ACHAR UMA CIDADE, ACHAR PARA MIM, UMA CIDADE PARA VIVER
Dilema colocado para a história cultural libertária: ou perder-se no espontaneísmo criador da energia ancestral liberadora, não articulada pelo discurso e não recuperada pela história, ou representar miticamente o espaço de resistência perdido na memória ou planejado num suposto devir. Ambas as opções igualam-se ao distanciar-se do presente. A consciência da recusa não deve ser buscada ideológica e abstratamente, mas, antes, de forma concreta e material nas ações de vários grupos libertários (jornais, ligas, sindicatos, centros de cultura social, escolas) e no seu inter-relacionamento. O anarquista, ao vivenciar o projeto de libertação, foge do ritmo imposto pelo trabalho. Centros de estudos, teatros operários criam espaços do sonho, da embriaguez. Usam seu pouco tempo livre entre cafés, discussões e leitura dos grandes pensadores. Possuído pela aventura, larga seu ofício, sua terra e busca a utopia entre as araucárias do Paraná. Teme a monotonia do trabalho, da família, da escola, e joga-se num sonho de auto-gestão, da educação popular e do amor livre.Não quer ser apenas o que trabalha dia e noite, aspira ser outro, ser livre. Desencontros e armadilhas vão acontecer na fusão do sonho libertário com a fala dos intelectuais apaixonados por esse sonho. Como vai falar aquele que não está inscrito nem para pensar? Lançar-se nesta aventura significa o afastamento da massa de anônimos e a construção de uma fala solitária. Fala que desconfia de uma relação harmoniosa entre o sonho e a consciência exigida pelo saber militante. Falar solitário parido pela noite e pelo sonho que embarca e nubla as claras manhãs da teoria. Ser duplo, foge do coletivo para tentar ser único. Tentativa frustada, pois a unicidade se estilhaça por entre as fábricas e o anônimo da cidade e da multidão1. Essa sensação de alheamento no urbano, o desterro e a loucura da rebeldia, lançam âncoras no espírito romântico que pensou e se pensou historicamente abandonando o teocentrismo e adotando o progresso enquanto sucedâneo do arbítrio divino. Derivado e crítico do Iluminismo, encontra nas concepções de nação, povo, massa, opinião pública, classe, os motores da evolução histórica e do caminho da perfectibilidade do homem e da sociedade. Assume também uma visão pluralista, onde não temos a História e sim as histórias com suas peculiaridades nacionais, culturais, étnicas. Seu conceito de homem não é o da razão e sim o da emoção, da fantasia, com grande complexidade psicológica, onde teremos o sentimento do sentimento, o desejo do desejo; irresolução e ambivalência. União e separação de sentimentos opostos: da confiança ao desespero, da nostalgia ao fervor, do entusiasmo à melancolia. Elementos de inquietação constante, insatisfações permanentes que parecem não ter fim. Podemos dizer que estes conflitos interiorizados sejam universais, porém somente com o romantismo é que adquiriram expressão literária e artística. Lembremos que os escritos do jovem Bakunin são claríssimas manifestações dessa angústia e fantasia românticas. Este privilégio do eu egocêntrico, uma recusa do eu racional iluminista, busca uma idade de ouro perdida. Notemos ainda que o espírito romântico é prenhe de um grande teor espontaneísta que contagiará não apenas as expressões literárias e artísticas, mas também a política e principalmente a vertente libertária. Este âmbito rebelde do romantismo não é apenas estético, mas também social ao insurgir-se contra o status quo e tentar colocar-se como profeta, guia, porta-voz do povo. A atitude rebelde é assim definida por Erich Auerbach:
a rebeldia que extrapola o próprio romantismo é encontrável em toda a Europa, na Alemanha, na Itália, na Inglaterra; mantém-se mesmo, um tanto modificada, após a época do romantismo até a primeira guerra mundial; por vezes, transforma-se em ódio, ódio ao burguês, ódio à sociedade, outras vezes torna-se indiferença orgulhosa, esnobismo ou esoterismo deliberado; um culto extremado do indivíduo daí resulta; as formas dessa atitude, originariamente romântica, são variadas em demasia para que possam ser enumeradas aqui, mas o que é comum a todas é o abismo que se abre entre o poeta e a sociedade(...)2
Rebeldia em busca do infinito, da totalidade, rebeldia que possui a intuição do ser difuso, inconstante, incoerente, criador e criatura da natureza. Esta percepção do caos, do hostil movimento ao indivíduo, do furacão no qual estamos imersos, fornece uma imagética de vertigem, de fluência às expressões não só literárias, mas também plásticas do romantismo. Teríamos na atitude romântica um perpétuo esforço em apreender aquilo que é efêmero, cuja solidez sempre se desmancha no ar. Para os românticos a literatura teria o caráter de síntese, de unificação e de totalização, o que lhe daria uma função pedagógica de formação humanista que reivindica para a arte uma função revolucionária. Wagner em A arte e a revolução já nos lembrava que "a educação tornar-se-á sempre mais artística, um dia seremos todos artistas(...)" Lembremos não só da profícua colaboração e mútuo respeito entre Bakunin e Wagner na antevéspera da primavera dos povos, como também a menção de Wagner em um conto escrito por um anarquista anônimo, Fogo, publicado pelo jornal Na Barricada3,menção que não é um ato isolado, pois a obra de Wagner sempre esteve presente na reflexão anarquista sobre a arte. Tanto o poeta romântico quanto o libertário ao se sentirem possuidores de verdades ainda não atingidas pela maioria da população, ao se sentirem estrangeiros em sua própria terra, são indivíduos desenraizados mais próximos dos loucos e das crianças do que da normalidade imposta pela racionalidade contábil da burguesia. Esta rebeldia romântica, esta insatisfação permanente abriria caminho ao satanismo, onde a sede do conhecimento, poder e domínio não teria raízes meramente humanas e sim um conflito profundamente teológico. Satã, fonte de vigor do espírito e da imaginação para Blake, também seria a fonte de rebeldia primeva para incontáveis libertários. De Bakunin a Roberto das Neves, Lúcifer, anjo caído e primeiro rebelde sempre foi uma fonte de inspiração. A cidade moderna será o palco preferencial tanto da resistência à mercantilização da vida como o espaço da prática cultural libertária. Adentremos a metrópole lembrando que trabalhar sempre sem brincar faz de João um mau rapaz. A cidade moderna produz maus rapazes e já não tem lugar para a fruição dos prazeres da caça ou da cama, apoiando-se numa ética produtivista, consumidora e de negação do indivíduo. O imenso tráfico populacional é traço constitutivo da metrópole. Construções aceleradas, demolições, novas obras, ruínas precoces. Os que atraídos e forçados a viver nas cidades não construíam novos espaços, mas sim alojavam-se onde houvesse um local disponível. Para percebermos melhor a profunda desordem da cidade moderna devemos adentrar o imaginário que dominava sua existência. A idéia do acaso como motor da evolução, a luta pela existência e a sobrevivência do mais apto marcava a concepção de então. No princípio da cidade moderna tínhamos o caos e esse não precisa de plano. A própria lógica do desenvolvimento industrial leva ao gigantismo que realçará o horror urbano, a necessidade do "exército industrial de reserva", da "coluna móvel da pestilência" para a reprodução do capital que exige a cidade monstro, a cidade inferno. O ritmo cíclico do mercado com quedas de produção ou momentos de super-produção faz do centro urbano, densamente povoado, peça fundamental da indústria. Deixemos que Álvaro de Campos nos ilumine com sua Ode Triunfal: "À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo/ ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r- eterno!"
A livre competição e o mercado determinam aleatoriamente a ocupação do espaço, o que transforma o cenário urbano em ruas tortuosas entre fábricas e escritórios, pátios ferroviários onde dragões a vapor dormem seu sono metálico por entre montes e montes de detritos. Não só a sujeira e ruídos fabris penetram na alma da cidade, são acompanhados por uma linguagem arquitetônica (depósitos, oficinas, largas avenidas, espaços anti-humanos) capaz de resistir ao ambiente produzido. Deixemos o olhar vagar por esse cenário que fascina e amedronta, entremos em becos escuros, alertas para não tropeçarmos nas barricadas de lixo. Casas e rostos indistintos, pouca luz e quase nenhum verde, o cenário cinzento e monótono se repete quarteirão após quarteirão. A rua dos bairros pobres se revela o local mais propício para uma tentativa de vida em comum, o palavreado festivo-etílico dos bares, o papo furado nas barracas e até o inesperado do artista de rua, cantador, malabarista, saltimbanco e mendigo. Deixemos o poeta passear, "luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,/ Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots/ (...)? Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hó la foule!/ Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!/ Comerciantes; vazios; escrocs exageradamente bem vestidos;(...)" A reação contra a cidade devoradora de homens se dá em vários níveis sendo um deles a valorização do subúrbio, da natureza artificial próxima e aparentemente distante da cidade-fábrica. Essa corrida ao subúrbio é uma atitude romântica que, revoltada contra a ordem cinzenta e mal cheirosa, procura a originalidade natural e refuta a automação da grande cidade. No lugar de retas, curvas que respeitem uma pedra ou uma árvore, parques e espaços com simulacros de ruínas que permitem o prazer de uma caminhada; esta atitude deixa marcas que mais tarde influenciariam planos de urbanização. Kropotkin no seu livro Campos, Fábricas y Talleres defende que a técnica dominada nos centros urbanos fornece as bases para uma nova comunidade que, aliando o urbano ao rural, proporcionaria um maior desfrute da vida e maior liberdade. A arte da violência encontra seu palco e local de maior expressão por detrás da aparente ordem e uniformidade burocrática da cidade. A impossibilidade da experiência compartilhada, a desumanização determinada pelo maquinismo abre as portas para a violência da violência. Allan Poe tanto no The man of the crowd como no The murders in the Rue Morgue lançará seu olhar fascinado para entender/ descrever esta violência; Sherlok Holmes também a perseguirá nos becos sombrios de Londres e em Paris a gangue juvenil Apaches exercitará essa violência no início do nosso século4. Vejamos o poeta como astrônomo, "Agressões políticas nas ruas,/ E de vez em quando o cometa dum regicídio/ Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus/ Usuais e lúdicos da Civilização quotidiana(...)" A constituição de um cenário mutável que se faz em escombros para poder existir, a fragmentação enquanto instituidora de ruínas permanentes e o perambular de indivíduos sem rosto nesse palco exige um esforço de catalogação, enumeração, quantificação para tentar ordenar o caos. A burocracia urbana vai se apoiar em pastas de comunicação, de registro, de consulta e controle para tornar concreta e palpável aquela realidade tão fugidia, fugaz e fantasmagórica da cidade. Como num jogo de esconde-esconde muito deste esforço de índole arquivística, classificatória, mostra-se ilusória. Lewis Munford numa feliz metáfora compara a metrópole com a Rainha Vermelha de Alice, ambas, apesar do enorme esforço de velocidade, mal conseguem manter-se no mesmo local5. O controle burocrático fez do papel e hoje faz dos computadores os aliados insubstituíveis e eficazes dos projetos de dominação; daí compreendermos desde a remota fúria anarquista contra os papéis, ("para o fogo com os documentos!") até a contemporânea ficção cyber-punk e os guerrilheiros da informática, os hackers6. A rotina, o triste cotidiano do trabalho não pode ser frontalmente encarado pelo habitante da cidade, ele não vive e não vê o mundo real, mas é dominado por ilusões, cores, luzes, papéis, cartões magnéticos. Vítima e ilusionista num só ser. A experiência, o viver do citadino é cada vez menor no sentido de interpretar, narrar sua própria vida. Os meios de comunicação de massa, na sua tentativa de escamotear os acontecimentos de toda e qualquer relação com a experiência individual, impossibilitam o acumulo de experiências. A informação breve, nova, inteligível e o caráter desconexo das notícias entre si paralisam o coração e a mente das pessoas.
Em sua obra Situação das classes trabalhadoras da Inglaterra, Engels afirma:
(...) uma cidade como Londres, onde se pode caminhar horas a fio sem se chegar sequer ao início de um fim, tem qualquer coisa de desconcertante... A indiferença brutal, o fechamento sensível de cada um nos seus próprios interesses privados, manifesta-se tanto mais repugnante e ofensivo quanto mais alto é o número de indivíduos condensados em espaço apertado.7
Nesta citação percebemos uma reação de repulsa, angústia em relação à cidade e à multidão. Como contraposição usemos o olhar do poeta. Suspenso num barulho urbano, o poeta olha rostos anônimos na rua. Fixa momentaneamente o olhar numa perna feminina, perfeição de estátua. Olhares cruzados, momento de furacão e frenesi. Sedução efêmera, perdidos na multidão jamais se verão novamente. A reação de Baudelaire para com a multidão no seu mover passivo e constitutivo da cidade é de atração e fascínio8.
