredita e aperfeiçoa-se a si mesma; sem dúvida, graças a esta evolução, os indivíduos desenvolvem primeiro sempre as suas capacidades de sujeitos jurídicos. Ele não permanece muito nas razões individuais que persiste em existir na sua diferença e no seu abolutismo.
A razão pública transforma as coisas: “a propriedade, balançada pela propriedade, quase sempre absoluta no proprietário, resolve-se diante da razão pública numa pura delegação; o crédito, sempre interessado junto do emprestador, numa mutualidade sem interesse; o comércio, agiota por natureza, numa igual troca; o governo, imperativo por essência, numa balança de forças…” Mas Proudhon acrescenta: “… esta conversação não importa, anota-o bem, condenação da individualidade; ela supõe-a. Homens, cidadãos, trabalhadores, dizem-nos esta Razão colectiva, verdadeiramente prática e jurídica, permaneçam cada um o que vós sois; conservem, desenvolvam a vossa personalidade; defendam os vossos interesses; produzam o vosso pensamento; cultivem esta razão particular na qual a tirania exorbitante faz-vos hoje tanto mal; discutam uns com os outros; dirijam-se uns para os outros, aproximem-se; respeitem somente as decisões da vossa razão comum, na qual os julgamentos não podem ser os vossos, ela está liberta deste absoluto sem o qual vocês só seriam sombras”. (19)
A razão pública exige às razões individuais preservar o seu ser. É afirmar uma vez mais que a razão individual é irredutível com a razão pública. Existe uma dimensão anti-social do homem, uma medida que lhe é própria, e que respeita, colocando-se fora da sociedade e dos poderes sociais. O social tece-se, poderia dizer-se, entre estes pontos anti-sociais, é a sua limitação uns pelos outros, de onde nasce o direito. Limitação não é absorção; se existe absorção, a lei regeria tudo, e o sistema imobilizar-se-ia, é preciso acrescentar que é impossível assimilar o sujeito jurídico a uma criação do social; nós tínhamos visto, o sujeito jurídico descobre-se, auto-descobre-se, graças ao social, ou por meio do social. Isso significa que um tal sujeito pode eventualmente opor-se à razão pública ambiente primeiro ao nome da justiça. É portanto de duas maneiras que o indivíduo pode opor-se ao social e à razão pública: pelo seu lado infra social; pelo seu lado, poder-se-ia dizer, supra-social.
Entretanto, como “funciona” a razão pública? Ela não parece exprimir-se, ou pelo menos exprimir-se essencialmente, em leis. Ela é sobretudo comparável a um ambiente, a uma atmosfera, a um sentido comum, a um estado de espírito reinante, que informa de algum modo por impregnação, as atitudes dos indivíduos logo que eles entrem em relações uns com os outros. Ela é o direito na qualidade que ele envolve as mentalidades, ou se preferir o espírito da Justiça, que deverá seguramente, apesar de se colocar um problema concreto, especificar-se, formar-se, aprofundar-se, afim de arranjar uma solução. Ela é menos Justiça tanto nas leis ou sistema de leis como a Justiça na ideia. A ideia permanece informulável como tal, ela não se formula e não se específica apesar dela dirigir-se a casos precisos que são sempre, ao mesmo tempo, casos particulares.
Vê-se a maneira como os conflitos são constitutivos da Justiça. Mas trata-se de certos conflitos. O conflito com a Igreja que estrutura de parte em parte. A Justiça,,,, o conflito de classe, sempre mais ou menos latente, fazem eles parte destes conflitos constitutivos, ou devem sobretudo ser eliminados, eles e os seus efeitos, afim de liberar o campo à constituição da razão pública? O poder da Igreja, o poder de uma classe, tem por efeito notável o silêncio, a mudez popular. É evidente que será necessário levar este efeito para entrar no processo jurídico: será preciso que o povo aceda à palavra, afim que ele participe na constituição da razão pública. Será suficiente denunciar um tal efeito sobre o lugar público, por tornar explícito os conflitos latentes, para que, de negadores da Justiça que eles eram, tornarem-se as energias constitutivas? É pelo menos uma questão que exigiria um outro trabalho.
O autor falava um pouco antes da “primeira antinomia”, da “polaridade do universo”. Necessidade e livre arbítrio estão por vezes opostos e unidos, opostos na união ou unidos na oposição. Entre eles reina, senão o conflito, no mínimo a tensão, uma tensão entre pôlos irreconciliáveis. A hipótese segundo a qual existe um livre arbítrio dá conta da existência das ciências da natureza e da existência da humanidade. A necessidade reenvia ao que é possível chamar de “força das coisas”, a razão das coisas: a razão sendo ela inerente às coisas, necessidade objectiva da natureza.
