sexta-feira, junho 23, 2006

SOBRE A GESTÃO DEMOCRÁTICA OU AUTOGESTÃO GENERALIZADA

INTRODUÇÃO
Os trabalhadores são sempre persuadidos que, por si próprios, seriam totalmente incapazes de gerir as empresas, que sem os apaniguados detentores das empresas e seus acólitos (designados de “gestores”), as empresas se afundariam. É evidente, para algumas poucas pessoas, que tal é uma mentira astuciosa que permite conter dentro da resignação dócil a massa explorada, para que ela nunca tenha a veleidade de reclamar o poder que é seu, o «poder de fazer». Com efeito, a cooperação, a diligência e a inteligência dos trabalhadores está constantemente a ser requisitada em todo o tipo de empresas, quer sejam grandes ou pequenas, privadas ou estatais. Isso é visível para quem observe de perto o concreto da produção e dos serviços. Se os/as trabalhadores/as se comportassem como autómatos estúpidos, muito em breve toda a produção (ou serviços) ficaria desorganizada. Porém, podemos e devemos também virar-nos para exemplos “pela positiva”. Ou seja, para empresas em autogestão, que - nos momentos de desorganização da economia e de crise do poder - acabam sempre por despontar. Os trabalhadores são muitas vezes levados a tomar o controlo da gestão das empresas por fuga ou sabotagem dos patrões e gestores e fazem-no inicialmente para assegurar os seus postos de trabalho, não por uma decisão premeditada, mas pressionados pelas circunstâncias excepcionais que vivem. Muitos são também os exemplos de empresas cooperativas que funcionam bem, em geral de pequena escala, onde os trabalhadores são proprietários da empresa e as decisões são tomadas em assembleias democráticas. O exemplo destas empresas cooperativas bem sucedidas é minimizado, nomeadamente por “revolucionários encartados”, que vêm nelas (com razão) uma negação dos seus projectos autoritários. Porém, os capitalistas também fazem tudo para sabotar o seu sucesso, mesmo quando estas não são ameaça de concorrência em relação ao sector capitalista. Daí que um modelo de autogestão e cooperativo generalizado não se possa instalar paulatinamente, por generalização do modelo, pela simples razão que a classe exploradora não o permitirá, enquanto se mantiver no poder. Isto não significa que tal modelo de gestão e de propriedade cooperativa não possa vir a constituir a futura base do que se poderá considerar uma sociedade assente em princípios não capitalistas (e portanto, socialistas): quer dizer, ao invés, que estas soluções já existem na teoria e já foram ensaiadas múltiplas vezes, não sendo nada utópicas, antes pelo contrário. É isso justamente que temem os detentores do poder actual e os seus capatazes; que se torne desejado, óbvio, necessário tal modelo no espírito das massas, por ter sido posto em prática com sucesso em vários pontos do globo e em vários ramos de actividade.AUTOGESTÃO NÃO É UTOPIA Por isso também, os libertários - em geral, defensores da autogestão e das cooperativas - caem num tremendo erro ao aceitarem de bom grado que outros (quando não eles próprios) os classifiquem de “utópicos”. Isso é realmente a forma de auto derrota mais acabada, pois eles próprios estão a dar crédito às atoardas dos seus mais acérrimos inimigos, os capitalistas e os capatazes destes, que chefiam os partidos ditos “socialistas” ou “comunistas” ou de “esquerda”. A viabilidade de formas de organização em autogestão e em cooperativas não está portanto carecendo de ser demonstrada. Não se pode dizer o mesmo, quer de modelos idealizados que “legitimam” mecanismos de mercado do capitalismo privado, quer da centralização extrema do capitalismo de estado ou bolchevismo, enquanto instrumentos de emancipação e justiça social.A liberdade sem socialismo mais não é do que miséria e injustiça para a imensa maioria, e o socialismo sem liberdade um monstruoso sistema de escravização e negação da dignidade humana, conforme já defendia Bakunine, há quase 150 anos, nos tempos da Iª Internacional.Para uma autogestão generalizada ser realizável, não é imprescindível desarticular conjuntos