domingo, maio 07, 2006

A crise do emprego e as origens do totalitarismo

Quando estudamos as origens dos regimes totalitários, sempre obtemos vasta documentação sobre suas idéias, seus líderes e seus métodos para dominar um povo. No entanto fica sempre pouco claro o porque de nações inteiras aderirem a esses regimes.
Hannah Arendt em sua obra “Origens do totalitarismo” de 1951, estabelece um claro elo de ligação entre todos os sistemas totalitários. Eles são indiscutivelmente fruto da modernidade e visariam sobretudo aniquilar o indivíduo e lhe incutir certezas artificiais. Em suas palavras:
“O totalitarismo é uma forma de domínio radicalmente nova porque não se limita a destruir as capacidades políticas do homem, isolando-o em relação à vida pública, como faziam as velhas tiranias e os velhos despotismos, mas tende a destruir os próprios grupos e instituições que formam o tecido das relações privadas do homem, tornando-o assim estranho ao mundo e privando-o do seu próprio eu”.
Carl J. Fredrich e Zbigniew K. Brzeinski em 1956, formularam sua própria teoria. Os regimes totalitários teriam em comum:
1- Uma ideologia oficial que diz respeito a todos os aspectos da actividade e existência do homem e que todos os membros da sociedade devem abraçar.
2- Um partido único de massa dirigido por um único ditador e composto por um grupo de pessoas que nutre apaixonada e inabalável fé na ideologia do partido e está disposta a qualquer acção para propagá-la.
3- Um sistema de terrorismo policial que ao mesmo tempo apoia e controla o partido, faz frutificar a tecnologia moderna. Especialmente a psicologia científica, propaga os ideais e feitos do partido, empregando a mídia e todos os recursos modernos de comunicação, mantendo-se sempre na vanguarda das tecnologias dos meios de comunicação.
Embora todos os estudiosos do assunto admitam que esses regimes só surjam em contextos históricos determinados, raramente se coloca a pergunta mais importante: Por que milhões de pessoas, com formações sócio-culturais muito diferentes e origens sociais diversas, aderem com enorme entusiasmo a esses sistemas?
Ninguém duvida da imensa popularidade, do culto sincero e da confiança irrestrita de que gozaram figuras como Mussolini, Hitler, Hiroíto e Stalin. A história registra quase sempre a versão das vítimas desses homens e de seus sistemas políticos. Os povos que os idolatraram são logo “absolvidos” sob a alegação de que foram enganados pelas máquinas de propaganda, pela censura, etc.
Seria mesmo assim? Poderia um único indivíduo, com o auxílio de um pequeno círculo de fanáticos, ser capaz de convencer de analfabetos a universitários, de camponeses a aristocratas, jovens e homens maduros, da verdade de suas idéias e da infalibilidade de sua liderança? Ou será que existe um “impulso para o totalitarismo”, inerente a condição humana, e que se manifesta em determinadas condições?
Sabemos que desde a pré-história, os seres humanos são atraídos por religiões, cultos e seitas das mais obscuras, por diversos motivos. A ideia do abandono voluntário da razão e do pensamento individual em troca de um mundo de verdades reveladas e um futuro previsível não é nenhuma novidade.
A mera observação da história nos mostra que manifestações de irracionalidade política e social estão sempre associadas a crises de valores e a frustração das expectativas colectivas. O que seria realmente novo nos sistemas totalitários contemporâneos?
A resposta deve ser buscada nas próprias transformações porque passaram as sociedades contemporâneas. A intensa urbanização, a perda das raízes regionais e familiares e a transformação da imensa maioria das populações das nações industrializadas em trabalhadores assalariados.
Nesse caso, a religião tradicional, o culto dos antepassados, o respeito à hierarquia social local, etc, perdem espaço para um certo cepticismo cosmopolita. O emprego na indústria, no comercial ou nos serviços dos grandes centros urbanos, passa a fornecer as bases para uma vida planejada e segura.
É nesse ambiente que surge o que podemos chamar de liberalismo. Sem as rigorosas exigências da sobrevivência no antigo meio rural, o indivíduo comum passa a desenvolver suas próprias idéias, torna-se mais empreendedor e principalmente, mais receptivo a pluralidade de pontos de vista e modos de agir diferentes do seu.
As mulheres passam a trabalhar fora do lar, e com isso iniciam seu processo de emancipação. As pessoas “diferentes” encontram seu lugar em meio à diversidade típica dos meios urbanos. As idéias liberais circulam rapidamente e sem muita interferência. As novidades científicas e culturais são recebidas com entusiasmo.