O homem é o único ser que escapa a esta necessidade da natureza: ele não é determinado, mesmo por sua própria natureza. Assim ele não é dirigido por um instinto, como a abelha ou o castor. O vazio e a distância internas que o caracterizam neste sentido, não constituem portanto nem uma fuga fora da ordem natural, nem uma independência relativamente à natureza. Não é a contemplação da natureza, mas, 1) a acção sobre ela; 2) a troca de linguagem com outros a este propósito, que permitem decifrar a necessidade natural, as suas leis, de criar as ciências da natureza: noutros termos, em descobrir a razão natural. Mas nem tudo depende das ciências da natureza. Existe este domínio intermediário, onde os homens transformam os materiais com vistas em assegurar ou melhorar a sua própria existência: o domínio do trabalho. A ciência de referência - a economia política - comporta uma dimensão que contém a razão natural, pois não se pode fazer nem importa o quê com um material a transformar, nem o fazer importa como (é necessário aceitar, por exemplo, uma certa divisão do trabalho). Ela não vai constantemente sem uma outra dimensão, ela própria humana, que é o direito, ou a justiça. A economia política bem compreendida atingindo um regime da justiça é o lugar de reencontro da razão natural (que coloca um limite à damiurgidade humana) e da razão humana: ela é um exemplo privilegiado da razão prática. Mas o que é esta “razão humana”? Com ela, as coisas complicam-se, o que nos obrigará a regressar, para o complicar, justamente, sobre o que nós vínhamos dizer.
Existe, primeiramente, o que Proudhon chama a razão individual. Tão bem intencionada que ela possa ser, ela permanece sempre um pouco manchada de paixão pessoal, diz e repete Proudhon. A razão individual visa primeiro lugar o interesse pessoal. Isso pode ir até ao puro e simples refúgio ao levar em conta outrém e os seus interesses. Esta razão e o que a sub - entende - erguem-se então em absoluto. É preciso, para compreender o que tem lugar, seguir-se que a razão humana tem a redutível capacidade de valorizar, de erguer num último valor ou superior as coisas tais como o egoísmo, autoritarismo, ou a pura estética, por exemplo, estes “ideais” desprezam, ou podem desprezar, da verdade ou da realidade: eles desenvolvem-se em representações e em discursos fechados que fornecem uma justificação teórica aos egoísmos individuais, ou de grupo, ou de classe, ou de instituição. Estes ideais devem ser combatidos recorrendo à verdade, o que coloca um redutível problema, já que precisamente instalam-se, ou podem instalar-se, sobre uma negação de toda a realidade e de toda a verdade.
É aqui que as coisas fazem ricochete - é preciso voltar ao que nós já tínhamos dito. O estabelecimento e a progressão das ciências da natureza supõem indivíduos trocando entre si argumentos, portanto indivíduos desde logo introvertidos, pelo menos no domínio do fechamento sobre si. Descobrir a razão natural tem como condição um certo regime das relações inter-humanas. É dizer que estas ciências chocam de repente com os ideais “absolutistas” e, ao invés do que o nosso primeiro, antes de tudo deixava pensar, não se desenvolve sem conflito com a instituição religiosa por exemplo; Ele vai mesmo pela economia política, bem mais perto aqui do que ela, o conflito é interno e constitutivo: a economia política que Proudhon não deixou de combater desde O que é a Propriedade? Tem uma tendência para fixar-se nos egoísmos individuais que abandona ao “laisser – faire”. Esta economia política ignora a justiça e o direito - Não reencontra uma razão humana autêntica.