vastos e complexos de produção ou de serviços, como por exemplo, a grande indústria ou os serviços de saúde ou outros, ou ainda os sistemas de comunicação. Confunde-se, por vezes, autogestão com uma visão realmente nada revolucionária do tipo “small is beautiful”, com um “ecologismo fundamentalista” ou mesmo com formas extremadas de negação da civilização tecnológica, pelos chamados “primitivistas”.Na verdade, não há razão para se pensar que a distribuição horizontal do poder seja necessária e obrigatoriamente correlata do fraccionamento das unidades produtivas ou de serviços a uma escala familiar ou de pequenas comunidades. A possibilidade de autogestão das formas herdadas do passado, do capitalismo industrial, é perfeitamente viável desde que o controlo do funcionamento de tais unidades exista não apenas internamente, pelos seus próprios trabalhadores, como por parte das comunidades locais, regionais, nacionais ou mesmo internacionais. Este controlo comunitário pode ser concebido como uma extensão do modelo federalista libertário, em que as diversas unidades guardam toda a autonomia no domínio da sua esfera de competência, estando obrigadas por “pactos” ou “contratos” em relação a outros conjuntos, sejam eles outras unidades de produção, sejam as próprias comunidades organizadas em assembleias. Claro que neste campo há muito que inventar e que melhorar. Porém, veja-se que o próprio sistema capitalista funciona muito na base de contratos de trocas recíprocas, visto as empresas de um determinado ramo precisarem deste ou daquele serviço das empresas de outros ramos, sendo estabelecidos contratos e acordos que beneficiam mutuamente os parceiros. A imagem de uma concorrência capitalista desenfreada, transmitida pelo pensamento dominante, é totalmente falsa e ideológica. A verdade é que grandes empresas, conglomerados de empresas, holdings, transnacionais, etc. resultam da associação vertical e horizontal de múltiplos ramos de actividade e funcionam segundo uma lógica interna de cooperação. O mesmo se poderá dizer de serviços estatais, seja do aparelho de estado central (ministérios, etc.), seja de organismos de gestão e de propriedade públicas (as escolas, as universidades e centros de investigação, os sistemas de saúde, etc.).Portanto, considerar que a autogestão é uma coisa boa, em princípio, porém só realizável em pequenas empresas ou em pequenas comunidades mais ou menos fechadas sobre si próprias, é outra forma de auto derrota dos nossos ideais, outra forma de dar “argumentos” a todos aqueles que nos chamam de idealistas utópicos.OS TRABALHADORES TÊM CAPACIDADE PARA A GESTÃO DAS EMPRESAS Com efeito, aquelas pessoas que têm experiência de trabalho em organizações modernas, seja na esfera privada ou estatal, sabem bem que a imposição de modelos estritamente hierárquicos de gestão é desastrosa, causadora de baixa produtividade, apenas se mantendo sob coacção. Os próprios capitalistas já perceberam isso, há muito tempo, tendo a gestão empresarial vindo a favorecer os modelos mais flexíveis, com uma certa autonomia, uma certa capacidade de decisão ao nível mais baixo possível, embora sempre com mecanismos de controlo e de avaliação da “rentabilidade”, ditados pelos “superiores interesses” da empresa ou do estado. Por isso mesmo, a responsabilização colectiva dos trabalhadores pelas tarefas que estão destinadas às várias unidades dos grandes conjuntos, não é fora do âmbito das possibilidades sociais concretas das pessoas, do aqui e do agora. Este tipo de organização do trabalho torna-o mais humano, menos sujeito a tensões e desgaste físico e psíquico, que o modelo de competição desenfreada e de sujeição absoluta ao poder patronal. A cooperação é hoje em dia estimulada, incentivada mesmo, nalgumas empresas capitalistas de ponta, nas unidades onde a contribuição criativa de cada trabalhador é mais relevante. Como se assiste a um generalizado aumento da componente do saber técnico e científico nas diversas esferas produtivas e de serviços, a tendência será para fazer diminuir o tipo de trabalho