Em Alma encantadora das ruas, João do Rio também mostrará esse fascínio:
Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter o espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso (...) praticar o mais interessante dos esportes, a arte de flanar. (...) Flanar: Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua: (...) Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia e à noite, meter-se nas rodas da população, admirar o menino da gaitinha alí na esquina, seguir com os garotos o lutador do Casino vestido de turco (...) conversar com os cantadores de modinha (...) É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico."9
Percebemos o desejo de anulação do indivíduo que flutua por entre a multidão; em Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, Lima Barreto falará sobre a multidão anônima das ruas, sobre a embriaguez no espetáculo dos símbolos e nos afirmará que "descendo as ruas ao sabor da multidão; nela flutuei com prazer, gozando a volúpia de minha anulação..."10
A presença da cena urbana de multidões, imigrantes, que não reconheciam como seus os cenários mutantes, vai não só causar uma profunda sensação de estranhamento, como também ameaçar a permanência do arcaico. As sucessivas construções/ demolições, o fluir permanente de uma massa anônima, a efemeridade das relações, costumes, modas ("fashion is something so ugly that we've to alter it every six months" - O. Wilde) fazem com que o passado deixe de existir enquanto referencial e seja substituído pela idéia de um futuro utópico. Este construir da cidade ideal como resposta ao desmonte contínuo do presente é também um futurismo nostálgico, pois tenta recuperar laços de solidariedade, humanismo, ajuda mútua, já definitivamente rotos pela modernização.
O século XX surge entre nós junto com Zapata e os irmãos Flores-Magón, juntamente com as exibições de modernidade que acompanham o centenário da independência (1910-1922). Assistimos também nesse período a uma progressiva nacionalização das doutrinas sociais vindas do além-mar (anarquismo, socialismo, comunismo), que, de uma atitude mimética do final do século XIX, passa a refletir sobre as peculiaridades nacionais talvez até como ato de defesa frente à acusação de planta exógena ao território latino.
Álvaro de Campos em sua Ode percebe os sinais da tempestade "Eh-lá-hó revolução aqui, ali, acolá/ alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim..."11.
A cultura popular no marco da cidade-fábrica é cada vez mais massificada e presente no seu tempo urbano. Molda-se à modernização e aos novos protagonistas urbanos; com uma nova temática, vemos o surgir do samba, tango, revistas populares. Desconhecidos em sua maioria, aparecem novos intelectuais ligados à boemia e à militância política. Neste período nenhum movimento foi tão fértil quanto o anarquismo que, coincidindo com os anseios da nova cidade, propunha a necessidade de uma educação popular, uma nova abordagem das relações pessoais, trabalhistas, direitos femininos, anti-militarismo. Os inúmeros centros de cultura social e universidades populares atestam a tentativa de construir essa utopia12.
A velocidade urbana faz com que a universidade deixe de ser a única via do intelectual. O autodidatismo proporciona um tipo de intelectual diferente, formado em mesas de bar, comércio de livros e revistas, conferências, o que o dotará de uma visão mais livre e também indisciplinada e caótica. A cidade impõe seu ritmo e padrões às composições literárias, que vão servir do didatismo moral, ao imediatismo histórico, ao esquematismo e pouca pro-fundidade. A comunicação com o leitor precisa ser imediata.
Nada melhor que o olhar do outro para perceber-se mudanças ditadas na urbe. Se a cidade moderna fundava-se na indústria, ferrovia e cortiços, na virada do século, São Paulo já havia conseguido o patamar mínimo para decolar enquanto metrópole. Os jornais paulistanos de então falavam do "canto ruidoso do trabalho", do "barulho das forjas", da "oficina de trabalho vivo, fábrica gigantesca de futuros paulistas"13.
Faltava a personagem multifacetada da metrópole que, em 1909, seria percebido por um viajante francês: "São Paulo é junto com o Rio o único lugar do Brasil onde pude ver uma multidão".
O novo que despontava, a imigração, o processo de urbanização, a classe operária, a decadência econômica em zonas de economia tradicional serão temas de reflexão na criação literária. Nas obras de Graça Aranha, Lima Barreto, teremos a reflexão do novo que surgia nas relações sociais da primeira República: o nascimento do proletariado e do sub-proletariado nos centros urbanos, as primeiras crises no Imperialismo, a Guerra de 1914 e a inquietação social que era crescente.
EXPERIÊNCIA URBANA E MODERNISMO
Todos já sentimos, ao perambular pela cidade, a pressão da multidão anônima, a monotonia de ruas e casas aparentemente iguais, a tensão junto ao caos dos transportes e também o estranhamento de estar no meio de tantas pessoas, cada qual com um caminho diferente. A cidade é o local de ilimitadas possibilidades, de encontros e movimentos.
Novas classes sociais e decadência das tradicionais elites fazem da cidade um mercado de casamentos por conveniência. Relações pessoais baseadas numa transação de propriedades, onde homens e mulheres são reduzidos a portadores físicos de bens e rendas, mercadorias expostas num mercado. Antônio de Alcântara Machado, num dos episódios de Brás, Bexiga e Barra Funda14, intitulado "A sociedade", nos faz um relato bastante irônico e ambíguo de uma transação comercial entre um quatrocentão decadente e um imigrante endinheirado que ostentava o título de cavaglieri ufficiale. A transação comercial é apenas um pretexto para um casamento de conveniência entre as duas famílias, o que proporciona ao imigrante, ex-aventureiro, agora próspero industrial, acesso à sociedade e à respeitabilidade social.
A cidade moderna é o local por excelência da expropriação do trabalho, do saber, da individualidade, mas é também o espaço de novos direitos, da possibilidade de construir uma democracia plebéia que, por idas e vindas, tenta resgatar o espírito comunitário.
Higienópolis, Campos Elíseos, Avenida Paulista: cogumelar de mansões, fazendeiros do café, imigrantes recriam e marcam a geometria urbana com suas construções. Oswald de Andrade, no poema "ideal bandeirante", nos dá um flagrante dessa mutabilidade do cenário urbano e da especulação imobiliária: "compre seu lote/ registre a escritura/ boa firme e valiosa/ e more nesse bairro romântico/(...) prestações mensais/ sem juros". Essa ocupação urbana proporciona o deleite para os proprietários, mas também é símbolo de um novo poder. Dentro do bonde, ou andando, o Zé-Ninguém sente-se intimidado, atemorizado pelas proporções não-humanas da demonstração urbana de riqueza e poder.
Gerações e gerações humildes caminham frente às mansões, jardins, parques e prédios; uma vista urbana mutável que faz continuar os símbolos de uma sociedade de classes sempre viva. Podemos perguntar onde estão a Primeira Guerra Mundial, os tenentes, as greves, a industrialização nas crônicas e poesias urbanas. A história, porém, tem muitas veredas e podemos perceber a tecitura de uma história social, da família, das classes e o constituir urbano através de uma sensibilidade veloz na percepção do moderno contida na ficção urbana.
A racionalização do processo produtivo (cafeicultura, mão-de-obra assalariada, investimentos na indústria e no transporte) deveria fazer-se acompanhar de um melhoramento social - boas maneiras, uma sensibilidade artística - e quando isso não ocorria, os capitalistas responsáveis por esse melhoramento social eram vistos sem lentes embelezadoras: avaros, calculistas, grossos, exploradores. O personagem Abelardo I é uma perfeita caracterização de um burguês não-envernizado15. Os processos que procuram o entendimento do urbano pela razão, pela ciência ou por qualquer método lógico são questionados pela valorização do inconsciente, do acaso, do desvario, da emergência do mito moderno que constrói incessantemente novas imagens: velocidade urbana que não permite o permanente e questiona o olhar que se fixa num só ponto.
No poema "paisagem", encontramos a imagem de um cafezal enquanto mar alinhavado, onde temos a construção da paisagem produtiva em contraposição ao paisagismo urbano retratado no poema "jardim da luz", no qual passarinhos que ninguém vê juntam-se a almofadinhas, soldados, lagos que compõem a fruição prazerosa do paisagismo dirigido, da natureza ordenada que normatiza e direciona o pouco tempo livre dos habitantes urbanos16. O próprio conceito de paisagem implica em separação e observação, na intervenção sobre o cenário natural que reflete a divisão entre produção e consumo. Essa ruptura do produtor frente ao consumidor é a base de um olhar que administra a natureza, quer como produção, quer como fruição estética. Trata-se de uma adequação da natureza a um novo ponto de vista, ao olhar de uma nova classe.
O caos, a diversidade e os ruídos da cidade-carvão, da cidade-máquina, provocam uma reação literária de atração e repúdio onde o fazer poético busca e necessita de uma nova linguagem, novas normas, enfim, olhos abertos. O olhar do poeta passa dos sentimentos - "há poesia na dor" - do observar a natureza - "há poesia na flor, no beija-flor" - ao prosaico, ao detalhe urbano - "há poesia no elevador"17. A fábrica, um dos pilares da cidade moderna, sua rotina maquinal e alienante torna-se motivo poético e personagem principal (na poesia "metalúrgica") de Oswald de Andrade18 onde o humano é conduzido "lá em baixo" em posição subalterna ao maquinário industrial. Este poema, um pequeno hino ao industrialismo, demonstra através de números ("1.300 graus à sombra, 12.000 cavalos invisíveis, 40.000 toneladas de níquel") a força, potência sobrenatural do novo processo produtivo. A estrada de ferro que introduz a modernidade nasce do solo, abstraindo, escamoteando o trabalho humano. Ao focalizar a potência da indústria, está implícito o elogio da produção, da cidade civilizada e aparentemente ordenada.
Ruas largas, estações ferroviárias, escritórios e órgãos governamentais, papel, carimbo, vacinas e rebeliões. À ordem aparente da cidade moderna o poeta contrapõe o imprevisto na "boca de mil dentes", do desfilar urbano de homens iguais e desiguais que formam um "povo desordeiro" que não pode "alargar as ruas" nem as instituições, e mesmo assim persiste em cantar no chão.
(...) Horríveis as cidades! Vaidades e mais vaidades! Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria! (...) Estes homens de São Paulo. todos iguais e desiguais, quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos, parecem-se uns macacos, uns macacos (Paulicéia Desvairada - Mário de Andrade - 1921)
(...) E o povo Ansioso Airoso Sacode no ar A palheta Da esperança Vendo o dia Tropical Que vai passar Na carruagem Dos destinos Do Brasil À saída da Câmara Pela boca ardente De um estudante Jorra a esperança Do grandioso E desordeiro Povo Brasileiro (....) (Primeiro Caderno do Alumno de Poesia - Oswald de Andrade - 1927)
A paisagem urbana produz a ordem legal, financeira, comercial, industrial, que, por sua vez, produz o cenário citadino povoado por rostos indistintos de trabalhadores que potencialmente trazem a sedição e também a submissão. O perfil do funcionário público imerso na grande cidade nos mostra uma psiquê normatizada e construída em consonância com a ordem citadina:
"O Revoltado Robespierre" (Senhor Natanael Ropespierre dos Anjos) (...) Dá uma tabefe no queixo mas cadê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidares muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é cousa que a gente percebe logo. (...) - Este viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas! (...) Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem: - Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado. (...) E todos os dias úteis ás onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por concurso não falando na carta de um republicano histórico." (Laranja da China - A. Alcântara Machado - 1928)
Para além do barulho, do caos e fuligem, o cronista também percebe a organização, a sistematização de um estado mental provocado pela cidade.
A perda da identidade na multidão é também a perda do eu e da própria sociedade numa sucessão de imagens que torna a percepção difusa e confusa. Essa experiência é fundamental para toda literatura urbana. Os movimentos aleatórios, a heterogeneidade, o acaso e fragmentos são os aspectos mais visíveis ao olhar urbano; peças que vão constituir a cidade enquanto materialização da consciência moderna. O poeta olha a cidade de sua janela, quieto, observa os pedestres, bondes e automóveis. Com ternura, pressente os dramas da grande cidade, as misérias ocultas nas fábricas do Brás19. Põe-se a escrever febrilmente e percebe que "(...) o amor existe. Mas anda de automóvel"20. Não há mais temas poéticos, todos os assuntos são cruciais; a inspiração pode surgir de um crepúsculo ou de uma chaminé, de um divino corpo feminino ou de um corpo divino de automóvel21. O belo artístico é uma construção humana e não um dado do real como o belo natural. O crítico Fernando Góes22 nos lembra que Paulicéia "é um livro rico, imensamente rico, direi mesmo que milionário de intenções e sutilezas, há verrinas contra os vícios, a vaidade de S. Paulo e seu cosmopolitismo".
Em 1922, o jovem poeta Luiz Aranha escreve o "Poema Giratório"23, onde a sensação de simultaneidade moderna salta das palavras; os jornais, os novos meios de transporte fazem com que possamos estar em São Paulo, New York, Londres, ao mesmo tempo. O homem moderno é um ser multiplicado e só.
Eu estava no colégio No bairro turco de S. Paulo... (...) Queria viajar por todo o mundo... (...) Só na enfermaria (...) A enfermeira vestida de luar andava na ponta dos pés e lia jornais falando sobre a guerra (...) O rumor Adivinho minha terra natal Prédios crescendo Andares sobre andares Catedrais Torres Chaminés O centro da cidade Prédios como couraçados Ancorados Cordoalhas Mastaréus Flâmulas tremulando Galhardetes dos traquetes E a multidão frenética Os bancos Os jornais As grandes casas comerciais Bondes Tintinabulação das campainhas Automóveis Buzinas Carros carroças fragorosamente Bairros industriais Catadupas de sons a rugir pelo espaço Ventres de fornos colossais Nas fábricas usinas e oficinas Turbilhonam turbinas Máquinas a mugir em movimentos loucos Vozes trepidações campanhias Baques gritos sereias alarido Rouquejos e troupel Relógios a compassar nessa luta insofrida O ritmo frenético da vida!... Americanamente (...) (Poema Giratório - Luiz Aranha, 1922)
A atualidade de Luiz Aranha é conseqüência direta do contemporâneo que o cerca. As informações e impressões que o poema nos fornece são colhidas de jornais, cinemas e do flanar na cidade. No dizer de Mário de Andrade24, o Poema Giratório "é um vasto voluptuário, e uma das mais notáveis criações dinâmicas que conheço" e também, "Luiz Aranha és já um filho da simultaneidade contemporânea"25.