É certo que, para se desembaraçar dos ideais nocivos, ou pelo menos para moderar a sua influência, é preciso opor-lhe um ideal mais forte, que por vezes é um ideal efectivo, e oculta a verdade. O ideal em questão consiste em valorizar justamente a verdade, a procura da verdade e da justiça, assim que o tipo de bens humanos o permita. O ideal suplementar redobra-o que é valorizado. Ele será uma espécie por vezes prática (ele impregnará toda a sociedade) e teórica - já que ele orienta todos os esforços em direcção ao respeito e à busca da verdade. Este ideal é o da razão pública, que Proudhon definiu assim: ”guardiã de toda a verdade e de toda a justiça, centro e eixo de toda a razão particular, e sem qual a Fé pública, o que as gentes de negócios, num sentido mais restrito, chamam à confiança, bem precioso que todo o governo lisonjeia em dar, é impossível”. (2) Uma “fé pública”; o termo é singularmente forte…
A Justiça… é um livro todo ressonante de conflitos. Quer-se à partida, uma simples resposta a Eugéne de Mirecourt e à biografia mais ou menos cavalheira que ele faz de Proudhon; ele acaba por tomar a forma de uma gigantesca carta polémica a M. Matthieu. O inimigo e a Igreja, mas também mais que a Igreja: a Igreja desde que ela leve uma maneira de ver e de compreender o mundo, e em governar os corpos e os espíritos, que se entende bem mais além dela mesma e pode servir de paradigma a tudo o que é anti-revolucionário a tudo o que bloqueia, para, obstrui o desenvolvimento da justiça O comunismo, o jacobinismo, o consentimento liberal, o feudalismo industrial, o plebeísmo cesariano, acabarão por enumerar as figuras dos adversários e dos ideais - económicos, estéticos, políticos - último dos quais ele avança e se dissimula. Terá como consequência uma primeira maneira de estudar os conflitos na Justiça…, que considerava analisar como o livro é todo o tecido dos conflitos. Não é por este lado que eu desejo aqui dirigir-me.
Contra todos estes adversários, Proudhon propõe neste livro um esboço - um pouco mais que um esboço - de um bom regime sócio - político - que assenta sobre o direito, a justiça, a elaboração por todos a razão pública. Ora, este bom regime não é um regime brando, ele é um regime incluindo conflitos. O que faz a diferença com o momento onde Proudhon escreve é o que os conflitos serão, devem ser, de algum modo institucionalizados. O regime da justiça - da razão pública - inclui o conflito; o conflito surge de maneira constitutiva no reino da justiça. Existe a espécie, excepto os bons conflitos, pelo menos os conflitos inultrapasssáveis, fatais, por oposição sem dúvida aos conflitos ultrapassáveis que eu venho evocando. Há uma oportunidade de poder fazer a diferença entre os dois se e somente se começa por estudar os conflitos inultrapassáveis e constitutivos. O que eu proponho fazer.
A origem do conflito inultrapassável é sempre a mesma: ela reside na tensão entre a razão individual, que visa o interesse pessoal, e a razão colectiva, ou razão pública, mesmo e sobretudo o quanto esta razão colectiva ou pública é habitada e orientada pela ideia da justiça. Proudhon afirma claramente, existe uma diferença de qualidade e de poder entre razão pública e razão individual, (3) no benefício bem entendido da primeira. Diferença de qualidade, porque a razão pública não é nem a soma, nem a coligação das razões individuais (argumento que Proudhon utiliza na sua crítica do sufrágio universal); diferença de poder, como a força social (esta força, ligada à existência de um grupo, que o individualismo liberal recusa pagar porque ele não reconhece a existência) é maior que a força individual, que é pois um componente de uma força. A razão pública é superior em qualidade e em poder, mas será preciso que por outro lado ela seja de alguma força por nada a permitir das razões individuais - como a força social é formada a partir de forças individuais qualquer que seja toda a outra coisa que se lhe some ou mesmo, na ocorrência, que se sintetiza. (4) Se razão pública é formada a partir das razões individuais, ela não pode aboli-las sem suprimir-se ela mesma, ou pelo menos sem entorpecer-se, sem perder o movimento que a constitui e a faz viver. Não há movimento, de movimento de justiça, sem este reenvio perpétuo, esta tensão perpetuada, as razões individuais à razão pública. Consideremos a coisa mais perto, primeiro ao nível intra-psíquico, de seguida ao nível inter-psíquico.
O nível intra-psíquico, o nível da consciência, para usar vocabulário mais proudhoniano parece, desde que eu o apresente, primeiro paradoxal, já que ele surge à primeira vista poder passar-se de toda a exterioridade, de toda a razão pública. Aparecia somente como nós o vemos.
