quarta-feira, novembro 23, 2005

TEOLOGIA PROUDHONIANA

“A sociedade francesa não tem nem princípios nem crenças… O edifício inteiro do espírito humano, da consciência humana é reconstruir: A quem enviar esta reedificação? Duas autoridades apresentam-se: a Revolução e a Igreja. Qual delas seguir? Será possível uma conciliação?
É esta questão, que é aquela de uma vida, que pretende responder a obra de 1858, como o seu mesmo título o deixa prever: Da Justiça na Revolução e na Igreja. Ela está decidida no cardial arcebispo de Besançon, Mgr Mathieu, “meu” bispo, precisa Proudhon (1). Concorda-se a lá ver a sua obra “principal”; ele é quem em todo o caso quer compreender a sua singular “teologia”. Ele foi no século XIX o breviário do anti-clericalismo o mais decidido e o mais inteligente.
A entrada em jogo, Proudhon encara o feito religioso ao nível da sua eficácia social e procura acima de tudo na religião, como os seus mestres no catolicismo, um princípio de ordem social: é preciso que os povos “acreditem em algo” e sejam animados por uma “força de justiça”, se se quiser evitar a decadência (2). É o primeiro postulado deste partidário do não-governo, deste an-anarquista, moralista, socialista e “feitor da ordem” (assim se qualifica ele).
Mas existem duas maneiras, segundo ele, de conceber esta indispensável “força de justiça”: ou bem representa “como uma pressão do redor exercida sobre mim” e modelando o homem do exterior; ou bem faz-se surgir “de uma faculdade minha que, sem sair do seu foro íntimo, sentiria a sua dignidade na pessoa, e encontraria assim, conservando toda a sua individualidade, idêntica e adquada a ser mesmo colectiva (3)”. O primeiro sistema, o mais antigo, é o da Transcendência: é aquele de todos os que “ficam fiéis ao princípio da subordinação externa”, que este princípio seja Deus, a Sociedade, o Grande-Ser, ou “toda a outra Soberania, mais ou menos visível ou respeitável (4)”.
Mas a Transcendência encontrou a sua expressão mais elaborada e mais perfeita no catolicismo, numa espécie de sorte que este está convencido de errar, tudo se aniquila. Quanto ao outro sistema, “radicalmente oposto ao primeiro”, é o da Imanência, ou seja, inacto da justiça no homem e na sociedade; ele tem ainda todo o apreço do fruto verde, e o seu porta-voz chama-se a Revolução (5).
Na “hipótese católica”, a justiça é “comunicada” noa altos (sacramentos), “intimidada” do exterior ao sujeito (Revelação, Tradição, magistério), a tal ponto que o individuo não pode encontrar a sua saudação renunciando a todo o próprio julgamento, a toda a autonomia. Desligado por si próprio de toda a moralidade e de todo o “proncípio de justiça”, ele é normal, como o afirma a Escola católica (Maistre, Bonald, La Mennais, Donoso-Cortès), que ele seja “sem direitos”; ele só tem “deveres”, ou acima de tudo um único dever: o de obter no seu deus e aos seus representantes sob a terra (Rei, clero, nobreza). Por via de consequência, a ordem segundo o direito divino será necessariamente uma ordem autoritária, hierárquica e imutável (6), uma ordem “desumana”, que não atende nada ao homem, sacrifica toda a interioridade às exigências da sociedade (Bonald) e ignora o progresso. Nesta perspectiva, o valor moral do acto depende essencialmente da sua conformidade ou da sua não-conformidade a um direito puramente exterior; quanto às disposições do “assunto”, sabe preocupar-se pouco (ele reenvia aqui à prática religiosa ”forçada” pelos colégios da Restauração).
Tudo se reduz a uma questão de “disciplina”. Assim se explica, prossegue Proudhon, a aliança da monarquia do direito divino e da Igreja, do absolutismo e do catolicismo, do poder e do hissope: “Será ele bom? Pergunta o general a propósito de um militar acusado de violação. –Sim. –Sejam indulgentes”. “É o significado da Igreja: Ele vai À missa? –Sim. –Sejam indulgentes (7)”.