A experiência da solidão na cidade é de maior importância na subjetividade urbana. Ela está presente nos movimentos da multidão que metaforicamente podem ser vistos como a dissolução da sensibilidade individual da experiência subjetiva única. A poesia andarilha urbana, o flanar poético estão repletos da sensação do eu multiplicado, multifacetado, o eu plural das ruas e contudo tão só. O paradoxo da solidão dentro da multidão desdobra-se em outras imagens urbanas: a rua e o arranha-céu ou a experiência sensorial do horizontal e do vertical nas cidades; o interior e o exterior ou a experiência vivida da casa, hotel, em contraposição ao espaço público, o grande mercado que é a cidade.
balada do esplanada Ontem à noite Eu procurei Ver se aprendia Como é que se fazia Uma balada Antes de d'ir Pro meu hotel É que este Coração Já se cansou De viver só E quer então Morar contigo No esplanada (Primeiro Caderno do Alumno de Poesia - Oswald de Andrade - 1927)
O poema nos mostra o jogo entre o hotel e o exterior, as ruas, enquanto ponte de afastamento e melhor observação solitária das cenas urbanas. A inspiração do fazer surge com o abrir da janela, como um jornal, onde fatos e cenas desconexas são contrapostas à lírica que não pode existir num hotel mas surge inesperadamente no elevador. No poema "soidão" percebemos a sensibilidade solitária na cidade, a chuva limpando as praças, jardins e afastando o sentimento de estar sozinho.
soidão ...Chove chuva chuverando Que a cidade de meu bem Está toda se lavando Senhor Que eu não fique nunca Como esse velho inglês Aí do lado Que dorme numa cadeira À espera de visitas que não vêm (...) Noite Noite de hotel Chove chuva chuverando
Arranha-céus, edifícios, órgãos governamentais, construções urbanas que são imagens do fervilhar febril das ruas, contraditoriamente podem provocar o lamento do poeta, "ninguém sabe da solitude que enche meu peito.."26.Os símbolos construídos alojam o poder, o tédio, e as ruas alojam a circulação, o batalhar pela vida, o sempre perigoso andar da plebe. A imersão na multidão torna a sensibilidade poética prenhe de ambigüidades inseridas de matéria não-poética: a cidade. O progresso industrial, o novo incessante, é acompanhado de um desespero existencial que desvenda o profundo vazio do industrialismo.
Alcântara Machado já nos alertava: "tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador"27.
SIGNOS DE UMA POESIA UTÓPICA
A definição de Afrânio Peixoto da literatura enquanto "sorriso da sociedade" tem por vista a literatura bem comportada, acomodada deste período, porém, com certeza, não se aplica àquilo que Lima Barreto chamaria de "literatura militante" e muito menos à produção marginal e marginalizada da ficção de lavra libertária, ficção esta propositadamente colocada em uma espécie de limbo, numa operação ideológica de esquecimento28.
Tanto os centros de cultura social como a imprensa libertária são ricos em exemplos de uma produção cultural autônoma e popular. Fixemo-nos em alguns exemplos da ficção libertária. As imagens chocam-se com a realidade da opressão e apostam no dia da libertação que metaforicamente sempre apresenta-se como fogueira, incêndio, lavas subterrâneas prontas para a erupção. No conto "Fogo!" de um trabalhador anônimo, publicado no jornal Na Barricada29 lemos:
Acabo de contemplar um pavoroso, um emocionante incêndio. A fábrica, antro horripilante de injustiças, ficou reduzida aos alicerces. As chamas, chamas reparadoras duma escravidão milenária, fizeram, em algumas horas, o que os homens, em anos de incessantes prédicas, não foram capazes de realizar. (...) A fábrica ardia crepitando monstruosamente, derruindo-se, arrastando consigo todos os artefatos que, junto com o suor dos operários, constituíam uma boa parte da riqueza do patrão (...) Por isso os comentários, em frente ao fogo, eram todos de pessoas interessadas. E através das chamas que rapidamente comiam a fábrica com fome feroz, com fome de demolidora justiça, os interessados, os que ficavam sem nada com a perda da fábrica, tinham a visão das negruras do porvir. (...) O fogo é artístico e estético. Duma beleza inimitável, parece essa música de Wagner que nos retrata nos tímpanos e no coração as convulsões espasmódicas dos elementos em eterno movimento.
O fogo, o incêndio, servem como metáforas da destruição de um mundo caduco, condenado, servem também como momento lúdico de criação da possibilidade de uma nova sociabilidade. A natureza elementar do fogo relaciona-se com a natureza elementar da justiça social; "a fruição da destruição é também um ato criativo"30. A fogueira libertária também estará presente nos versos do tipógrafo Constantino Pacheco e do libertário Neno Vasco:
LIBERDADE!... De tombo em tombo, a rastejar na lama, Manietada na idéia e de alma baça, A humanidade vive, geme e passa, Como se o mundo ardesse [em rubra chama!... (...) Como ele, aos ombros, com serenidade, Leva ao calvário a cruz, em nossos dias, Onde expira bradando: liberdade!... (Constantino Pacheco) A chama canta, salta e corre, O velho burgo tomba enfim... Oh! Quanto abutre cai e morre! Oh! Quanto abutre em seu festim! De face a arder, que a chama cresta! Ó parias nus, vindes dançar Dançar em roda, correr, cantar, Que esta fogueira é vossa festa! A chama a crepitar! Em círculo formai! Dançai! Dançai! De archote aceso, o mundo iluminai!31 (Neno Vasco)
Encontramos nestas poesias "signos do poema prometéico. Signos do poema utópico. Signos do poema político"32. Versos que trazem um discurso aberto para o futuro, para uma utopia comunitária, mostrando uma disposição ao canto. Em algumas, temos uma oralidade latente como se pudéssemos imaginá-los cantando em suas festas, protestos, comícios. Como num poema do sapateiro Pedro Catallo:
Não gosto da guerra, não! Não gosto da guerra, não! Não gosto dessas matanças Onde a fúria do canhão Não deixa nem as crianças. Gosto do sol e das flores Do cantar dos passarinhos; Das fontes, dos seus rumores, Que escuto pelos caminhos. Gosto bem da vovozinha, Dos brinquedos, da canção, Do papai, da mamãezinha. Não gosto da guerra, não!33 (Pedro Catallo)
Antes da intervenção modernista, encontramos na poesia libertária tentativas de uma" língua sem arcaísmos, sem erudição. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos" (Manifesto da poesia Pau-Brasil). Numa poesia coligida por Otávio Brandão de autoria de um tecelão alagoano e publicado no jornal A Plebe de 31/07/1920 e também no protesto anônimo e denunciador do poema publicado pela revista Careta em 21/02/1914; nestes poemas temos fragmentos do cantar quase que perdido do trabalhador anônimo:
Home pobre não pode juntá dinheiro Nem pode sê verdadeiro Cum trabaio de alugado. Vai na segunda, vai na terça, vai na quarta Vai na quinta, vai na sexta, No sabo tá infadado, (...) Chega em casa, a muié forma uma cara feia. - "Eu te puxo na oreia, Cala a boca condenado", - "Ora, muié, quando eu casei contigo, Se uma cobra me tivesse murdido Eu estava mais consolado." O menino que já está no chão caído, De fome tá invadido, (...)34 Foi lá na ía das Cobras Que se deu o sucedido: Pegaro uns prêso e meteram Num buraco cumprido E os sujeitos lá ficaram Sufocado e esprimido Se sarvaram quatro ou cinco Os de fôrgo mais cumprido. Mas prá êsses assim mesmo (Veja só que malvadez) Puseram cal no buraco Prá matá eles de vês. Mas os bichos resistiram A tortura do xadrez, Vieram contá cá prá fora O que o governo lhes fez.35
A imagem da super exploração do trabalho infantil é resgatada em muitos poemas da imprensa libertária, como no do trabalhador gráfico João Medeiros Coimbra:
Tenha pena de ti, pequeno proletário, Que, de manhã à noite, aí no ofício, Desperdiças, assim, por mísero salário. Os anos infantis, em troca de um ofício.36 (1920)
A sátira, ironia política também, se fazia presente neste poema de" João Vermelho" - pseudônimo usado por José Oiticica (histórica e ironicamente tão atual):
Pessoal, dê um viva ao chefe do trabalho! Collor merece manifestação: Deu-vos brida, selim, chincha e vergalho E uma alfafa legal à prestação. Viva "iô-iô" Lindolfo e seu esgalho: O Evaristo, o Agripino e o Pimentão! Ele vos levam, águias, para o talho, Bem amarrados a legislação. Gritai, ovacionai, enchei de vento A empáfia do Lindolfo safardana, Ex-bernardista que vos perseguiu! Gritai, com vosso grito uno e violento, Mandando a claque vil que vos engana À grandíssima pata que os pariu!37
Esta pequena amostra nos faz perguntar e procurar pelas pistas, sinais deixados por trabalhadores que, não tendo apenas a vocação produtivista, sonham, e, no fazer poético, fogem da produção. Instauram uma outra temporalidade, uma outra sensibilidade, a exigir seu reconhecimento como seres únicos e não, massa anônima. Resgatam a humanidade e fazem-se humanos em suas fugas e criações culturais.
A POESIA ESTÁ NAS RUAS
O criativo pluralismo anarquista está presente nas suas considerações estéticas. Individualista exalta a potência criadora, a originalidade do indivíduo. Coletivista ou comunista, celebra a capacidade criadora da comunidade popular. A permanência e pertinência de uma estética anarquista, como de todas as estéticas" políticas", depende estreitamente das vitórias e das derrotas da postura com a qual se alinha. Com as derrotas, no decorrer do século XX, o anarquismo enquanto crítica radical e irredutível é condenado ao esquecimento e guardado junto ao grande depósito das estéticas "políticas" jogadas no lixo da história: as primeiras estéticas socialistas de Saint-Simon, de Fourier, de Godwin e de todos seus discípulos.
O anarquismo certamente elabora uma estética social, porém quanto a uma estética" política," a questão é mais complexa. Os anarquistas refletem sobre as relações entre a arte e a revolta e entre a arte e o poder, na perspectiva de uma filosofia anti-ideológica e anti-política. Essa forma particular de estética se aproxima das estéticas "políticas" na medida em que estabelece as relações da arte com os movimentos sociais; a arte é vista como um "retorno da abstração à vida", é a guardiã da parte "imortal" do homem contra a sociedade alienante38.
Uma das mais fecundas reflexões sobre a arte e a anarquia é a de Gerard de Lacase-Duthiers, que elabora uma teoria da "artistocracia," que é "a anarquia realizada pela arte e a arte realizada pela anarquia." O" artistocrata" é ao mesmo tempo o homem do sonho e o da ação, o poeta e o guerreiro, o homem da torre de marfim e o militante. Ele realiza seu "ideal estético em toda a sua vida", faz da sua existência uma obra de arte, "uma obra de sinceridade, de equilíbrio e de harmonia", procurando unir sua conduta com suas idéias. Sua obra e sua vida são inseparáveis, ele é solitário e solidário.
Lacase-Duthiers nega ao mesmo tempo a arte pela arte e a arte engajada, o que procura e propõe são "obras sinceras onde os autores hajam rompidos com a moda, com o gosto do público, com as preocupações da literatura mercantil" e que exprimam a eterna revolta humana contra a autoridade.
A autoridade acaba onde a arte começa, ela acaba ao adentrar a estética que é o triunfo do pensamento e ação livres... A arte e a vida são uma mesma e única realidade. Quem as separa as mutila. Só resta então um rascunho grosseiro, testemunho de uma sociedade cuja decadência nada tem de grandiosa. Frente a esse rebanho de brutos, de inconscientes e semi-loucos, dos quais depende a sorte do planeta, a artistocracia levanta-se como um protesto vivo, elite de todos os homens livres de todos os países, que se negam a uivar com os lobos a balir com os cordeiros. Ela parece vencida, porém sua resistência à bestialidade não é por isso menos eficaz e constitui uma barreira contra a maré ascendente de lodo e de sangue que ameaça submergir a terra inteira, com o apoio da tecnologia que se encontra nas mãos da mediocracia, responsável por mortes e torturas.
A arte livre daria ao homem a capacidade de esculpir sua própria estátua, de auto-realização e de progredir pois "não existe mais progresso no mundo que esse progresso interior, todo outro progresso é um logro e uma ilusão"39.
As estéticas libertárias se opõem às sociedades materialistas e seus valores, à padronização da vida contemporânea, à comercialização da cultura. Elas exprimem uma revolta contra a uniformização crescente dos modos de viver e pensar, são contra uma arte que se submeta à outra autoridade que não a sua.
Recusam-se a se conformar, a se submeter. Recusa que não é cristalizada numa memória anarquista, mas que ressurge quando a própria reprodução de nossa organização social começa a ruir, quando as instituições - escolas, hospitais, tribunais, prisões - não apenas não fazem o que deveriam, mas sim o oposto. Vivemos uma extraordinária situação onde escolas e universidades criam a ignorância40; hospitais e hospícios perpetuam o sofrimento que deveriam aliviar; rádios, tevês, jornais e revistas impedem a comunicação que deveriam facilitar; e fábricas produzem mercadorias que se auto destróem, ou destróem as pessoas que as usam. Temos tribunais e prisões que produzem criminosos e um sistema político no qual os detentores do poder não possuem a mais vaga idéia daquilo que realmente ocorre e basicamente usam do poder para projetar suas fantasias de ódio em relação a si próprios, a nós e aos outros.