No primeiro estudo, Proudhon colocou o problema que o preocupa: “Quem formulará a lei? Quem dirá o direito e o dever?”. (5) Ele recusa que este seja a comunidade, ou que sejam as liberdades absolutizadas, ou que seja o princípio de utilidade. Ele responde que formular a lei, dizer o direito e o dever regressam à própria Justiça, como meio e fim tendo a sua própria realidade. Ele acrescenta: “a justiça sendo o produto da consciência, cada um se encontra juíz, em último caso, do bem ou do mal, e constituído em autoridade em frente de si mesmo e de outros”. (6)
A justiça tem uma realidade própria, e todavia ela é dita ser um produto da consciência. Para o compreender, é preciso passar pela análise de um desenvolvimento de Proudhon que se encontra no Segundo estudo, “As Pessoas”:
“Um amigo remete-me em depósito uma soma considerável, depois vem a morrer. Ninguém tem conhecimento do depósito, do qual nem mesmo o proprietário exigiu o recibo. Devolvo-lhe a soma?
Isso seria não conhecer o coração humano, negar que o primeiro movimento não foi um secreto desejo de guardar. O defunto não tem só parentes afastados, ricos, indignos, que ele não amava. Eu acreditei que se ele previu o seu fim, ele teria instituído o seu legado: a sua confiança é um testemunho. Porque falhei? Dos estrangeiros, a quem esta fortuna do acaso chegará como caída do céu! Porque não caiu ela sobre mim? Quem me dará conta? Quem saberá algo?
Eu reflecti, é verdade que a lei estabelecida não está obrigatoriamente de acordo com a minha avidez, que uma circunstância inatendida pode fazer descobrir o segredo, que eu sou desonrado, que não seria o mesmo um pequeno embaraço em explicar tal riqueza, etc.
Tudo isso deixou-me perplexo. Enfim, a minha consciência ergue-se: Digo que uma semelhante meditação é desde logo uma vergonha; que se a lei é imperfeita, se a prudência humana é errada, se o destino que enriqueceu uns e frustrou outros é absurdo, se este concurso de circunstâncias é imoral, como resultado eu não tenho o direito, e que todos os prazeres da riqueza mal adquirida não valem um quarto de hora da minha própria estima.
Breve, eu restituo o dinheiro.
Vocês vêm, escreve Le Rochefoucauld, que vocês têm sido homens honestos pelo egoísmo!…
Nós entendemos: sim, por egoísmo da justiça, o que é uma contradição nos termos, e reenvia completamente a nossa inculpação”. (7)
O exemplo do depósito é venerável, e encontra-se, entre outros autores, desde logo, junto de Kant, junto do qual ele revela a moral. Parece que junto de Proudhon, ele revela o direito, mas Proudhon confessa voluntariamente que o que ele chama direito não é mais que uma moral prolongada. É sempre nele que o exemplo se desenvolve em três momentos, que correspondem a tantos movimentos do sujeito. O primeiro movimento está cheio de egoísmo e de monopólio. Como ninguém sabe nada, eu regresso a um estado de solidão, uma espécie de estado de natureza. Proudhon sublinha que este movimento é inevitável, natural, espontâneo; aqui, a justiça não fala, ela permanece calada. O segundo movimento faz surgir uma exterioridade, a da lei. Notar-se-á que a legitimidade e a validade desta lei não parece identificar-se a elas. Aqui a lei intervém como pura força exterior com a qual é preciso contar, se assim for: parece que nós estamos no universo onde não reina verdadeiramente a justiça (a estrofe sobre os destinos que presidem a riqueza interpretam-se no mesmo sentido). Nós temos, com este segundo movimento, uma lógica do cálculo, mas do cálculo defensivo: é sempre o interesse puramente pessoal que domina; simplesmente, a questão torna-se: o meu interesse consiste em eu me apoderar do depósito, com o risco de perder toda a consideração, ou em restituir-lhe afim de conservar esta consideração?
O terceiro movimento é aquele onde a consciência “se eleva”. Eu não tenho o direito… O que é esta consciência? O consentimento ao qual eu sou mais profundo. E o que sou eu? Um ser desnaturado, responde Proudhon, “capaz de tomar partido pelos outros contra si mesmo…” Um ser capaz de descentrar-se suficientemente para apreender os seus interesses imediatos, como injustos; ele está formado, “do alto da sua primeira vontade, uma vontade jurídica, que eu chamaria mesmo sobrenatural, não que eu a transporte a uma causa transcendente ou divina, e que tende frequentemente a apagar“. (8) Este sobrenatural está acima da natureza, ainda que não transcendente, e reenvia a liberdade, que escapa à determinação, mesmo por si, mesmo porque o homem é como um simples ser natural.
Notar-se-à que esta vontade jurídica não surgiu mais que ao opôr-se a um primeiro movimento: o ser humano não é monoliticamente jurídico. Por outro lado, o segundo movimento, que iria em direcção a uma acção simplesmente conveniente, exteriormente conveniente, à justiça não chega. A acção verdadeiramente justa é uma acção segundo a justiça, em vista da justiça, o que supõe uma adesão íntima do sujeito à justiça - e não uma obediência por pena ou cálculo.