De onde a sua conclusão: este género de moralidade é o cúmulo da imoralidade; é um insulto permanente à dignidade humana.
Na segunda hipótese, ele vai pelo contrário. Dotado de um “sentido moral”, de uma “faculdade de justiça”, o homem encontra em si mesmo o seu principio de justificação, mesmo se este não possa desenvolver-se e expandir-se em toda a vida social. A sua composição, isso seria mais desonrá-lo do que fazer depender a sua moralidade de uma Soberania estranha. Toda a sua justiça descança sob “uma espécie de ordem secreta de si próprio para si próprio”; uma espécie que ele não a considerará como “boa” o que é confessado pela sua consciência, e como o “mal” que lhe é apresentado como tal pela sua consciência (8). Por via da consequência, a ordem segundo o direito humano será uma ordem fundada sob a dignidade inabalável da pessoa, e soberania respeitadora das suas exigências fundamentais. Por outro lado, como a personalidade é essencialmente a mesma junto de todos, isso será uma ordem de tendências igualitária e libertária (purificando o significado de toda a nuance perjurativa ou anti-moral), que procurará em todas as ocasiões a adesão intíma, reflectora, cordial do cidadão, e que fará sem dúvida apelo à sua participação e à sua responsabilidade.
Com efeito, a “faculdade justiceira” na qual o homem está prevenido para isso de particular para ela ultrapassa todo o individualismo: ela entra em jogo antes do ser humano, qualquer que ele seja; uma espécie de homem, à diferença do animal, prova À VEZ “a obrigação de respeitar-se em toda a circunstância, e de respeitar o próximo, como [ele] queria ser respeitado [ele mesmo], se ele estivesse no seu lugar (9)”. Noutros termos, “o que faz com que eu respeite o próximo […] é a sua qualidade do homem (10)”: e, “o que é mais extraordinário, eu ofendo-me a mim mesmo ofendendo-o (11)”. Brevemente, pela sua consciência, o homem “tem a faculdade de sentir a sua dignidade na pessoa da sua semelhança como na sua própria pessoa, de afirmar-se à vez como o indivíduo e espécie (12)”.
A “lei suprema” de toda a justiça é portanto a lei de reciprocidade: “Faz aos outros o que tu queres que te façam a ti. Não faças aos outros o que tu não queres que te façam (13)”.
Desenvolvendo esta norma graças à qual “a distinção do bem e do bem é feita, consequentemente a lei editada por todos os degraus de civilização e todos os casos possíveis (14)”, obtêm-se esta amplificação majestosa: “A justiça é o respeito, espontaneamente aprovada e reciprocamente garantida, da dignidade humana, em alguma pessoa e em alguma circunstância que ela se compromete, e a qualquer risco que nos expõe a sua defesa (15)”.
Tais são, segundo ele, as duas formas antinómicas de representar-se a Justiça e portanto a ordem na sociedade. A escolha é clara: ou a Transcendência, o catolicismo, o direito divino – ou a Imanência, o direito humano, a ideologia dos direitos do homem e a Revolução. “Lá existe a nossa vida moral, a nossa saúde eterna, como diz a Igreja, e nem a questão mais alta o fazia subelevar-se entre os homens (16)”. Noutras palavras, “a questão está entre a Revolução e a Igraja (17)”.