Esta recusa ressurge com a contestação generalizada dos anos 60, onde o artista e o ativista voltam a se encontrar numa só pessoa. Espaço de contestação, as ruas são palcos de atos estético-políticos, onde a
estetização progressiva do fenômeno contestatório abre uma nova fase; a ação e a manifestação se convertem em espetáculo, a poesia em ação. Assistimos a convergência das estéticas políticas e das políticas estéticas... que não é explicada apenas pela estetização do movimento estudantil. Esse fenômeno tem suas origens bem mais no despertar do movimento estudantil para uma sensibilidade anti-autoritária que, desde o simbolismo até as tendências mais recentes das vanguardas artísticas, marca a evolução da arte em nosso tempo. Na estética da violência nós encontramos os sinais familiares da `obra aberta' ou da `obra em movimento'. As profecias das estéticas anarquistas, originárias no século passado, encarnaram-se tanto na arte enquanto espetáculo total como nas manifestações conhecidas como `happenings'41. O artista e o ativista voltam a falar a mesma língua42.
Lembremos ainda, que em 1965 o professor Pietro Ferrua ministrou no Centro de Estudos Sociais `José Oiticica', no Rio de Janeiro, um curso sobre "Surrealismo e Anarquismo", onde esclarecia a relação estabelecida entre surrealistas e anarquistas na França durante os anos 50. Encontro conflituoso, áspero, que reativou o casamento entre o sonho e a revolução, ou, como queria Breton, "o negro espelho do anarquismo onde o surrealismo se reconheceu pela primeira vez"43. Não apenas o acaso fez ressurgir nas paredes do mundo, nos anos 60, palavras de clara inspiração anarquista e surrealista.
O reencontro entre o ativista e o artista não aconteceu apenas em San Francisco, Chicago, New York ou Paris, mas também no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, locais onde, dentro do espírito da época teremos essa fusão arte-rebeldia-vida, obviamente, com os devidos temperos tropicais. Heloísa Buarque em suas `impressões de viagem' dirá que "a contestação é assumida conscientemente. O uso do tóxico, a bissexualidade, o comportamento descolonizado são vividos e sentidos como gestos perigosos, ilegais e, portanto, assumidos como contestação de caráter político"44.
Duas auto-definições explicitam esse clima de época. Uma, de 1967, quando Caetano Veloso dizia:
quem sou eu? Sou o Rei da Vela de Oswald de Andrade, montado pelo Grupo Oficina. Sou brasileiro, sou casado e sou solteiro, sou baiano e estrangeiro... meu coração é do tamanho de um trem... e o nosso machonalismo é merdavarelo e puti.
Outra de um ano depois quando na contra-capa de um LP tropicalista de Gil, lemos:
eu sempre estive nu. Na academia de acordeão Regina tocando La Cumparsita, eu estava nu. Eu só sabia que estava nu, e ao lado ficava o camarim cheio de roupas coloridas, roupas de astronauta, pirata, guerrilheiro... Qual a fantasia que eles vão me pedir que eu vista para tolerar meu corpo nu? Vou andar até explodir colorido. O negro é a soma de todas as cores. A nudez é soma de todas as roupas.45
Nesse redemoinho de constestações individuais e sociais onde mudar a vida era mudar a sociedade, nessa experiência onde o impossível era o alvo, encontramos no Centro de Cultura Social (C.C.S.) de São Paulo (antigo ateneu libertário ainda em funcionamento) um motorista de táxi, Germinal de Amor, escrevendo coisas sem nomes e nomes sem coisas, isto é, poesia.46 Ele mantém a velha tradição ácrata do combate poético, como mostram os versos abaixo:
(sem título) O passado conta O presente conta No futuro, as contas (sem título) Em oblíqua lua bandeira rubra Em redonda terra bandeira nenhuma (sem título) A torre estática A história intacta Ao alto, luas opacas Ao longe, o pranto eterno das guitarras E no rio das águas, ao fundo, o coração do mundo (sem título) A guerra aterra - Um menino sem cabeça A guerra aterra - Procura-se uma mão A guerra aterra - E uma perna A guerra aterra - E um coração A guerra aterra - Lágrima de mãe, oceano maior A guerra aterra - Oh, homem homem! A guerra aterra
Versos de um poeta trabalhador escritos em 1968. No mesmo ano o Centro de Cultura Social (São Paulo) seria fechado pela ditadura militar e Germinal voltaria ao anonimato das multidões
UMA ESTÉTICA ANARQUISTA
A estética sempre foi uma preocupação dos pensadores libertários, dos dinossauros da anarquia (Godwin, Proudhon, Bakunin) à Fernando Savater47 e aos anarco-punks; fazer confluir arte e vida foi uma das apostas dessa estética anti-autoritária. Condenando a noção do "grande artista," do "artista único," do "criador genial" ela proclama a morte dos museus, da obra-prima, (e da prima dona!), da sala de concertos.
Milita por uma arte de resistência, espontânea, resultado do local e do momento. Importa mais o ato criador que a própria obra. Trata-se de destruir tudo o que separa a vida da arte. André Reszler já traçou o itinerário da estética anarquista de Proudhon e Bakunin à John Cage e Julian Beck, de Richard Wagner a música pop.
Já no coração da pós-modernidade, Jean François Lyotard ensina às crianças e a nós que é na pequena ação - e não mais na meta-história, nos grands recits - que encontramos a criação, a invenção, a imaginação, e que a condição pós-moderna se sustenta não contra o moderno e nem após o moderno mas apresenta uma forte compulsão para a desordem (para um anarquismo epistemológico à la Feyerabend) e estimula um enorme movimento de experiências descomprometidas, auto-geridas, voltadas para a vida48.
Ao responder sobre a falência de todo o sistema de poder, William Burroughs propõe em sua arte/ vida a destruição dos Estados-nações pelo agrupamento de indivíduos mentalmente unidos em comunidades separadas, autônomas. Poderiam ser organizadas comunidades só de varões, comunidades de percepção extra-sensorial, comunidades sanitárias, comunidades de judô e karatê, comunidades de capoeira, comunidades de onanistas, comunidades de ioga, comunidades reichianas-somáticas, comunidades de silêncio e restrição sensorial. Tais comunidades logo se transformariam em federações internacionais que poderiam e podem derrubar os limites das nações. No Almoço Nu ele vai nos lembrar que o controle nunca pode ser o meio para qualquer finalidade prática, nunca levando a nada, exceto a mais controle e a mais poder49.
As posturas estético-libertárias sempre estiveram no combate do "make it new," recusando a arregimentação fascista ou comunista da arte, sempre denunciando visceralmente qualquer engajamento autoritário. Rimbaud na sua exortação para "mudar a vida" anuncia o espírito de criação e libertação da arte. Criação que persegue algo que ainda não existe, que constrói novos espaços de imaginação, de libertação do indivíduo. Mais tarde os surrealistas, que, segundo Benjamin, recriavam um conceito radical de liberdade que não existia na Europa desde Bakunin e fundiam arte, revolta e revolução vão nos recordar pelas palavras de Breton, que "a luta pela substituição das estruturas sociais e a atividade desenvolvida pelo surrealismo para transformar as estruturas mentais, longe de se excluírem, são complementares. Sua junção deve apressar a vinda de uma época liberada de toda hierarquia e opressão"50. E Breton sabia que pairando sobre a arte, a poesia, quer queira-se ou não, tremula uma bandeira rubro-negra, posto que arte e anarquia se confundem pelo fato da criação emergir do não-pensado, do não instituído ou hierarquizado. Todo anarquista é um criador e qualquer ação artística é anarquista, consciente ou não, pois a criação só se realiza rompendo com o princípio de autoridade. Essa relação fecunda entre anarquistas e surrealistas se mantém viva ainda nos velhos e sempre novos anos 60, onde, no moinho de uma nova sensibilidade (não apenas livresca, linear, mas descontínua, dionísica, contracultural, sem hierarquias) estabeleceram-se novas afinidades, aproximações entre arte e anarquia.
Uma arte-postura que foi designada de arte marginal, experimental, independente, underground, curtição, subterrânea ou desbunde, aparece nas ruas de Amsterdã com os" provos", nas paredes de Sorbonne e de Nanterre, onde se lia "se queres o mundo que poderias ter graças aos descobrimentos/ invenções e riquezas atualmente existentes, esteja preparado para lutar por esse mundo. Para lutar por esse mundo na rua". Abbie Hoffman e hippies nos E.U.A., e também no `udigrudi' brasileiro com Flor do Mal, Presença, Verbo Encantado, e com o Tropicalismo e os Parangolés (criação de Hélio Oiticica).
Valorizando as experiências comunitárias, as sensações, a apropriação de rituais profanos, os acontecimentos fugazes e plurais, essa arte favorecia o momento, a afirmação insolente e cândida do ácrata frente a realidade social. Essa marginalidade é vivida pelos artistas como a necessidade de viver até o limite novas formas de comportamentos e linguagens. Realiza a possibilidade dos artistas representarem para si mesmos a utopia que organizam.
Em 1980/81, José Celso Martinez Correia e o Teatro Oficina recebiam, pela segunda vez, o grupo Living Theater51(na primeira vinda do grupo, em 1971, seus membros, haviam sido presos em Ouro Preto) e as comunidades artístico-teatrais de Zé Celso e Julian Beck partilharam experiências de transformações radicais de indivíduos-atores. Transformações mentais, culturais mas sobretudo, do corpo, onde essas comunidades de vida e arte livre possam exercer a fusão completa entre arte e vida.
Ora, mas tudo isso, Living Theater, Oficina, Zé Celso, Judith Malina, foi há vinte anos época do Rei da Vela e Paradise Now" - poderia bocejar um leitor mais sedento de montagens, textos e artes mais pós-modernas. Ainda bem que não. Há poucos anos a comunidade do Living encenou Anarchy in N.Y. e o Oficina - Cia de Teatro Comum Uzyna Uzona encenou In-Xorcismo e Comunhão de Cacilda!, trilogia escrita por Zé Celso.
Anarchy e In-Xorcismo de Cacilda são os gritos vivos de denúncia e exorcismo da sociedade administrativa, hierárquica e massificada que a experiência comunitária e artística do Living, do Uzyna Uzona e de centenas, milhares de outros coletivos, onde vida e arte se encontram. Ainda ecoam as palavras de Hélio Oiticica:" Uma posição crítica universal permanente e o experimental são elementos construtivos. Tudo o mais é diluição na diarréia"52.
NOTAS
1 Para uma análise da relação entre utopia e movimento operário vide Ranciére, J. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. São Paulo, Cia. Das Letras, 1988.
2 AUERBACH, E. Introdução aos Estudos Literários. São Paulo, Cultrix, 1970, pp. 229-230.
3 Na Barricada. Rio de Janeiro, ano II, nº 2, 16/01/1916.
4 Quanto à percepção do urbano na obra de Poe, vide o artigo de SEVCENKO, Nicolau. "Perfis urbanos terríveis em Edgar Allan Poe". In Revista Brasileira de História, vol. 5, nº 8/9, abril/85.
Em relação à gang juvenil Apaches vide artigo de PERROT, Michelle. "Na França da Belle Époque, os `Apaches', primeiros bandos de jovens". In Os excluídos da história. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
5 MUNFORD, L. A cidade na história. Belo Horizonte, Itatiaia, 1965, vol. 2, p. 685.
6 Cf. "Cyberpunks." In La Letra A. Buenos Aires, ano 2, nº 3, 1991, pp. 16-31
e GIBSON, W. NEUROMANCER, São Paulo, Aleph, 1991.
7 ENGELS, F. "The condition of the work-class in England." In Marx-Engels, On Britain, Moscow, Progress, 1962, p. 56.
8 BENJAMIN, W. "Sobre alguns temas em Baudelaire". In Os pensadores, vol. XLVIII, São Paulo, Abril, 1975, pp. 42-44.
9 RIO, J. do. Histórias da gente alegre. Rio de Janeiro, José Olympio, 1981, p. IX.
10 BARRETO, L. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo, Ediouro, s/d, p.71.
11 PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, pp. 306-311.
12 Vide a extensa enumeração realizada na pesquisa do historiador e memorialista Edgard Rodrigues.
13 Diário Popular, março de 1892.
14 MACHADO, Antonio de Alcantara. Novelas Paulistanas. Belo Horizonte/ São Paulo, Itatiaia/ Edusp, 1988, pp. 96-100.
15 ANDRADE, O. Teatro: A Morta, O Rei da Vela, O Homem e o cavalo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
16 ANDRADE, O. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, pp. 98-120.
17 Idem, pp. 165-166.
18 Idem, p. 102.
19 GÓES, F. O Espelho Infiel: Estudos e Notas de Literatura. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1966, pp. 121-122.
20 ANDRADE, M. Obra Imatura. São Paulo, Ed. Martins, 1972, p. 211.
21 Idem, p. 208.
22 GÓES, F. Op. cit. 1966, p. 135.
23 ARANHA, Luiz. "Poema Giratório". In Revista Nova, ano 2, nº 7, 15/03/1932, p. 253.
24 Idem, p. 216.
25 Idem, pp. 272-273
26 ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo, Martano, 1966, p. 102.