Objectar-se-à ao exemplo e à sua análise antes de mais, as coisas aí passam a vaso fechado; nenhuma necessidade aqui faz chamamento a uma razão pública: a consciência suficiente. É necessário responder, primeiramente, que nós somos ainda, com este texto, no início da Justiça…: Proudhon tem necessidade em mostrar que existe outra coisa no sujeito que um ser no estado de natureza seguindo os seus interesses. É preciso em seguida notar que se o sujeito do exemplo está isolado, não está igualmente num estado de solidão. Proudhon escrevera no segundo estudo: “a justiça é inerte numa existência solitária; ela tem necessidade, para agir, em desenvolver-se, uma consciência comum, aduela ou plural; é esta comunidade de consciência que, em última análise, faz toda a força da Justiça”. (9) O estado de solidão é quer um estado pré-social, que um estado, o de Robinson por exemplo, onde os problemas se regulam na ausência de outrém. O homem do depósito não revela nenhum destes casos: um estado momentâneo de isolamento não tem nada a ver com um estado de solidão. É dizer que a Justiça que fala e surge na consciência do homem em questão deve o seu desenvolvimento a uma “comunidade de consciência”, aos benefícios inter -humanos nos quais ele viveu.
Não é preciso deduzir que a Justiça se impunha do exterior ao sujeito, que acabaria por interiorizá-lo, sobre o modelo do “sobre-mim” freudiano. O modelo proudhoniano é outro. A Justiça está no sujeito ao estado virtual; este virtual só se desenvolve através dos bens humanos efectivos. Isso são estes bens que acordam a consciência, a qual, sem eles, demora a acalmar.
Que o sentimento de justiça não se desenvolve só através dos bens humanos isso não significa de todo que a justiça se encontra em todos os factos incarnada nas leis. As leis reinantes podem ser injustas - o que impede o sentimento de justiça em estar presente por outro modo: como seria possível, senão, em apreender-se e dizer que as leis são injustas - e que portanto o sujeito não pode ai aderir intimamente? Assim, para Proudhon, a Revolução e a razão pública, embora maltratadas, reprimidas, injuriadas, não estão mesmo activas: repete retomadas vezes que não fala no seu próprio nome, mas que é o seu porta-voz… É por adesão a que autênticas relações humanas desenvolveram em si, que o sujeito do depósito pode conduzir-se segundo a sua “vontade jurídica”…
Bem forte, objectar-se-à de novo, mas é recuar para melhor saltar. O sujeito no qual ele se agita é no fundo tomado entre um mundo injusto, onde existem os ricos, as leis mais ou menos válidas, etc., e uma aspiração à Justiça. Uma vez que se terá entrado no verdadeiro reino da Justiça, os homens seguirão frequentemente, “naturalmente”, sem conflito, a vontade jurídica: eles terão “naturalizado o sobrenatural. Desde logo, o que é apresentado como um conflito fatal, inultrapassável, entre razão individual e razão pública, nunca é mais que um resto do passado que a revolução manifestando-se reduzia pouco a pouco a nada.
A objecção é forte, e merece consideração. Seria necessário para aí responder adequadamente, mobilizar todo o debate proudhoniano com a economia política, as memórias sobre a propriedade na Criação da Ordem e na Ideia geral da Revolução. Eu não posso aqui tomar um abreviado, referindo-me a um texto do primeiro estudo composto de A Justiça… (10) Este texto começa por estabelecer que se considera o sujeito isoladamente, ele é o seu próprio servidor; ele suborna a natureza; a sua dignidade e a sua felicidade são a sua única lei: “a contradição não surge em nenhuma parte”, comenta Proudhon. Tudo muda quando se considera o sujeito nos seus bens com os seus semelhantes. Além das diferenças de costumes, os indivíduos procuram sempre a felicidade. Ora, chega todos os dias que os interesses estejam em “oposição diametral”. A questão torna-se: “como conciliar estes interesses divergentes (…) Como satisfazer ao mesmo tempo as vontades antagónicas, exigindo cada uma o que é o objecto da reclamação dos outros?”