Os comportamentos e as idéias mais extravagantes, deixam de ser privilégio de nobres excêntricos e burgueses endinheirados, e passam a fazer parte do quotidiano da maioria da população das grandes metrópoles.
Mas tudo isso pode ser destruído pelo único flagelo “natural” que pode atingir uma comunidade economicamente desenvolvida: o desemprego. A perda do emprego, e uma dificuldade prolongada em conseguir outro, revertem praticamente todas as conquistas individuais de um cidadão urbano.
Todas as suas certezas e expectativas desabam. Alguns meses deambulando pelas ruas de uma grande cidade, fria e indiferente a sua sorte, o faz voltar a ser o camponês rústico, assediado pela fome, o frio e a doença. Mas agora ele não tem mais a protecção de seu clã. Seus parentes estão dispersos e ele não acredita mais nas rezas ingénuas do cura da aldeia.
É quando o indivíduo se torna receptivo às idéias totalitárias. De início, ele se aproxima apenas de pessoas que falem o que ele quer ouvir: Como resolver o problema do desemprego. Como voltar a vida tranquila e previsível de antes.
Mas logo ele estará aceitando qualquer tipo de afirmação, por mais estranha que lhe pareça. Isso gera um processo que se realimenta. Um líder messiânico, cercado de alguns malucos se sente estimulado ao perceber que lhes dão ouvidos. Os futuros ditadores começam a se ver como pessoas predestinadas.
Pessoas que antes eram ridicularizadas e menosprezadas por suas formulações incoerentes e cheias de ignorância e preconceitos grosseiros, agora são ouvidas e respeitadas. Quando obtém algum poder, terão de eliminar qualquer discordância, porque evidenciariam suas incongruências.
O mundo mágico, que se cria no estabelecimento de uma relação de dependência para com a irracionalidade, seria destruído por um debate sereno e objectivo. Daí a necessidade do partido único, da doutrina inquestionável, da autoridade absoluta do líder. Esse é a verdadeira origem do totalitarismo.
Isso equivale a dizer que os regimes totalitários têm uma origem claramente popular, quase sempre seus líderes foram eleitos em algum ponto de sua trajectória para o poder. As massas não são vítimas passivas de monstros. Ao contrário, elas os criam, como uma perfeita imagem de suas esperanças, medos, ódios, preconceitos e ressentimentos.
O totalitarismo não é de modo algum a negação da vontade popular, é antes uma democracia que nasceu sem cérebro.
Isso deve nos deixar alertas para as actuais tendências da globalização. Dirigido pelo capitalismo mais selvagem, esse processo vem destruindo sistematicamente as formas tradicionais de emprego e renda. Muito mais grave do que gerar desemprego, os novos
Paradigmas tecnológicos de produção e circulação de riquezas, aliados a uma completa indiferença social, têm solapado as bases onde se assentam as sociedades liberais contemporâneas.
Devemos nos lembrar de que o totalitarismo surgiu de início em sociedades urbanas industrializadas e com altos índices de desemprego, combinados com uma insegurança generalizada.
O desaparecimento progressivo do emprego formal e por tempo indeterminado, cria essas mesmas condições. As relações de trabalho “flexíveis” destroem uma das características fundamentais das sociedades mais civilizadas: A previsibilidade quanto às condições de sobrevivência.
Muito pior do que o desemprego em si, percebido como condição passageira, o emprego flexível, ou informal, altera profundamente o comportamento de toda a sociedade. O trabalhador, mesmo estando empregado de forma convencional, se sente inseguro e desamparado.
Não tardará a procurar quem lhe de certezas. Isso já vem acontecendo. Os intelectuais liberais dos EUA costumam zombar das idéias “criacionistas” e da intolerância dos fundamentalistas religiosos com relação às uniões civis de homossexuais.
Mas entre as características do totalitarismo esta justamente a sua insistência, irracional e impermeável a argumentos, em sua própria verdade. Outra é a intolerância para com qualquer comportamento supostamente “degenerado”.
O mundo todo já parou de rir dos fundamentalistas islâmicos “jihadistas” e suas interpretações “excêntricas” e nada ortodoxas do Alcorão. A França já se assustou com uma possível vitória eleitoral de Le Pen e seus seguidores, ostentando roupas e bandeiras medievais.
No Brasil, rimos dos “integralistas da periferia” e dos “arautos do evangelho”. É melhor prestar mais atenção...

http://lauromonteclaro.sites.uol.com.br/

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