27 MACHADO, Alcântara. op. cit., 1988, p. 79.
28 BOSI, A. "As letras na Primeira República" In História geral da civilização brasileira. São Paulo, Difel, 1977, vol. 9, p. 297.
29 Jornal Na Barricada. Rio de Janeiro, nº 2, 16/01/1916.
30 NORTE, S.A.Q. Bakunin: Sangue, Suor e Barricadas. Campinas, Papirus, 1988.
Termina seu esboço de dialética da negação escrito em 1842 com a frase citada.
31 KHOURY, Y.A. "A poesia anarquista". In Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 8, nº 15, fevereiro/1988, pp.215-247.
32 BOSI, A. "Poesia resistência". In O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, 1983, p.177.
33 KHOURY, Y.A. Op. cit., p.220.
34 Idem, pp.232-233.
35 RODRIGUES, E. Nacionalismo & Cultura social. Rio de Janeiro, Laemmert, 1972, p. 86.
36 KHOURY, Y.A. Op. cit., p.224.
37 OITICICA, J. Ação direta. Rio de Janeiro, Germinal, 1970, p.27.
38 Os anarquistas sempre desconfiaram de uma arte militante, porém sempre disseram sim a uma arte que fosse parte integrante, inalienável do homem e de seu direito à paixão e à ação.
39 Todas as citações extraídas de Lacaze-Duthiers, "El Arte y la Vida". In Cenit, nº 49, enero, 1955, pp. 1457-1459.
40 Cf. TRAGTENBERG, M. A delinquência acadêmica. São Paulo, Rumo, 1979.
41 O termo `happening' engloba várias formas de protesto entre os quais o `teach-in' onde estudantes, professores e convidados expõem opiniões diversas num debate cultural-político, o `sit-in' onde grupos sentam-se em algum lugar público e recusam-se a sair, o teatro de rua onde encenam-se pequenos atos de protestos. Vide NEWFIELD, J. Una minoria profetica: la nueva izquierda norteamericana. Barcelona, Martinez Roca, 1969
e GINSBERG, A. Uivo: Kaddish e outros poemas (1953-1960). Porto Alegre, LPM, 1984.
42 RESZLER, A. L'esthetique anarchiste. Paris, Presses Universitaires de France, 1973, pp. 101-103.
43 "A Clara Torre" In Le Libertaire, 11 de janeiro de 1952. Para um balanço dessa convergência anarco-surrealista ver COELHO, P. A. (org.). Surrealismo e anarquismo, São Paulo, Imaginário, 1990.
44 HOLLANDA, H-B- de. Impressões de viagem. São Paulo, Brasiliense, 1980.
45 As citações foram extraídas de Veloso:1976 e Gil, 1982. ver também TORQUATO NETO. Os últimos dias de pauperia. São Paulo, Brasiliense, 1982
e GIL, G. e RISERIO, A. O poético e o político e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
46 As poesias de Germinal de Amor encontram-se tanto na imprensa libertária dos anos 60 (O Libertário, Dealbar) como em Algunas Canciones y otras Poesias, São Paulo, Ed. Folha do Cambuci, 1967 e numa edição artesanal sem título de 1968. Ambas edições constam do acervo doado pelo C.C.S.(Centro de Cultura Social) ao Centro de Documentação e Recursos Audio-Visuais (CEDRAU), Arquivo Canto Libertário, UNESP-Campus de Assis.
47 Fernado Savater é uma das mentes mais lúcidas do atual pensamento libertário, não apenas no desconstruir da razão autoritária mas também nas suas iluminações éticas e estéticas. Vide entre outros A decir verdad, Sobras Completas, Las Razones del Antimilitarismo y otras Rozones.
48 OLIVEIRA, R. C. "A categoria de (des)ordem e a pós modernidade da Antropologia". In Pós-Modernidade. Campinas, Ed. UNICAMP, 1990.
49 BURROUGHS, W. El trabajo. Barcelona, Mateu, 1971.
É essencialmente um escritor político fascinado pelos meios com os quais os indivíduos controlam outros, não apenas em termos políticos mas também psicológicos, mentais.
50 Cf. Le Libertaire, 12/10/1951.
Lembremos que, este periódico, quando da morte de André Breton publicou em sua primeira página "André Breton morreu. Aragon está vivo... É uma dupla infelicidade para o pensamento honesto".
51 ROSENFELD, A." Living Theatre e o Grupo Lobos". In Arte em Revista, nº 5, 1981, Kairós, pp. 105-107.
52 Cf. OITICICA, H." Brasil Diarréia". In Arte em Revista, nº 5, 1981, Kairós, pp. 43-45.
Sergio Augusto Queiroz Norte
Dilema colocado para a história cultural libertária: ou perder-se no espontaneísmo criador da energia ancestral liberadora, não articulada pelo discurso e não recuperada pela história, ou representar miticamente o espaço de resistência perdido na memória ou planejado num suposto devir. Ambas as opções igualam-se ao distanciar-se do presente. A consciência da recusa não deve ser buscada ideológica e abstratamente, mas, antes, de forma concreta e material nas ações de vários grupos libertários (jornais, ligas, sindicatos, centros de cultura social, escolas) e no seu inter-relacionamento. O anarquista, ao vivenciar o projeto de libertação, foge do ritmo imposto pelo trabalho. Centros de estudos, teatros operários criam espaços do sonho, da embriaguez. Usam seu pouco tempo livre entre cafés, discussões e leitura dos grandes pensadores. Possuído pela aventura, larga seu ofício, sua terra e busca a utopia entre as araucárias do Paraná. Teme a monotonia do trabalho, da família, da escola, e joga-se num sonho de auto-gestão, da educação popular e do amor livre.Não quer ser apenas o que trabalha dia e noite, aspira ser outro, ser livre. Desencontros e armadilhas vão acontecer na fusão do sonho libertário com a fala dos intelectuais apaixonados por esse sonho. Como vai falar aquele que não está inscrito nem para pensar? Lançar-se nesta aventura significa o afastamento da massa de anônimos e a construção de uma fala solitária. Fala que desconfia de uma relação harmoniosa entre o sonho e a consciência exigida pelo saber militante. Falar solitário parido pela noite e pelo sonho que embarca e nubla as claras manhãs da teoria. Ser duplo, foge do coletivo para tentar ser único. Tentativa frustada, pois a unicidade se estilhaça por entre as fábricas e o anônimo da cidade e da multidão1. Essa sensação de alheamento no urbano, o desterro e a loucura da rebeldia, lançam âncoras no espírito romântico que pensou e se pensou historicamente abandonando o teocentrismo e adotando o progresso enquanto sucedâneo do arbítrio divino. Derivado e crítico do Iluminismo, encontra nas concepções de nação, povo, massa, opinião pública, classe, os motores da evolução histórica e do caminho da perfectibilidade do homem e da sociedade. Assume também uma visão pluralista, onde não temos a História e sim as histórias com suas peculiaridades nacionais, culturais, étnicas. Seu conceito de homem não é o da razão e sim o da emoção, da fantasia, com grande complexidade psicológica, onde teremos o sentimento do sentimento, o desejo do desejo; irresolução e ambivalência. União e separação de sentimentos opostos: da confiança ao desespero, da nostalgia ao fervor, do entusiasmo à melancolia. Elementos de inquietação constante, insatisfações permanentes que parecem não ter fim. Podemos dizer que estes conflitos interiorizados sejam universais, porém somente com o romantismo é que adquiriram expressão literária e artística. Lembremos que os escritos do jovem Bakunin são claríssimas manifestações dessa angústia e fantasia românticas. Este privilégio do eu egocêntrico, uma recusa do eu racional iluminista, busca uma idade de ouro perdida. Notemos ainda que o espírito romântico é prenhe de um grande teor espontaneísta que contagiará não apenas as expressões literárias e artísticas, mas também a política e principalmente a vertente libertária. Este âmbito rebelde do romantismo não é apenas estético, mas também social ao insurgir-se contra o status quo e tentar colocar-se como profeta, guia, porta-voz do povo. A atitude rebelde é assim definida por Erich Auerbach:
a rebeldia que extrapola o próprio romantismo é encontrável em toda a Europa, na Alemanha, na Itália, na Inglaterra; mantém-se mesmo, um tanto modificada, após a época do romantismo até a primeira guerra mundial; por vezes, transforma-se em ódio, ódio ao burguês, ódio à sociedade, outras vezes torna-se indiferença orgulhosa, esnobismo ou esoterismo deliberado; um culto extremado do indivíduo daí resulta; as formas dessa atitude, originariamente romântica, são variadas em demasia para que possam ser enumeradas aqui, mas o que é comum a todas é o abismo que se abre entre o poeta e a sociedade(...)2
Rebeldia em busca do infinito, da totalidade, rebeldia que possui a intuição do ser difuso, inconstante, incoerente, criador e criatura da natureza. Esta percepção do caos, do hostil movimento ao indivíduo, do furacão no qual estamos imersos, fornece uma imagética de vertigem, de fluência às expressões não só literárias, mas também plásticas do romantismo. Teríamos na atitude romântica um perpétuo esforço em apreender aquilo que é efêmero, cuja solidez sempre se desmancha no ar. Para os românticos a literatura teria o caráter de síntese, de unificação e de totalização, o que lhe daria uma função pedagógica de formação humanista que reivindica para a arte uma função revolucionária. Wagner em A arte e a revolução já nos lembrava que "a educação tornar-se-á sempre mais artística, um dia seremos todos artistas(...)" Lembremos não só da profícua colaboração e mútuo respeito entre Bakunin e Wagner na antevéspera da primavera dos povos, como também a menção de Wagner em um conto escrito por um anarquista anônimo, Fogo, publicado pelo jornal Na Barricada3,menção que não é um ato isolado, pois a obra de Wagner sempre esteve presente na reflexão anarquista sobre a arte. Tanto o poeta romântico quanto o libertário ao se sentirem possuidores de verdades ainda não atingidas pela maioria da população, ao se sentirem estrangeiros em sua própria terra, são indivíduos desenraizados mais próximos dos loucos e das crianças do que da normalidade imposta pela racionalidade contábil da burguesia. Esta rebeldia romântica, esta insatisfação permanente abriria caminho ao satanismo, onde a sede do conhecimento, poder e domínio não teria raízes meramente humanas e sim um conflito profundamente teológico. Satã, fonte de vigor do espírito e da imaginação para Blake, também seria a fonte de rebeldia primeva para incontáveis libertários. De Bakunin a Roberto das Neves, Lúcifer, anjo caído e primeiro rebelde sempre foi uma fonte de inspiração. A cidade moderna será o palco preferencial tanto da resistência à mercantilização da vida como o espaço da prática cultural libertária. Adentremos a metrópole lembrando que trabalhar sempre sem brincar faz de João um mau rapaz. A cidade moderna produz maus rapazes e já não tem lugar para a fruição dos prazeres da caça ou da cama, apoiando-se numa ética produtivista, consumidora e de negação do indivíduo. O imenso tráfico populacional é traço constitutivo da metrópole. Construções aceleradas, demolições, novas obras, ruínas precoces. Os que atraídos e forçados a viver nas cidades não construíam novos espaços, mas sim alojavam-se onde houvesse um local disponível. Para percebermos melhor a profunda desordem da cidade moderna devemos adentrar o imaginário que dominava sua existência. A idéia do acaso como motor da evolução, a luta pela existência e a sobrevivência do mais apto marcava a concepção de então. No princípio da cidade moderna tínhamos o caos e esse não precisa de plano. A própria lógica do desenvolvimento industrial leva ao gigantismo que realçará o horror urbano, a necessidade do "exército industrial de reserva", da "coluna móvel da pestilência" para a reprodução do capital que exige a cidade monstro, a cidade inferno. O ritmo cíclico do mercado com quedas de produção ou momentos de super-produção faz do centro urbano, densamente povoado, peça fundamental da indústria. Deixemos que Álvaro de Campos nos ilumine com sua Ode Triunfal: "À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica/ Tenho febre e escrevo/ ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r- eterno!"