A saída está, note-se, nos interesses individuais. O problema não suporta o seu bem-fundado, mas a sua possível conciliação. Duas soluções vão ser evocadas e em seguida revogadas. A primeira é a hipótese comunista: o indivíduo absorve-se na colectividade. Desde logo, ele não tem mais direitos, mais existência jurídica: ele agita-se em “dominar o indivíduo, afim de dar a massa livre”: (11) tirania mística e anónima. A segunda hipótese é a da liberdade ilimitada de todos: livre-câmbio, permissão. Se existem desarmonias, elas viriam da “ingerência da autoridade nas coisas que não são da sua competência, da mania em regulamentar e legislar”. (12) Fora disso, os interesses harmonizam-se infalivelmente. Isso não é resolver a dificuldade, “é negar que ela existe”, comenta Proudhon. E acrescenta que a teoria seria verdadeira se os interesses pudessem ser fixados uma vez por todas e rigorosamente definidos, se tivessem sido iguais à partida e tivessem caminhado em seguida com um passo igual.
Existe seguramente uma terceira hipótese, aquela, justamente, da Justiça. Ela consiste em partir de igual dignidade em todos, “abstracção feita das capacidade, as quedas merecidas”, e o que quer que custe às antipatias, às rivalidades, à oposição das ideias e dos interesses”. Segue-se um segundo princípio; “a tendência do homem À apropriação é, como a dignidade na qual emana, absoluta e sem limite. Convém dar direito a esta tendência, junto de todos os sujeitos, mas sob algumas condições que servem para constatar a propriedade de cada um e distingui-la da de outrém”. (13) A propriedade é legítima (inviolável, e garantida pelo “poder político”) se ela é adquirida por uso capião, trabalho, compra, sucessão, prescrição, etc a apropriação é aqui apresentada como uma “emanação” da dignidade; ela deve pois arrebatar algo da igualdade como arrebata a primeira. Assim os contratos passados entre sujeitos destes direitos serão contratos iguais, a igualdade transportando-se aos serviços ou objectos trocados. “Sem limite” não significa que a propriedade pode entender-se indefinidamente, mas que, nos limites fixados pela igualdade, ela é intocável por algum poder que seja. Embora justiça, o interessa é informado e limitado pelos princípios fundamentais do direito, ou seja, a dignidade e a igualdade que se deduzem.
Isso parece ir exactamente no sentido do suposto contraditório. Proudhon, todavia, não deixa de repetir que o egoísmo tem em si mesmo uma certa legitimidade. Que pode ser o egoísmo, senão a ignorância ou esquecimento do outro como igual? Então, o desejo de monopolizar autonomiza-se relativamente à igualdade e à reciprocidade. O egoísmo só pode ser verdadeiramente legitimado no quadro da igualdade e da reciprocidade. Desde logo, ao conceder-lhe uma “certa” legitimidade significa que há um “certo” valor por si mesmo, fora deste quadro. A procura egoísta do interesse pertence à natureza humana. Poder-se-ia contentar em dizer que se manifesta assim um realismo de Proudhon quanto ao que são os homens; isso é injusto, mas insuficiente. Existe outra coisa. Primeiramente, o reconhecimento da liberdade no homem: as faculdades do homem são, afirma Proudhon, em luta umas contra as outras: elas não estão hierarquizadas de uma vez por todas. De seguida, o cuidado em não fazer depender tudo da lei: é necessário, ao inverso, que a iniciativa venha e continue a vir dos indivíduos. Porque é que eles estão aborrecidos, se isto não é do interesse egoísta? Os interesses, e as naturezas (humanas) que os levam, só podem chocar-se. Pode-se recusar estes choques, ignorá-los, abandoná-los À sorte: recai-se então no individualismo liberal. Pode-se, inversamente, apreender que estes choques são susceptíveis de ser a ocasião através da qual o outro aparecia como um igual em dignidade. Fazer uma lei sobre a desigualdade não significa, seguramente, impedir estes choques; isso significa informá-los primeiro, indicar às naturezas por qual sobre natureza elas podem conciliar-se. a lei fornece uma referência que permite àquele que se sente lesado, apelar à lei, apelar à igualdade e à reciprocidade: Esse aspecto surge quer na discussão e no entendimento final de homem para homem, quer por um recurso diante da justiça propriamente dita: há então apelo a um terceiro, Estado ou júri. Também há por vezes antagonismo e complementarismo entre o interesse egoísta e a Justiça. Os dois princípios de que fala Proudhon na passagem evocada servem de algum modo para atrair este processo de complementariedade antagónica.
