sexta-feira, abril 21, 2006

Nenhum outro mundo é possível com desemprego

Para os que vivem do seu trabalho, só existe uma questão séria no mundo atual, é a questão do desemprego estrutural. Tudo o mais depende disso e nada é possível sem resolver isso.
Tenho acompanhado atentamente os Fóruns Sociais Mundiais e o que se realiza este ano não será diferente. O que me chama a atenção é o espaço relativamente pequeno ocupado pelo único problema que de fato é importante. O desenvolvimento global sem empregos decentes.
Na realidade, há um enorme destaque para temas como a guerra do Iraque, o uso de organismos geneticamente modificados, os problemas ambientais, os direitos das mulheres e dos homossexuais, a defesa dos direitos dos animais, a necessidade da preservação de culturas indígenas e outros temas afins.
Nunca vejo ninguém preocupado com: a extinção dos bóias-frias substituídos por colheitadeiras; a defesa dos direitos dos torneiros mecânicos e fresadores substituídos por robôs; a necessidade da preservação dos faturistas, contadores e auditores contábeis substituídos por computadores; os problemas dos comerciários substituídos por códigos de barras; o massacre dos bancários perpetrado pelas máquinas de auto-atendimento; o combate à crueldade para com os desenhistas substituídos por plotters; a injustiças contra os cobradores de ônibus substituídos por catracas eletrônicas, etc.
Também não encontrei uma única ONG do tipo “salvem os gerentes regionais” ou “parem com a demissão de engenheiros” ou “dignidade para os temporários” ou ainda “devolvam nossos empregos”. Nenhum grupo pretende salvar da extinção a “cultura de classe média dos subúrbios” nem se preocupa com os direitos das tribos dos “macacões azuis” ou dos “homens de paletó e gravata”.
Não ouvi nas passeatas, nenhuma frase como “Nem menos nem mais, terceirizados com direitos iguais !”. Também ainda não vi grupos de “sem-férias”, “sem-décimo terceiro”, “sem-seguro saúde” nem “sem-vale transporte”. Falta o movimento dos “microempresários sem-crédito” e o dos “autônomos sem-contratos”.
Até agora não vi nenhuma manifestação exigindo os empregos que a tecnologia de informações e telecomunicações iria criar “em médio prazo” para substituir os que desapareceram. Não vi “black bloks” quebrando anúncios e vitrines da Amazon Books, Yahoo, Google, Intel, Dell, HP, Microsoft, IBM ou Novell por não criar os milhões de empregos “criativos e de alto nível técnico” que todos iriam ter.
Se isso parece piada, não é absolutamente. Porque na prática todos os demais problemas estão relacionados a isso. Sem empregos, nenhum outro mundo é possível e mesmo o que temos está seriamente ameaçado.
Que importância pode ter a soja trasgênica para um trabalhador do campo que foi posto na estrada porque seu patrão comprou uma colheitadeira capaz de executar o trabalho de 400 homens?
Qual a importância real do aquecimento global para um operário industrial cujo emprego desapareceu nas garras de um robô ou mudou-se, junto com a fábrica, para a Índia ou para a China, onde um colega seu irá fazer o mesmo trabalho por migalhas?
O que significarão os direitos das mulheres para a jovem que tiver de voltar para o fogão e o tanque de lavar roupas porque a loja onde trabalhava foi “reestruturada” com novas etiquetas “inteligentes”?
De que servirá para os homossexuais a possibilidade de conquistar o direito ao reconhecimento de “uniões estáveis” e respeitáveis com seus parceiros, se ambos estiverem sem emprego e sem renda e tiverem de morar com seus pais?
Como combater a destruição do meio ambiente por parte de populações cujo modo de vida passe, de repente, a ser viável apenas caso destruam seus recursos naturais para satisfazer aos interesses de alguma gigantesca corporação global?
Após vários meses de desemprego, e vivendo de expedientes e favores, quem não se alistaria nas forças armadas, mesmo sabendo que terá de combater a serviço de interesses pouco claros? Quem recusaria emprego em fábricas de armas e material bélico?
A realidade é que as liberdades individuais e as escolhas que fazemos, estarão sempre subordinadas ao imperativo da necessidade. O movimento pelos direitos civis, o movimento feminista, as marchas pacifistas, as lutas em defesa do meio ambiente, a exigência de respeito às preferências sexuais, só surgiram por iniciativa de pessoas que dispunham de bons empregos.
É sintomático que nenhum desses movimentos tenha surgido entre as populações pobres do terceiro mundo. E é ainda mais sintomático o recuo que essas idéias demonstram nas nascentes “ilhas de pobreza” do primeiro mundo.