A livre competição e o mercado determinam aleatoriamente a ocupação do espaço, o que transforma o cenário urbano em ruas tortuosas entre fábricas e escritórios, pátios ferroviários onde dragões a vapor dormem seu sono metálico por entre montes e montes de detritos. Não só a sujeira e ruídos fabris penetram na alma da cidade, são acompanhados por uma linguagem arquitetônica (depósitos, oficinas, largas avenidas, espaços anti-humanos) capaz de resistir ao ambiente produzido. Deixemos o olhar vagar por esse cenário que fascina e amedronta, entremos em becos escuros, alertas para não tropeçarmos nas barricadas de lixo. Casas e rostos indistintos, pouca luz e quase nenhum verde, o cenário cinzento e monótono se repete quarteirão após quarteirão. A rua dos bairros pobres se revela o local mais propício para uma tentativa de vida em comum, o palavreado festivo-etílico dos bares, o papo furado nas barracas e até o inesperado do artista de rua, cantador, malabarista, saltimbanco e mendigo. Deixemos o poeta passear, "luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,/ Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots/ (...)? Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hó la foule!/ Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!/ Comerciantes; vazios; escrocs exageradamente bem vestidos;(...)" A reação contra a cidade devoradora de homens se dá em vários níveis sendo um deles a valorização do subúrbio, da natureza artificial próxima e aparentemente distante da cidade-fábrica. Essa corrida ao subúrbio é uma atitude romântica que, revoltada contra a ordem cinzenta e mal cheirosa, procura a originalidade natural e refuta a automação da grande cidade. No lugar de retas, curvas que respeitem uma pedra ou uma árvore, parques e espaços com simulacros de ruínas que permitem o prazer de uma caminhada; esta atitude deixa marcas que mais tarde influenciariam planos de urbanização. Kropotkin no seu livro Campos, Fábricas y Talleres defende que a técnica dominada nos centros urbanos fornece as bases para uma nova comunidade que, aliando o urbano ao rural, proporcionaria um maior desfrute da vida e maior liberdade. A arte da violência encontra seu palco e local de maior expressão por detrás da aparente ordem e uniformidade burocrática da cidade. A impossibilidade da experiência compartilhada, a desumanização determinada pelo maquinismo abre as portas para a violência da violência. Allan Poe tanto no The man of the crowd como no The murders in the Rue Morgue lançará seu olhar fascinado para entender/ descrever esta violência; Sherlok Holmes também a perseguirá nos becos sombrios de Londres e em Paris a gangue juvenil Apaches exercitará essa violência no início do nosso século4. Vejamos o poeta como astrônomo, "Agressões políticas nas ruas,/ E de vez em quando o cometa dum regicídio/ Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus/ Usuais e lúdicos da Civilização quotidiana(...)" A constituição de um cenário mutável que se faz em escombros para poder existir, a fragmentação enquanto instituidora de ruínas permanentes e o perambular de indivíduos sem rosto nesse palco exige um esforço de catalogação, enumeração, quantificação para tentar ordenar o caos. A burocracia urbana vai se apoiar em pastas de comunicação, de registro, de consulta e controle para tornar concreta e palpável aquela realidade tão fugidia, fugaz e fantasmagórica da cidade. Como num jogo de esconde-esconde muito deste esforço de índole arquivística, classificatória, mostra-se ilusória. Lewis Munford numa feliz metáfora compara a metrópole com a Rainha Vermelha de Alice, ambas, apesar do enorme esforço de velocidade, mal conseguem manter-se no mesmo local5. O controle burocrático fez do papel e hoje faz dos computadores os aliados insubstituíveis e eficazes dos projetos de dominação; daí compreendermos desde a remota fúria anarquista contra os papéis, ("para o fogo com os documentos!") até a contemporânea ficção cyber-punk e os guerrilheiros da informática, os hackers6. A rotina, o triste cotidiano do trabalho não pode ser frontalmente encarado pelo habitante da cidade, ele não vive e não vê o mundo real, mas é dominado por ilusões, cores, luzes, papéis, cartões magnéticos. Vítima e ilusionista num só ser. A experiência, o viver do citadino é cada vez menor no sentido de interpretar, narrar sua própria vida. Os meios de comunicação de massa, na sua tentativa de escamotear os acontecimentos de toda e qualquer relação com a experiência individual, impossibilitam o acumulo de experiências. A informação breve, nova, inteligível e o caráter desconexo das notícias entre si paralisam o coração e a mente das pessoas.
Em sua obra Situação das classes trabalhadoras da Inglaterra, Engels afirma:
(...) uma cidade como Londres, onde se pode caminhar horas a fio sem se chegar sequer ao início de um fim, tem qualquer coisa de desconcertante... A indiferença brutal, o fechamento sensível de cada um nos seus próprios interesses privados, manifesta-se tanto mais repugnante e ofensivo quanto mais alto é o número de indivíduos condensados em espaço apertado.7
Nesta citação percebemos uma reação de repulsa, angústia em relação à cidade e à multidão. Como contraposição usemos o olhar do poeta. Suspenso num barulho urbano, o poeta olha rostos anônimos na rua. Fixa momentaneamente o olhar numa perna feminina, perfeição de estátua. Olhares cruzados, momento de furacão e frenesi. Sedução efêmera, perdidos na multidão jamais se verão novamente. A reação de Baudelaire para com a multidão no seu mover passivo e constitutivo da cidade é de atração e fascínio8.
Em Alma encantadora das ruas, João do Rio também mostrará esse fascínio:
Para compreender a psicologia das ruas não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter o espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso (...) praticar o mais interessante dos esportes, a arte de flanar. (...) Flanar: Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua: (...) Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia e à noite, meter-se nas rodas da população, admirar o menino da gaitinha alí na esquina, seguir com os garotos o lutador do Casino vestido de turco (...) conversar com os cantadores de modinha (...) É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico."9
Percebemos o desejo de anulação do indivíduo que flutua por entre a multidão; em Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, Lima Barreto falará sobre a multidão anônima das ruas, sobre a embriaguez no espetáculo dos símbolos e nos afirmará que "descendo as ruas ao sabor da multidão; nela flutuei com prazer, gozando a volúpia de minha anulação..."10
A presença da cena urbana de multidões, imigrantes, que não reconheciam como seus os cenários mutantes, vai não só causar uma profunda sensação de estranhamento, como também ameaçar a permanência do arcaico. As sucessivas construções/ demolições, o fluir permanente de uma massa anônima, a efemeridade das relações, costumes, modas ("fashion is something so ugly that we've to alter it every six months" - O. Wilde) fazem com que o passado deixe de existir enquanto referencial e seja substituído pela idéia de um futuro utópico. Este construir da cidade ideal como resposta ao desmonte contínuo do presente é também um futurismo nostálgico, pois tenta recuperar laços de solidariedade, humanismo, ajuda mútua, já definitivamente rotos pela modernização.
O século XX surge entre nós junto com Zapata e os irmãos Flores-Magón, juntamente com as exibições de modernidade que acompanham o centenário da independência (1910-1922). Assistimos também nesse período a uma progressiva nacionalização das doutrinas sociais vindas do além-mar (anarquismo, socialismo, comunismo), que, de uma atitude mimética do final do século XIX, passa a refletir sobre as peculiaridades nacionais talvez até como ato de defesa frente à acusação de planta exógena ao território latino.
Álvaro de Campos em sua Ode percebe os sinais da tempestade "Eh-lá-hó revolução aqui, ali, acolá/ alterações de constituições, guerras, tratados, invasões, ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim..."11.
A cultura popular no marco da cidade-fábrica é cada vez mais massificada e presente no seu tempo urbano. Molda-se à modernização e aos novos protagonistas urbanos; com uma nova temática, vemos o surgir do samba, tango, revistas populares. Desconhecidos em sua maioria, aparecem novos intelectuais ligados à boemia e à militância política. Neste período nenhum movimento foi tão fértil quanto o anarquismo que, coincidindo com os anseios da nova cidade, propunha a necessidade de uma educação popular, uma nova abordagem das relações pessoais, trabalhistas, direitos femininos, anti-militarismo. Os inúmeros centros de cultura social e universidades populares atestam a tentativa de construir essa utopia12.
A velocidade urbana faz com que a universidade deixe de ser a única via do intelectual. O autodidatismo proporciona um tipo de intelectual diferente, formado em mesas de bar, comércio de livros e revistas, conferências, o que o dotará de uma visão mais livre e também indisciplinada e caótica. A cidade impõe seu ritmo e padrões às composições literárias, que vão servir do didatismo moral, ao imediatismo histórico, ao esquematismo e pouca pro-fundidade. A comunicação com o leitor precisa ser imediata.
Nada melhor que o olhar do outro para perceber-se mudanças ditadas na urbe. Se a cidade moderna fundava-se na indústria, ferrovia e cortiços, na virada do século, São Paulo já havia conseguido o patamar mínimo para decolar enquanto metrópole. Os jornais paulistanos de então falavam do "canto ruidoso do trabalho", do "barulho das forjas", da "oficina de trabalho vivo, fábrica gigantesca de futuros paulistas"13.
Faltava a personagem multifacetada da metrópole que, em 1909, seria percebido por um viajante francês: "São Paulo é junto com o Rio o único lugar do Brasil onde pude ver uma multidão".
O novo que despontava, a imigração, o processo de urbanização, a classe operária, a decadência econômica em zonas de economia tradicional serão temas de reflexão na criação literária. Nas obras de Graça Aranha, Lima Barreto, teremos a reflexão do novo que surgia nas relações sociais da primeira República: o nascimento do proletariado e do sub-proletariado nos centros urbanos, as primeiras crises no Imperialismo, a Guerra de 1914 e a inquietação social que era crescente.
EXPERIÊNCIA URBANA E MODERNISMO
Todos já sentimos, ao perambular pela cidade, a pressão da multidão anônima, a monotonia de ruas e casas aparentemente iguais, a tensão junto ao caos dos transportes e também o estranhamento de estar no meio de tantas pessoas, cada qual com um caminho diferente. A cidade é o local de ilimitadas possibilidades, de encontros e movimentos.
Novas classes sociais e decadência das tradicionais elites fazem da cidade um mercado de casamentos por conveniência. Relações pessoais baseadas numa transação de propriedades, onde homens e mulheres são reduzidos a portadores físicos de bens e rendas, mercadorias expostas num mercado. Antônio de Alcântara Machado, num dos episódios de Brás, Bexiga e Barra Funda14, intitulado "A sociedade", nos faz um relato bastante irônico e ambíguo de uma transação comercial entre um quatrocentão decadente e um imigrante endinheirado que ostentava o título de cavaglieri ufficiale. A transação comercial é apenas um pretexto para um casamento de conveniência entre as duas famílias, o que proporciona ao imigrante, ex-aventureiro, agora próspero industrial, acesso à sociedade e à respeitabilidade social.
A cidade moderna é o local por excelência da expropriação do trabalho, do saber, da individualidade, mas é também o espaço de novos direitos, da possibilidade de construir uma democracia plebéia que, por idas e vindas, tenta resgatar o espírito comunitário.
Higienópolis, Campos Elíseos, Avenida Paulista: cogumelar de mansões, fazendeiros do café, imigrantes recriam e marcam a geometria urbana com suas construções. Oswald de Andrade, no poema "ideal bandeirante", nos dá um flagrante dessa mutabilidade do cenário urbano e da especulação imobiliária: "compre seu lote/ registre a escritura/ boa firme e valiosa/ e more nesse bairro romântico/(...) prestações mensais/ sem juros". Essa ocupação urbana proporciona o deleite para os proprietários, mas também é símbolo de um novo poder. Dentro do bonde, ou andando, o Zé-Ninguém sente-se intimidado, atemorizado pelas proporções não-humanas da demonstração urbana de riqueza e poder.
Gerações e gerações humildes caminham frente às mansões, jardins, parques e prédios; uma vista urbana mutável que faz continuar os símbolos de uma sociedade de classes sempre viva. Podemos perguntar onde estão a Primeira Guerra Mundial, os tenentes, as greves, a industrialização nas crônicas e poesias urbanas. A história, porém, tem muitas veredas e podemos perceber a tecitura de uma história social, da família, das classes e o constituir urbano através de uma sensibilidade veloz na percepção do moderno contida na ficção urbana.
A racionalização do processo produtivo (cafeicultura, mão-de-obra assalariada, investimentos na indústria e no transporte) deveria fazer-se acompanhar de um melhoramento social - boas maneiras, uma sensibilidade artística - e quando isso não ocorria, os capitalistas responsáveis por esse melhoramento social eram vistos sem lentes embelezadoras: avaros, calculistas, grossos, exploradores. O personagem Abelardo I é uma perfeita caracterização de um burguês não-envernizado15. Os processos que procuram o entendimento do urbano pela razão, pela ciência ou por qualquer método lógico são questionados pela valorização do inconsciente, do acaso, do desvario, da emergência do mito moderno que constrói incessantemente novas imagens: velocidade urbana que não permite o permanente e questiona o olhar que se fixa num só ponto.
No poema "paisagem", encontramos a imagem de um cafezal enquanto mar alinhavado, onde temos a construção da paisagem produtiva em contraposição ao paisagismo urbano retratado no poema "jardim da luz", no qual passarinhos que ninguém vê juntam-se a almofadinhas, soldados, lagos que compõem a fruição prazerosa do paisagismo dirigido, da natureza ordenada que normatiza e direciona o pouco tempo livre dos habitantes urbanos16. O próprio conceito de paisagem implica em separação e observação, na intervenção sobre o cenário natural que reflete a divisão entre produção e consumo. Essa ruptura do produtor frente ao consumidor é a base de um olhar que administra a natureza, quer como produção, quer como fruição estética. Trata-se de uma adequação da natureza a um novo ponto de vista, ao olhar de uma nova classe.
O caos, a diversidade e os ruídos da cidade-carvão, da cidade-máquina, provocam uma reação literária de atração e repúdio onde o fazer poético busca e necessita de uma nova linguagem, novas normas, enfim, olhos abertos. O olhar do poeta passa dos sentimentos - "há poesia na dor" - do observar a natureza - "há poesia na flor, no beija-flor" - ao prosaico, ao detalhe urbano - "há poesia no elevador"17. A fábrica, um dos pilares da cidade moderna, sua rotina maquinal e alienante torna-se motivo poético e personagem principal (na poesia "metalúrgica") de Oswald de Andrade18 onde o humano é conduzido "lá em baixo" em posição subalterna ao maquinário industrial. Este poema, um pequeno hino ao industrialismo, demonstra através de números ("1.300 graus à sombra, 12.000 cavalos invisíveis, 40.000 toneladas de níquel") a força, potência sobrenatural do novo processo produtivo. A estrada de ferro que introduz a modernidade nasce do solo, abstraindo, escamoteando o trabalho humano. Ao focalizar a potência da indústria, está implícito o elogio da produção, da cidade civilizada e aparentemente ordenada.