Falando do intra-psíquico, nós já tínhamos reencontrado o inter-psíquico. É lógico: no fundo, o sujeito jurídico não é o tal porque não é só ele que reconhece os direitos iguais para os outros. O facto é tanto mais impressionante no caso do homem do depósito que os outros reais são por assim dizer neutralizados: o amigo está morto, os seus herdeiros são desconhecidos, indigentes ou indiferentes. Resta a pura forma desprovida do outro, o ombro amigo, ou qualquer um será o herdeiro, a quem eu devo restituir…
É no capítulo VI do sétimo estudo (sobre “As Ideias”) que Proudhon aborda de frente o problema ao que ele chama de “constituição da razão pública”. No título do capítulo, a expressão é precedida por estas palavras: “Disciplina intelectual, ou método de eliminação do Absoluto depois dos princípios da Revolução”. Eliminar o absoluto: eliminar o que se barrica por último nos discursos da transcendência ou da autoridade, pois dá-se de improviso como indiscutível; eliminar também o que se dissimula em último dos ideais sedutores, mas que não têm nada a ver com o verdadeiro ou o real.
O capítulo começa por uma alusão a Aristóteles dizendo que o teatro tem como objecto purificar as paixões. Mesmo, Proudhon diz procurar “um meio para purificar as ideias”. (14) A teatralização aristotélica encontra o seu pendente na publicidade da razão. Público opõe-se ao privado, ao particular, ao secreto. É público o que não pertence a ninguém em particular, a nenhuma pessoa privada, e que está aberta a todos, visível por todos e para todos. Ele agita-se, com Proudhon, na razão pública, não na opinião pública. O conceito de opinião sub-entende algo de flutuante, que orienta ou desorienta as circunstâncias. Falar de razão, é, inversamente, sub-entender que um laço persiste e insiste com a verdade. O que se agita em purificar, eliminar, precisamente, é a fuga fora da verdade, as constituições de ilhas pessoais ou supra-pessoais de certeza que se absolutizam.
Qual é o princípio destas “absolutizações”? Reencontramos sob a pluma de Proudhon as afirmações similares àquelas que nós já conhecemos. O homem, afirma, é um livre absoluto, livre no sentido que ele pode dizer “eu”: “na qualidade de livre absoluto, o homem tende a subordinar tudo o que o envolve, coisas e pessoas, os seres e as suas leis, a verdade teórica e a verdade empírica, o pensamento como a inércia, a consciência e o amor como a estupidez e egoísmo”. (15) Quem raciocina, quem coloca em si o centro e princípio universal, tende a tornar-se uma dedução de si mesmo. Breve, a razão individual é por essência absolutista. A simples lógica mostra que ela envolve uma rejeição do social, a sua destruição permanente.
Como sair? Opondo o absoluto ao absoluto. “É o que se chama vulgarmente liberdade das opiniões ou liberdade de imprensa”. (16) Os absolutos exprimindo-se querem chocar-se uns contra os outros. Falando da Revolução e das suas “declarações”, Proudhon escreve: “ela suscitou, como garantia suprema de verdade e de Justiça, o quê? a guerra civil das ideias, o antagonismo dos julgamentos”. (17) Mesmo que a vida da alma seja dada à oposição das faculdades, mesmo que a vida da sociedade esteja “na oposição dos poderes nos quais se compõe o grupo social, citados, corporações, famílias, individualidades”. (18)
A referência à Revolução, e em particular à Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão, indica que o modelo provém da filosofia das Luzes. Não se pode pensar no texto de Kant, intitulado: Resposta à questão: o que é que são as Luzes? que articula três princípios:
Um princípio de actividade: eu só desenvolvo a minha razão tomando a iniciativa, que eu ensaio;
Um princípio de manifestação: eu não avançaria no perfeccionismo da razão e na maturação que eu ouso exprimir, a minha expressão expõe-se fogo da crítica de outrém;
Um princípio de reflexão, pelo qual eu tomo esta crítica para rectificar ou aprofundar o meu pensamento.