O reaparecimento da defesa dos “valores familiares” nos EUA, coincide com as áreas do país mais afetadas pela “desindustrialização”, Os estados “vermelhos” de Bush são os que mais sofrem com a “imigração” de fábricas para a Índia e a China. O conservadorismo e a xenofobia, avançam na Europa na esteira das ameaças de transferência de fábricas para o leste do continente, com suas populações tornadas miseráveis mas com alto nível de escolaridade.
É mais do que evidente que uma população de trabalhadores que começa a regredir ao século 19, tende a adotar os valores de seus avós e não os de seus pais.
Por exemplo, para uma família de operários dessa época, as mulheres deviam ter o maior numero possível de filhos e cuidar deles, porque eram eles que depois sustentariam seus pais, no futuro, ou em caso de doença ou morte de um deles. Assim, mulheres “livres” só se fossem prostitutas e aborto era uma espécie de “deserção” da mulher de seus deveres.
As comunidades eram então mais unidas e muito mais solidárias devido às necessidades de sobrevivência imediata. A religião comunal era o amparo nas inúmeras adversidades. Nesse caso, comportamentos “diferentes” eram intoleráveis. Um homossexual não era só uma aberração, como também um inútil, já que não sustentaria nenhuma família.
A exploração de todo e qualquer recurso natural era uma questão de sobrevivência. Ninguém com fome e frio iria “abraçar árvores” para evitar que fossem derrubadas.
A guerra, além de uma ótima oportunidade de se conseguir empregos, era uma forma excelente de escapar a vida miserável da fazenda ou da monotonia da fábrica e virar “gente” como militar.
As pessoas comiam o que podiam, não o que queriam, ser vegetariano era uma receita perfeita para morrer de inanição. Médicos só atendiam ricos e remédios eram os chás caseiros das vovós.
Velhos e deficientes físicos ou mentais eram um estorvo e uma despesa que uma família operária não podia sustentar, o máximo que podiam esperar, era serem alimentados, para que não morressem de fome.
Os povos indígenas e as populações do terceiro mundo, só eram lembrados caso se pudesse usa-los como criados ou semi-escravos, por colonos que fugiam da miséria em que viviam em seu próprio país. Caso contrario, a melhor era extermina-los.
Isso só mudou a partir da industrialização intensiva e das conquistas de direitos por parte dos trabalhadores assalariados e sindicalizados, tudo combinado com governos cada vez mais assustados com o fantasma do “comunismo” e das revoltas populares.
Tudo o que conhecemos como os nossos “valores ocidentais” modernos, a mobilidade social, a liberdade das mulheres, o direito a individualidade e a liberdade de pensamento e escolhas, só deixou de ser privilégio de uma minoria aristocrática porque surgiu o emprego fixo, bem remunerado e com benefícios sociais garantidos pelos Estados modernos.
O desaparecimento do emprego “de carteira assinada”, o enfraquecimento simultâneo do Estado de bem-estar social e dos sindicatos, o retorno às incertezas do emprego “informal”, autônomo, temporário, por projeto, por tarefas específicas e por tempo determinado, recriará imediatamente o ambiente ideológico do século 19.
Então teremos a temida “polarização” apontada por Manuel Castells e já perfeitamente detectada nos EUA. O pioneiro da “nova economia” e da flexibilização das relações de trabalho. Lá já se desenham duas Américas. A dos ricos e “liberais” e a dos desempregados, subempregados e “precarizados”, cada vez mais conservadores e intolerantes.
Os valores dos ricos e bem sucedidos continuarão a evoluir. Como são independentes financeiramente, podem se dar ao luxo de pensar e agir como bem quiserem. Os “novos pobres” por outro lado, serão forçados a se recolher em sua impotência e incerteza em relação à sobrevivência.
Isso é um perfeito caldo de cultura para o fundamentalismo religioso e o extremismo político. Elementos já decisivos na política norte-americana, e que tendem a crescer na medida em que a insegurança e a ansiedade se tornem crônicos.
Com o tempo, o ódio ao rico “liberal” passará a encontrar sua justificativa na superioridade “moral” dos pobres que são “tementes a Deus”. O comportamento “despreocupado e frívolo” da aristocracia escandalizará a maioria miserável. Essa fórmula já deu origem a todo tipo de tragédias no século 20, mas parece que as elites intelectuais não aprenderam a lição.

http://lauromonteclaro.sites.uol.com.br/

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