enfadonho e repetitivo e haverá também maior capacidade por parte dos trabalhadores (e também devido ao mais elevado grau de instrução), em abordar tarefas de gestão. Porém, como o capitalismo não pode operar uma distribuição equitativa do produto do trabalho e do poder, mas apenas a sua concentração, prefere que o trabalho continue a ser organizado nas condições mais precárias para os trabalhadores, sabendo que isso traz inevitavelmente um maior sofrimento social geral. Prefere guardar um exército de desempregados, disponíveis como reserva, afastados da esfera produtiva, pois assim os que ainda possuem o seu “ganha-pão” olham amedrontados para os desgraçados que ficaram marginalizados e consideram-se “felizardos” por, apesar de tudo, não terem “caído tão baixo”.É esse o mecanismo que leva os governos subservientes ao patronato a cortar todas as garantias de estabilidade conquistadas pelos trabalhadores, nos países com vigoroso crescimento económico nas três “gloriosas” décadas do pós IIª Guerra Mundial.COMO COMBATER A PRECARIZAÇÃO? Como referido acima, este tipo de organização da sociedade gera tensões individuais e colectivas insuportáveis, estando na origem de múltiplos problemas sociais graves. As pessoas e os agregados familiares são as primeiras vítimas dessa nova “barbárie”. Os mecanismos perversos instituídos na organização do trabalho são dos que geram maior angústia, doenças psicossomáticas diversas, que hoje atingem a generalidade das pessoas. As famílias são desarticuladas pelo efeito de tensões na esfera do trabalho, as quais vão potenciar toda a espécie de desequilíbrios, havendo simultaneamente uma interiorização e uma transferência para os outros (as pessoas com quem se partilha a intimidade) das frustrações, dos medos e das angústias. Tudo isto é banal e bem conhecido, as relações laborais precárias é um dos factores de desarticulação da família, de a esmagarem, pela generalização do modelo do trabalho fraccionado e sem garantias. A forma como é apresentada a crise da família, logo de toda a sociedade, como se fosse uma “fatalidade”, sem explicar as causas profundas, é uma artimanha dos media ao serviço dos poderes. Teremos de ser nós, “simples mortais” a apoquentarmo-nos, a dizermos não, a afirmarmos que o ser humano não pode ser considerado como uma “mercadoria”, “usável” e “descartável” a bel prazer de uns poucos “decisores”.LABORATÓRIOS SOCIAIS A recusa deste tipo de relações sociais está patente sob múltiplas formas, algumas das quais já acima referenciadas (indiferentismo político, disfunções nas esferas socio-familiares, multiplicação e generalização de doenças psicossomáticas). A marginalização a que uma enorme parte da juventude dos nossos dias é submetida é a causa óbvia de muitos dos comportamentos ditos “anti-sociais”, ou de “adolescência prolongada”, ou “auto satisfação hedónica”. Porém, a tomada de consciência dos jovens também se vai espalhando, sabendo eles perfeitamente que esta sociedade não lhes reserva futuro nenhum. Se alguns se afundam, muitos outros buscam, de forma mais ou menos explícita, alternativas a esta sociedade demente, brutal, cruel. É portanto uma reacção consciente e saudável de uma parte dos jovens, a sua associação em colectivos, propagando formas alternativas de cultura, onde acabam sendo experimentadas formas relacionais construtivas, de cooperação sem hierarquias, numa prática comunitária... no fundo, descobrindo ou actualizando e levando à prática muito do que seus pais (da geração herdeira directa da revolta de 1968) vislumbraram na sua adolescência e juventude, mas que numa ou noutra fase do seu percurso, acabaram por abandonar. Em Portugal, esta geração corresponde aos filhos dos adolescentes ou jovens adultos aquando do 25 de Abril de 74. Nestes grupos de jovens, estão realizando-se “laboratórios sociais” do futuro: as ocupações (“okupas” ou “squats”) e organização em centros sociais, as inúmeras redes intercâmbio e de discussão criadas por internautas, as bandas musicais alternativas ao “show-business”, etc. ... Todo este conjunto