O modelo explícito de Proudhon está todavia emprestado à constituição do pensamento científico. Um sábio existe se e somente se existem outros sábios que retomem as suas hipóteses, discutem-nas, criticam-nas, aperfeiçoam-nas ou rejeitam-nas… Da troca nasce, por outras hipóteses, também a exploração da verdade progressiva. Este papel de mediação, ou de acerto, da verdade, é importante. Entre os absolutos e por sua oposição surge um espaço de verdade; de verdade relativa a quê? a necessidade natural para as ciências da natureza, a necessidade social para a razão pública: descobrem-se os benefícios que devem reger a sociedade para que ela seja uma autêntica sociedade. Estas relações são relações jurídicas. Todavia, o que produz os choques entre razões individuais é outra coisa que elas, um outro tipo de razão que não modifica a sua essência e a sua energia a razões individuais, que se encontram somente limitadas nas suas pretensões a todo o reger. Certamente, à medida que as coisas evoluem, a razão pública acredita e aperfeiçoa-se a si mesma; sem dúvida, graças a esta evolução, os indivíduos desenvolvem primeiro sempre as suas capacidades de sujeitos jurídicos. Ele não permanece muito nas razões individuais que persiste em existir na sua diferença e no seu abolutismo.
A razão pública transforma as coisas: “a propriedade, balançada pela propriedade, quase sempre absoluta no proprietário, resolve-se diante da razão pública numa pura delegação; o crédito, sempre interessado junto do emprestador, numa mutualidade sem interesse; o comércio, agiota por natureza, numa igual troca; o governo, imperativo por essência, numa balança de forças…” Mas Proudhon acrescenta: “… esta conversação não importa, anota-o bem, condenação da individualidade; ela supõe-a. Homens, cidadãos, trabalhadores, dizem-nos esta Razão colectiva, verdadeiramente prática e jurídica, permaneçam cada um o que vós sois; conservem, desenvolvam a vossa personalidade; defendam os vossos interesses; produzam o vosso pensamento; cultivem esta razão particular na qual a tirania exorbitante faz-vos hoje tanto mal; discutam uns com os outros; dirijam-se uns para os outros, aproximem-se; respeitem somente as decisões da vossa razão comum, na qual os julgamentos não podem ser os vossos, ela está liberta deste absoluto sem o qual vocês só seriam sombras”. (19)
A razão pública exige às razões individuais preservar o seu ser. É afirmar uma vez mais que a razão individual é irredutível com a razão pública. Existe uma dimensão anti-social do homem, uma medida que lhe é própria, e que respeita, colocando-se fora da sociedade e dos poderes sociais. O social tece-se, poderia dizer-se, entre estes pontos anti-sociais, é a sua limitação uns pelos outros, de onde nasce o direito. Limitação não é absorção; se existe absorção, a lei regeria tudo, e o sistema imobilizar-se-ia, é preciso acrescentar que é impossível assimilar o sujeito jurídico a uma criação do social; nós tínhamos visto, o sujeito jurídico descobre-se, auto-descobre-se, graças ao social, ou por meio do social. Isso significa que um tal sujeito pode eventualmente opor-se à razão pública ambiente primeiro ao nome da justiça. É portanto de duas maneiras que o indivíduo pode opor-se ao social e à razão pública: pelo seu lado infra social; pelo seu lado, poder-se-ia dizer, supra-social.
Entretanto, como “funciona” a razão pública? Ela não parece exprimir-se, ou pelo menos exprimir-se essencialmente, em leis. Ela é sobretudo comparável a um ambiente, a uma atmosfera, a um sentido comum, a um estado de espírito reinante, que informa de algum modo por impregnação, as atitudes dos indivíduos logo que eles entrem em relações uns com os outros. Ela é o direito na qualidade que ele envolve as mentalidades, ou se preferir o espírito da Justiça, que deverá seguramente, apesar de se colocar um problema concreto, especificar-se, formar-se, aprofundar-se, afim de arranjar uma solução. Ela é menos Justiça tanto nas leis ou sistema de leis como a Justiça na ideia. A ideia permanece informulável como tal, ela não se formula e não se específica apesar dela dirigir-se a casos precisos que são sempre, ao mesmo tempo, casos particulares.
Vê-se a maneira como os conflitos são constitutivos da Justiça. Mas trata-se de certos conflitos. O conflito com a Igreja que estrutura de parte em parte. A Justiça,,,, o conflito de classe, sempre mais ou menos latente, fazem eles parte destes conflitos constitutivos, ou devem sobretudo ser eliminados, eles e os seus efeitos, afim de liberar o campo à constituição da razão pública? O poder da Igreja, o poder de uma classe, tem por efeito notável o silêncio, a mudez popular. É evidente que será necessário levar este efeito para entrar no processo jurídico: será preciso que o povo aceda à palavra, afim que ele participe na constituição da razão pública. Será suficiente denunciar um tal efeito sobre o lugar público, por tornar explícito os conflitos latentes, para que, de negadores da Justiça que eles eram, tornarem-se as energias constitutivas? É pelo menos uma questão que exigiria um outro trabalho.
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