Nós conhecêmo-lo bastante para saber qual é a resposta… É um jogo para ele de “provar” de seguida a sua tese à ocasião de todos os grandes problemas que assustam a humanidade: desprezo sistemático da pessoa no “sistema católico” fundado sobre o pecado original e a perda de todo “sentido moral” junto do homem perdido; “insulto hierárquico”; educação visando a formar de “bons sujeitos”, tal que lhe falta para o poder absoluto; “penitenciária aflitiva e infamante” (ele nomeia Saint-Acheul); pobre de instrução das massas (Maistre, Bonald, Donoso-Cortès); disciplina rigorosa das ideias, Santo-Oficio, Santa-Inquisição; “dogma” da desigualdade providencial e dos estados de vida; oposição a tudo o que desenvolve o sentido crítico, como a ciência, a indústria mecânica, hostilidade do príncipio às “luzes da razão”; etc. “Aqueles de 89”, pelo contrário, e mais geralmente aqueles que acreditam na Imanência, pregam “o respeito igual e recíproco”, não somente pelo Céu, mas desde neste mundo, e entre todos os homens, quaisquer que sejam a sua origem social, a sua situação, ou a côr da sua pele. Por isso, eles não procuram fazer da criança “uma cerca aroeira”, eles querem “colar_____ nas veias; ao “sujeito dócil”, eles preferem “o homem digno ao cidadão confiar os seus direitos e seus deveres; eles não reduzem a “ventilação das ideias”, eles organizam-na; eles não governam pelo atractivo das recompensas ou pela pena do castigo (céu, inferno), mas eles acreditam que existe uma justiça imanente e que a sanção nasce no acto como a flor do caule: “Tudo se deleita no homem, na sociedade, na natureza, quando a Justiça é observada; tudo sofre e morre, quando se é violada (18)”. Enfim, as verdadeiras “justiças” não enganam o povo pregando-lhe uma igualdade “celestial”, eles querem que, desde esta terra, para todos os homens, a reciprocidade do respeito, proclamada entre as pessoas, conduz à reciprocidade dos Serviços e à equivalência das condições: é todo o socialismo pelo menos ao que ele atende (19).
Tais são algumas das “certezas” que ele diz ter ____” ao mais profundo da [sua]consciência”… depois do que nós tinhamos dito sobre a sua infância, sua adolescência, suas humilhações, suas leituras será preciso insistir mais? A oposição da Transcendência e da Iminência, é o “duelo fantástico” da “muito católica restauração”, o antagonismo dos ultra e dos liberais, o afrontamento das suas ideologias “absolutista” e “progressista” (20), onde nunca se reclamava os direitos de Deus e na outra os direitos do homem. A sua “teologia” não é mais que a sistematização, por vezes genial, mas sempre abusiva, dos feitos e das cenas da sua juventude, que ele explica a si mesmo, interpreta, aumenta, deforma e retorna à luz dos seus “autores”.
Ele escreve, é verdade, em 1855-1858, muito tempo depois da idade da ordem da "aliança do trono e do altar”; mas por uma parte as suas “autoridades” (Bergier, Maistre, Bonald e seus discípulos) permanecem as teologias indiscutidas da corrente católica maioritária; por outro lado, depois do Teu Deus que acompanhou a proclamação do Império, depois da inflexibilidade do Piedoso IX, o “cliché afectivo” da Restauração joga de novo (21), e a sua sensibilidade exacerbada reduz mais ainda uma “Segunda Restauração”. Assim também, para justificar o seu anti-catolicismo sistemático, não é somente ao tempo da sua juventude que ele nos reenvia, mas a numerosos feitos actuais. Lê-se por exemplo na Justiça continuada:
“A Igreja está encarregada de pregar as missas, para os seus 40.000 tribunas, os grandes princípios da autoridade, da hierarquia, do poder absoluto, da nobreza hereditária, da desigualdade providencial, da servidão e da razão, e outros, que a reacção do 2 Dezembro misturou na ordem do dia, e contra os quais protesta com energia a consciência pública. A Igreja é a única moral que domina a nação, e a nação não quer mais (22)”.

De onde a necessidade de uma “nova espiritualidade”, de uma “nova moral”, “que deixará longe a última moral e espiritualidade cristãs (23)”: aquelas do direito humano, por oposição ao direito divino (24). Ele é verdadeiramente, neste sentido, um dos pais da “moral laica (25)”.
Todavia, a “questão social”, a miséria das classes operárias, a atitude da Igreja face ao proletariado nascente, tudo isso pesa também com um grande peso sobre o seu comportamento anti-religioso. Ele não esquece os seus companheiros de infortunio, nem o “sermão (26)” que ele tinha feito em 1838 de “melhorar a condição física, moral e intelectual da classe mais numerosa e mais pobre (27)”. Mas como imaginar uma real promoção das massas populares no “sistema da desigualdade natural e providencial”, que não para de pregar a Igreja em toda a ocasião?