Ruas largas, estações ferroviárias, escritórios e órgãos governamentais, papel, carimbo, vacinas e rebeliões. À ordem aparente da cidade moderna o poeta contrapõe o imprevisto na "boca de mil dentes", do desfilar urbano de homens iguais e desiguais que formam um "povo desordeiro" que não pode "alargar as ruas" nem as instituições, e mesmo assim persiste em cantar no chão.
(...) Horríveis as cidades! Vaidades e mais vaidades! Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria! (...) Estes homens de São Paulo. todos iguais e desiguais, quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos, parecem-se uns macacos, uns macacos (Paulicéia Desvairada - Mário de Andrade - 1921)
(...) E o povo Ansioso Airoso Sacode no ar A palheta Da esperança Vendo o dia Tropical Que vai passar Na carruagem Dos destinos Do Brasil À saída da Câmara Pela boca ardente De um estudante Jorra a esperança Do grandioso E desordeiro Povo Brasileiro (....) (Primeiro Caderno do Alumno de Poesia - Oswald de Andrade - 1927)
A paisagem urbana produz a ordem legal, financeira, comercial, industrial, que, por sua vez, produz o cenário citadino povoado por rostos indistintos de trabalhadores que potencialmente trazem a sedição e também a submissão. O perfil do funcionário público imerso na grande cidade nos mostra uma psiquê normatizada e construída em consonância com a ordem citadina:
"O Revoltado Robespierre" (Senhor Natanael Ropespierre dos Anjos) (...) Dá uma tabefe no queixo mas cadê mosca? Tira um palito do bolso, raspa o primeiro molar superior direito (se duvidares muito é fibra de manga), olha a ponta do palito, chupa o dente com a ponta da língua (tó! tó!), um a um percorre os anúncios do bonde. Raio de italiano para falar alto. Falta de educação é cousa que a gente percebe logo. (...) - Este viaduto é uma fábrica de constipações. De constipações só? De pneumonias mesmo. Duplas! (...) Outro cigarro. Apalpa todos os bolsos. Acende-o no do vizinho. E dá de limpar as unhas com o canivete de madrepérola. Na esquina da rua Anchieta por pouco não arrebenta o cordão da campainha. Estende a destra espalmada para o companheiro de viagem: - Natanael Robespierre dos Anjos, um seu criado. (...) E todos os dias úteis ás onze horas menos cinco minutos entra com o pé direito na Secretaria dos Negócios de Agricultura e Comércio onde há vinte e dois anos ajuda a administrar o Estado (essa nação dentro da nação) com as suas luzes de terceiro escriturário por concurso não falando na carta de um republicano histórico." (Laranja da China - A. Alcântara Machado - 1928)
Para além do barulho, do caos e fuligem, o cronista também percebe a organização, a sistematização de um estado mental provocado pela cidade.
A perda da identidade na multidão é também a perda do eu e da própria sociedade numa sucessão de imagens que torna a percepção difusa e confusa. Essa experiência é fundamental para toda literatura urbana. Os movimentos aleatórios, a heterogeneidade, o acaso e fragmentos são os aspectos mais visíveis ao olhar urbano; peças que vão constituir a cidade enquanto materialização da consciência moderna. O poeta olha a cidade de sua janela, quieto, observa os pedestres, bondes e automóveis. Com ternura, pressente os dramas da grande cidade, as misérias ocultas nas fábricas do Brás19. Põe-se a escrever febrilmente e percebe que "(...) o amor existe. Mas anda de automóvel"20. Não há mais temas poéticos, todos os assuntos são cruciais; a inspiração pode surgir de um crepúsculo ou de uma chaminé, de um divino corpo feminino ou de um corpo divino de automóvel21. O belo artístico é uma construção humana e não um dado do real como o belo natural. O crítico Fernando Góes22 nos lembra que Paulicéia "é um livro rico, imensamente rico, direi mesmo que milionário de intenções e sutilezas, há verrinas contra os vícios, a vaidade de S. Paulo e seu cosmopolitismo".
Em 1922, o jovem poeta Luiz Aranha escreve o "Poema Giratório"23, onde a sensação de simultaneidade moderna salta das palavras; os jornais, os novos meios de transporte fazem com que possamos estar em São Paulo, New York, Londres, ao mesmo tempo. O homem moderno é um ser multiplicado e só.
Eu estava no colégio No bairro turco de S. Paulo... (...) Queria viajar por todo o mundo... (...) Só na enfermaria (...) A enfermeira vestida de luar andava na ponta dos pés e lia jornais falando sobre a guerra (...) O rumor Adivinho minha terra natal Prédios crescendo Andares sobre andares Catedrais Torres Chaminés O centro da cidade Prédios como couraçados Ancorados Cordoalhas Mastaréus Flâmulas tremulando Galhardetes dos traquetes E a multidão frenética Os bancos Os jornais As grandes casas comerciais Bondes Tintinabulação das campainhas Automóveis Buzinas Carros carroças fragorosamente Bairros industriais Catadupas de sons a rugir pelo espaço Ventres de fornos colossais Nas fábricas usinas e oficinas Turbilhonam turbinas Máquinas a mugir em movimentos loucos Vozes trepidações campanhias Baques gritos sereias alarido Rouquejos e troupel Relógios a compassar nessa luta insofrida O ritmo frenético da vida!... Americanamente (...) (Poema Giratório - Luiz Aranha, 1922)
A atualidade de Luiz Aranha é conseqüência direta do contemporâneo que o cerca. As informações e impressões que o poema nos fornece são colhidas de jornais, cinemas e do flanar na cidade. No dizer de Mário de Andrade24, o Poema Giratório "é um vasto voluptuário, e uma das mais notáveis criações dinâmicas que conheço" e também, "Luiz Aranha és já um filho da simultaneidade contemporânea"25.
A experiência da solidão na cidade é de maior importância na subjetividade urbana. Ela está presente nos movimentos da multidão que metaforicamente podem ser vistos como a dissolução da sensibilidade individual da experiência subjetiva única. A poesia andarilha urbana, o flanar poético estão repletos da sensação do eu multiplicado, multifacetado, o eu plural das ruas e contudo tão só. O paradoxo da solidão dentro da multidão desdobra-se em outras imagens urbanas: a rua e o arranha-céu ou a experiência sensorial do horizontal e do vertical nas cidades; o interior e o exterior ou a experiência vivida da casa, hotel, em contraposição ao espaço público, o grande mercado que é a cidade.
balada do esplanada Ontem à noite Eu procurei Ver se aprendia Como é que se fazia Uma balada Antes de d'ir Pro meu hotel É que este Coração Já se cansou De viver só E quer então Morar contigo No esplanada (Primeiro Caderno do Alumno de Poesia - Oswald de Andrade - 1927)
O poema nos mostra o jogo entre o hotel e o exterior, as ruas, enquanto ponte de afastamento e melhor observação solitária das cenas urbanas. A inspiração do fazer surge com o abrir da janela, como um jornal, onde fatos e cenas desconexas são contrapostas à lírica que não pode existir num hotel mas surge inesperadamente no elevador. No poema "soidão" percebemos a sensibilidade solitária na cidade, a chuva limpando as praças, jardins e afastando o sentimento de estar sozinho.
soidão ...Chove chuva chuverando Que a cidade de meu bem Está toda se lavando Senhor Que eu não fique nunca Como esse velho inglês Aí do lado Que dorme numa cadeira À espera de visitas que não vêm (...) Noite Noite de hotel Chove chuva chuverando
Arranha-céus, edifícios, órgãos governamentais, construções urbanas que são imagens do fervilhar febril das ruas, contraditoriamente podem provocar o lamento do poeta, "ninguém sabe da solitude que enche meu peito.."26.Os símbolos construídos alojam o poder, o tédio, e as ruas alojam a circulação, o batalhar pela vida, o sempre perigoso andar da plebe. A imersão na multidão torna a sensibilidade poética prenhe de ambigüidades inseridas de matéria não-poética: a cidade. O progresso industrial, o novo incessante, é acompanhado de um desespero existencial que desvenda o profundo vazio do industrialismo.
Alcântara Machado já nos alertava: "tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes encontrará amanhã o seu historiador"27.
SIGNOS DE UMA POESIA UTÓPICA
A definição de Afrânio Peixoto da literatura enquanto "sorriso da sociedade" tem por vista a literatura bem comportada, acomodada deste período, porém, com certeza, não se aplica àquilo que Lima Barreto chamaria de "literatura militante" e muito menos à produção marginal e marginalizada da ficção de lavra libertária, ficção esta propositadamente colocada em uma espécie de limbo, numa operação ideológica de esquecimento28.
Tanto os centros de cultura social como a imprensa libertária são ricos em exemplos de uma produção cultural autônoma e popular. Fixemo-nos em alguns exemplos da ficção libertária. As imagens chocam-se com a realidade da opressão e apostam no dia da libertação que metaforicamente sempre apresenta-se como fogueira, incêndio, lavas subterrâneas prontas para a erupção. No conto "Fogo!" de um trabalhador anônimo, publicado no jornal Na Barricada29 lemos:
Acabo de contemplar um pavoroso, um emocionante incêndio. A fábrica, antro horripilante de injustiças, ficou reduzida aos alicerces. As chamas, chamas reparadoras duma escravidão milenária, fizeram, em algumas horas, o que os homens, em anos de incessantes prédicas, não foram capazes de realizar. (...) A fábrica ardia crepitando monstruosamente, derruindo-se, arrastando consigo todos os artefatos que, junto com o suor dos operários, constituíam uma boa parte da riqueza do patrão (...) Por isso os comentários, em frente ao fogo, eram todos de pessoas interessadas. E através das chamas que rapidamente comiam a fábrica com fome feroz, com fome de demolidora justiça, os interessados, os que ficavam sem nada com a perda da fábrica, tinham a visão das negruras do porvir. (...) O fogo é artístico e estético. Duma beleza inimitável, parece essa música de Wagner que nos retrata nos tímpanos e no coração as convulsões espasmódicas dos elementos em eterno movimento.
O fogo, o incêndio, servem como metáforas da destruição de um mundo caduco, condenado, servem também como momento lúdico de criação da possibilidade de uma nova sociabilidade. A natureza elementar do fogo relaciona-se com a natureza elementar da justiça social; "a fruição da destruição é também um ato criativo"30. A fogueira libertária também estará presente nos versos do tipógrafo Constantino Pacheco e do libertário Neno Vasco:
LIBERDADE!... De tombo em tombo, a rastejar na lama, Manietada na idéia e de alma baça, A humanidade vive, geme e passa, Como se o mundo ardesse [em rubra chama!... (...) Como ele, aos ombros, com serenidade, Leva ao calvário a cruz, em nossos dias, Onde expira bradando: liberdade!... (Constantino Pacheco) A chama canta, salta e corre, O velho burgo tomba enfim... Oh! Quanto abutre cai e morre! Oh! Quanto abutre em seu festim! De face a arder, que a chama cresta! Ó parias nus, vindes dançar Dançar em roda, correr, cantar, Que esta fogueira é vossa festa! A chama a crepitar! Em círculo formai! Dançai! Dançai! De archote aceso, o mundo iluminai!31 (Neno Vasco)
Encontramos nestas poesias "signos do poema prometéico. Signos do poema utópico. Signos do poema político"32. Versos que trazem um discurso aberto para o futuro, para uma utopia comunitária, mostrando uma disposição ao canto. Em algumas, temos uma oralidade latente como se pudéssemos imaginá-los cantando em suas festas, protestos, comícios. Como num poema do sapateiro Pedro Catallo:
Não gosto da guerra, não! Não gosto da guerra, não! Não gosto dessas matanças Onde a fúria do canhão Não deixa nem as crianças. Gosto do sol e das flores Do cantar dos passarinhos; Das fontes, dos seus rumores, Que escuto pelos caminhos. Gosto bem da vovozinha, Dos brinquedos, da canção, Do papai, da mamãezinha. Não gosto da guerra, não!33 (Pedro Catallo)
Antes da intervenção modernista, encontramos na poesia libertária tentativas de uma" língua sem arcaísmos, sem erudição. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos" (Manifesto da poesia Pau-Brasil). Numa poesia coligida por Otávio Brandão de autoria de um tecelão alagoano e publicado no jornal A Plebe de 31/07/1920 e também no protesto anônimo e denunciador do poema publicado pela revista Careta em 21/02/1914; nestes poemas temos fragmentos do cantar quase que perdido do trabalhador anônimo:
Home pobre não pode juntá dinheiro Nem pode sê verdadeiro Cum trabaio de alugado. Vai na segunda, vai na terça, vai na quarta Vai na quinta, vai na sexta, No sabo tá infadado, (...) Chega em casa, a muié forma uma cara feia. - "Eu te puxo na oreia, Cala a boca condenado", - "Ora, muié, quando eu casei contigo, Se uma cobra me tivesse murdido Eu estava mais consolado." O menino que já está no chão caído, De fome tá invadido, (...)34 Foi lá na ía das Cobras Que se deu o sucedido: Pegaro uns prêso e meteram Num buraco cumprido E os sujeitos lá ficaram Sufocado e esprimido Se sarvaram quatro ou cinco Os de fôrgo mais cumprido. Mas prá êsses assim mesmo (Veja só que malvadez) Puseram cal no buraco Prá matá eles de vês. Mas os bichos resistiram A tortura do xadrez, Vieram contá cá prá fora O que o governo lhes fez.35
A imagem da super exploração do trabalho infantil é resgatada em muitos poemas da imprensa libertária, como no do trabalhador gráfico João Medeiros Coimbra:
Tenha pena de ti, pequeno proletário, Que, de manhã à noite, aí no ofício, Desperdiças, assim, por mísero salário. Os anos infantis, em troca de um ofício.36 (1920)
A sátira, ironia política também, se fazia presente neste poema de" João Vermelho" - pseudônimo usado por José Oiticica (histórica e ironicamente tão atual):
Pessoal, dê um viva ao chefe do trabalho! Collor merece manifestação: Deu-vos brida, selim, chincha e vergalho E uma alfafa legal à prestação. Viva "iô-iô" Lindolfo e seu esgalho: O Evaristo, o Agripino e o Pimentão! Ele vos levam, águias, para o talho, Bem amarrados a legislação. Gritai, ovacionai, enchei de vento A empáfia do Lindolfo safardana, Ex-bernardista que vos perseguiu! Gritai, com vosso grito uno e violento, Mandando a claque vil que vos engana À grandíssima pata que os pariu!37
Esta pequena amostra nos faz perguntar e procurar pelas pistas, sinais deixados por trabalhadores que, não tendo apenas a vocação produtivista, sonham, e, no fazer poético, fogem da produção. Instauram uma outra temporalidade, uma outra sensibilidade, a exigir seu reconhecimento como seres únicos e não, massa anônima. Resgatam a humanidade e fazem-se humanos em suas fugas e criações culturais.