cultural diversificando e heterogéneo veicula a não-conformidade com a norma imposta, com o bem-pensante, mesmo que as sua mensagem pareça “simplista”. Se há fenómeno de moda, também é notório que não aceitarão facilmente a padronização social. Pois essa “moda” assume, em geral, formas de vivência (ou desejo de vivência) anti-capitalistas, anti-consumistas e anti-autoritárias. Evidentemente, a rapidez com que assimilam a “moda”, mesmo que seja a mais distante das “normas convencionais”, pode também ser a mesma com que a abandonam e se “arrumam” na sociedade hierárquica tradicional, em muitos casos. Mas uma minoria irá prosseguir, construindo a sua personalidade e cultura próprias com base nas ricas experiências vividas em comunidades autogeridas.Porém está muito atrasada a etapa seguinte à tomada de consciência, ou seja, da auto-organização das pessoas em vista à inserção dos seus anseios e das suas concepções no plano realista da economia, da luta no plano económico, de forma prática e eficaz em relação à mera propagação de ideias, conceitos, etc. relativos à autogestão e ao comunitarismo.ESTRATÉGIAS ANTI-CAPITALISTAS A capacidade de sermos efectivos contra o sistema de exploração capitalista, tem necessariamente (embora não exclusivamente) de passar pela luta em duas frentes:- Combate directo às condições de exploração, através de sindicatos verdadeiros, ou seja os sindicatos que são realmente instrumento dos trabalhadores, ao serviço das suas lutas, - Combate indirecto, criando cooperativas, com intervenção na economia, gerando lucros ou excedentes, os quais serão repartidos de acordo com os princípios acordados pelos seus trabalhadores cooperantes em assembleias democráticas. As duas frentes estariam articuladas. Os sindicatos promoveriam activamente a organização de cooperativas, os sócios de sindicatos que estivessem no desemprego seriam estimulados e apoiados em retomarem trabalho criando os seus próprios instrumentos de produção. A presença de um sector cooperativo em determinado ramo de actividade teria consequências benéficas para TODOS os assalariados: com efeito, os cooperantes furtando-se à exploração patronal, fariam automaticamente diminuir o número total dos que pedem trabalho, obrigando o patronato a oferecer melhores condições de remuneração, ou outras, para conseguir atrair trabalhadores. Os trabalhadores organizados em cooperativas teriam vantagem no fortalecimento da acção sindical. A tendência será para que as cooperativas ofereçam condições de trabalho, incluindo as salariais, melhores que a maioria do patronato. Logo, a existência de organizações activas no combate à exploração capitalista, organizações sindicais fortes, que obriguem o patronato a melhorar substancialmente as condições de trabalho, incluindo a remuneração dos seus assalariados, irá tornar mais difícil a agressiva concorrência dos sectores capitalistas em relação às empresas cooperativas presentes no mesmo sector de mercado.Para além destes aspectos muito concretos de luta económica, não podemos deixar de considerar tão, ou mesmo mais importantes, os aspectos de aquisição de experiência de gestão, de experimentação no concreto de métodos democráticos de tomada de decisão e de funcionamento em geral ( isto tanto se aplica ao caso dos sindicatos como das cooperativas). Só uma vivência prática poderá mudar a mentalidade; uma “pregação” teórica, por mais “didáctica” que seja, apenas se assemelhará a uma aula “ex-catedra”, provavelmente enfadonha para muitos. O que se propõe é muito diferente: ensinar pela prática, fazendo e sendo esse ensino recíproco, ou seja as pessoas ensinarem-se mutuamente, comparticipando de maneira criativa e construtiva na edificação, desenvolvimento e manutenção de projectos dos referidos âmbitos, cooperativo e sindical. De facto, só se alcança a tomada de consciência plena quando se passa do mundo abstracto das ideias para o mundo concreto dos factos económicos e sociais.
Manuel Baptista
http://luta-social.blogspot.com

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