NOTAS:


1 Proudhon escreve ora Matthieu, ora Mathieu. A boa grafia é Mathieu. Nascido em Paris a 17 Janeiro de 1796 (seu pai, depois de ter sido sedoso em Lion, estabeleceu-se na capital onde ele tinha um escritório de negócios). Césaire Mathieu acaba os estudos de direito e torna-se advogado em 1815. Ele entra pouco depois para Saint-Sulpice e é ordenado padre na capela de Carmes em 1823 aos 27 anos. Em 1829, ele é vigário geral de Paris, abade de Madeleine em 1831, bispo de Langres em 1832, aos 36 anos. Ele é transferido para a sé de Besançon a 11 Junho de 1834, onde morreria quarenta e um anos depois, em 1875. Cf.Besançon, Vida da sua Iminência Mgr o cardeal Mathieu, arcebispo de Besançon, 2 vol., Bray e Retaux, 1882. Escreve no estilo de então, este estudo, pouco científico, dá lugar a uma missa no ponto polémico de J.-F.Bergier, Suplemento à vida do Cardial Mathieu, no seu viver, arcebispo de Besançon, Besançon, Bonvalot, 1883. Sob a Monarquia de Julho, Mgr Mathieu foi uma forte influência sobre as nominações episcopais, devido aos seus laços muito estreitos com Mgr Garibaldi, internúncio. Cf.Paul Poupard, correspondência inédita entre Mgr Antonio Garibaldi, internúncio em Paris e Mgr Césaire Mathieu, arcebispo de Besançon, Boccard, Paris, 1961.
2 Justiça, t.I, p.251 a 254, 284, 324.
3 Justiça, t.I, p.316.
4 Ibid.
5 Justiça, t.I, p.316 e 317.
6 Estas são as três notas as quais Bergson, nas Duas Fontes…, utilizará para caracterizar o ideal de uma sociedade não democrática.
7 Justiça, t.II, p.228; ver também t.I, p.319 à 321; t.II, p.473; t.III, p.334, 651. Justiça continuada, p.223,273,275, etc.
8 Justiça; t.I, p.326. Adiante, p.25.
9 Justiça, t.III, p.360.
10 Justiça, t.I, p.426.
11 Justiça, t.I, p.418,419.
12 Ibid., t.I, p.423.
13 1ª Memória, p.143, 144. Justiça, t.I, III, p.355. Esta “lei” reencontra-se em todos os seus escritos, sem nenhuma excepção. Ele observa que é a lei do Evangelho, mas que ela é-lhe muito anterior. É portanto a lei “natural”, “absoluta”, “suprema”. Cf.Introdução, p.13. A sua formulação da lei moral faz pensar em Kant na qual ele tinha lido e anotado as obras, traduzidas pelo seu amigo Tissot, professor em Dijon.
14 Justiça, t.III, p.355.
15 Ibid., t.I, p.423.
16 ibid., t.I, p.292.
17 Ibid., t.I, p.271; é o título de um desenvolvimento.
18 Justiça, t.IV, p.352. Em letras maíusculas no texto.
19 Desenvolverei os aspectos positivos do seu pensamento numa outra obra.
20 O termo é corrente do século XIX e designa todo o partidário do progresso.
21 Adiante, p.116.
22 Justiça continuada, p.310 –Este escrito é uma defesa na qual ele procura justificar-se das graves acusações retidas contra si. O assunto ía terminar em três anos de prisão e uma forte multa.
23 Criação da ordem, p.459 (1843).
24 Justiça, t.I, p.323 e s.
25 É assim que Chaudey, seu advogado, qualificaria a sua koral, por oposição à “moral religiosa”. (Justiça continuada, carta de 8 Maio de 1858, p.328).
26 Carnet VII (inédito); Corr., t.I, p.32, 57.
27 1ª Memória, p.119.

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