A POESIA ESTÁ NAS RUAS
O criativo pluralismo anarquista está presente nas suas considerações estéticas. Individualista exalta a potência criadora, a originalidade do indivíduo. Coletivista ou comunista, celebra a capacidade criadora da comunidade popular. A permanência e pertinência de uma estética anarquista, como de todas as estéticas" políticas", depende estreitamente das vitórias e das derrotas da postura com a qual se alinha. Com as derrotas, no decorrer do século XX, o anarquismo enquanto crítica radical e irredutível é condenado ao esquecimento e guardado junto ao grande depósito das estéticas "políticas" jogadas no lixo da história: as primeiras estéticas socialistas de Saint-Simon, de Fourier, de Godwin e de todos seus discípulos.
O anarquismo certamente elabora uma estética social, porém quanto a uma estética" política," a questão é mais complexa. Os anarquistas refletem sobre as relações entre a arte e a revolta e entre a arte e o poder, na perspectiva de uma filosofia anti-ideológica e anti-política. Essa forma particular de estética se aproxima das estéticas "políticas" na medida em que estabelece as relações da arte com os movimentos sociais; a arte é vista como um "retorno da abstração à vida", é a guardiã da parte "imortal" do homem contra a sociedade alienante38.
Uma das mais fecundas reflexões sobre a arte e a anarquia é a de Gerard de Lacase-Duthiers, que elabora uma teoria da "artistocracia," que é "a anarquia realizada pela arte e a arte realizada pela anarquia." O" artistocrata" é ao mesmo tempo o homem do sonho e o da ação, o poeta e o guerreiro, o homem da torre de marfim e o militante. Ele realiza seu "ideal estético em toda a sua vida", faz da sua existência uma obra de arte, "uma obra de sinceridade, de equilíbrio e de harmonia", procurando unir sua conduta com suas idéias. Sua obra e sua vida são inseparáveis, ele é solitário e solidário.
Lacase-Duthiers nega ao mesmo tempo a arte pela arte e a arte engajada, o que procura e propõe são "obras sinceras onde os autores hajam rompidos com a moda, com o gosto do público, com as preocupações da literatura mercantil" e que exprimam a eterna revolta humana contra a autoridade.
A autoridade acaba onde a arte começa, ela acaba ao adentrar a estética que é o triunfo do pensamento e ação livres... A arte e a vida são uma mesma e única realidade. Quem as separa as mutila. Só resta então um rascunho grosseiro, testemunho de uma sociedade cuja decadência nada tem de grandiosa. Frente a esse rebanho de brutos, de inconscientes e semi-loucos, dos quais depende a sorte do planeta, a artistocracia levanta-se como um protesto vivo, elite de todos os homens livres de todos os países, que se negam a uivar com os lobos a balir com os cordeiros. Ela parece vencida, porém sua resistência à bestialidade não é por isso menos eficaz e constitui uma barreira contra a maré ascendente de lodo e de sangue que ameaça submergir a terra inteira, com o apoio da tecnologia que se encontra nas mãos da mediocracia, responsável por mortes e torturas.
A arte livre daria ao homem a capacidade de esculpir sua própria estátua, de auto-realização e de progredir pois "não existe mais progresso no mundo que esse progresso interior, todo outro progresso é um logro e uma ilusão"39.
As estéticas libertárias se opõem às sociedades materialistas e seus valores, à padronização da vida contemporânea, à comercialização da cultura. Elas exprimem uma revolta contra a uniformização crescente dos modos de viver e pensar, são contra uma arte que se submeta à outra autoridade que não a sua.
Recusam-se a se conformar, a se submeter. Recusa que não é cristalizada numa memória anarquista, mas que ressurge quando a própria reprodução de nossa organização social começa a ruir, quando as instituições - escolas, hospitais, tribunais, prisões - não apenas não fazem o que deveriam, mas sim o oposto. Vivemos uma extraordinária situação onde escolas e universidades criam a ignorância40; hospitais e hospícios perpetuam o sofrimento que deveriam aliviar; rádios, tevês, jornais e revistas impedem a comunicação que deveriam facilitar; e fábricas produzem mercadorias que se auto destróem, ou destróem as pessoas que as usam. Temos tribunais e prisões que produzem criminosos e um sistema político no qual os detentores do poder não possuem a mais vaga idéia daquilo que realmente ocorre e basicamente usam do poder para projetar suas fantasias de ódio em relação a si próprios, a nós e aos outros.
Esta recusa ressurge com a contestação generalizada dos anos 60, onde o artista e o ativista voltam a se encontrar numa só pessoa. Espaço de contestação, as ruas são palcos de atos estético-políticos, onde a
estetização progressiva do fenômeno contestatório abre uma nova fase; a ação e a manifestação se convertem em espetáculo, a poesia em ação. Assistimos a convergência das estéticas políticas e das políticas estéticas... que não é explicada apenas pela estetização do movimento estudantil. Esse fenômeno tem suas origens bem mais no despertar do movimento estudantil para uma sensibilidade anti-autoritária que, desde o simbolismo até as tendências mais recentes das vanguardas artísticas, marca a evolução da arte em nosso tempo. Na estética da violência nós encontramos os sinais familiares da `obra aberta' ou da `obra em movimento'. As profecias das estéticas anarquistas, originárias no século passado, encarnaram-se tanto na arte enquanto espetáculo total como nas manifestações conhecidas como `happenings'41. O artista e o ativista voltam a falar a mesma língua42.
Lembremos ainda, que em 1965 o professor Pietro Ferrua ministrou no Centro de Estudos Sociais `José Oiticica', no Rio de Janeiro, um curso sobre "Surrealismo e Anarquismo", onde esclarecia a relação estabelecida entre surrealistas e anarquistas na França durante os anos 50. Encontro conflituoso, áspero, que reativou o casamento entre o sonho e a revolução, ou, como queria Breton, "o negro espelho do anarquismo onde o surrealismo se reconheceu pela primeira vez"43. Não apenas o acaso fez ressurgir nas paredes do mundo, nos anos 60, palavras de clara inspiração anarquista e surrealista.
O reencontro entre o ativista e o artista não aconteceu apenas em San Francisco, Chicago, New York ou Paris, mas também no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, locais onde, dentro do espírito da época teremos essa fusão arte-rebeldia-vida, obviamente, com os devidos temperos tropicais. Heloísa Buarque em suas `impressões de viagem' dirá que "a contestação é assumida conscientemente. O uso do tóxico, a bissexualidade, o comportamento descolonizado são vividos e sentidos como gestos perigosos, ilegais e, portanto, assumidos como contestação de caráter político"44.
Duas auto-definições explicitam esse clima de época. Uma, de 1967, quando Caetano Veloso dizia:
quem sou eu? Sou o Rei da Vela de Oswald de Andrade, montado pelo Grupo Oficina. Sou brasileiro, sou casado e sou solteiro, sou baiano e estrangeiro... meu coração é do tamanho de um trem... e o nosso machonalismo é merdavarelo e puti.
Outra de um ano depois quando na contra-capa de um LP tropicalista de Gil, lemos:
eu sempre estive nu. Na academia de acordeão Regina tocando La Cumparsita, eu estava nu. Eu só sabia que estava nu, e ao lado ficava o camarim cheio de roupas coloridas, roupas de astronauta, pirata, guerrilheiro... Qual a fantasia que eles vão me pedir que eu vista para tolerar meu corpo nu? Vou andar até explodir colorido. O negro é a soma de todas as cores. A nudez é soma de todas as roupas.45
Nesse redemoinho de constestações individuais e sociais onde mudar a vida era mudar a sociedade, nessa experiência onde o impossível era o alvo, encontramos no Centro de Cultura Social (C.C.S.) de São Paulo (antigo ateneu libertário ainda em funcionamento) um motorista de táxi, Germinal de Amor, escrevendo coisas sem nomes e nomes sem coisas, isto é, poesia.46 Ele mantém a velha tradição ácrata do combate poético, como mostram os versos abaixo:
(sem título) O passado conta O presente conta No futuro, as contas (sem título) Em oblíqua lua bandeira rubra Em redonda terra bandeira nenhuma (sem título) A torre estática A história intacta Ao alto, luas opacas Ao longe, o pranto eterno das guitarras E no rio das águas, ao fundo, o coração do mundo (sem título) A guerra aterra - Um menino sem cabeça A guerra aterra - Procura-se uma mão A guerra aterra - E uma perna A guerra aterra - E um coração A guerra aterra - Lágrima de mãe, oceano maior A guerra aterra - Oh, homem homem! A guerra aterra
Versos de um poeta trabalhador escritos em 1968. No mesmo ano o Centro de Cultura Social (São Paulo) seria fechado pela ditadura militar e Germinal voltaria ao anonimato das multidões
UMA ESTÉTICA ANARQUISTA
A estética sempre foi uma preocupação dos pensadores libertários, dos dinossauros da anarquia (Godwin, Proudhon, Bakunin) à Fernando Savater47 e aos anarco-punks; fazer confluir arte e vida foi uma das apostas dessa estética anti-autoritária. Condenando a noção do "grande artista," do "artista único," do "criador genial" ela proclama a morte dos museus, da obra-prima, (e da prima dona!), da sala de concertos.
Milita por uma arte de resistência, espontânea, resultado do local e do momento. Importa mais o ato criador que a própria obra. Trata-se de destruir tudo o que separa a vida da arte. André Reszler já traçou o itinerário da estética anarquista de Proudhon e Bakunin à John Cage e Julian Beck, de Richard Wagner a música pop.
Já no coração da pós-modernidade, Jean François Lyotard ensina às crianças e a nós que é na pequena ação - e não mais na meta-história, nos grands recits - que encontramos a criação, a invenção, a imaginação, e que a condição pós-moderna se sustenta não contra o moderno e nem após o moderno mas apresenta uma forte compulsão para a desordem (para um anarquismo epistemológico à la Feyerabend) e estimula um enorme movimento de experiências descomprometidas, auto-geridas, voltadas para a vida48.
Ao responder sobre a falência de todo o sistema de poder, William Burroughs propõe em sua arte/ vida a destruição dos Estados-nações pelo agrupamento de indivíduos mentalmente unidos em comunidades separadas, autônomas. Poderiam ser organizadas comunidades só de varões, comunidades de percepção extra-sensorial, comunidades sanitárias, comunidades de judô e karatê, comunidades de capoeira, comunidades de onanistas, comunidades de ioga, comunidades reichianas-somáticas, comunidades de silêncio e restrição sensorial. Tais comunidades logo se transformariam em federações internacionais que poderiam e podem derrubar os limites das nações. No Almoço Nu ele vai nos lembrar que o controle nunca pode ser o meio para qualquer finalidade prática, nunca levando a nada, exceto a mais controle e a mais poder49.
As posturas estético-libertárias sempre estiveram no combate do "make it new," recusando a arregimentação fascista ou comunista da arte, sempre denunciando visceralmente qualquer engajamento autoritário. Rimbaud na sua exortação para "mudar a vida" anuncia o espírito de criação e libertação da arte. Criação que persegue algo que ainda não existe, que constrói novos espaços de imaginação, de libertação do indivíduo. Mais tarde os surrealistas, que, segundo Benjamin, recriavam um conceito radical de liberdade que não existia na Europa desde Bakunin e fundiam arte, revolta e revolução vão nos recordar pelas palavras de Breton, que "a luta pela substituição das estruturas sociais e a atividade desenvolvida pelo surrealismo para transformar as estruturas mentais, longe de se excluírem, são complementares. Sua junção deve apressar a vinda de uma época liberada de toda hierarquia e opressão"50. E Breton sabia que pairando sobre a arte, a poesia, quer queira-se ou não, tremula uma bandeira rubro-negra, posto que arte e anarquia se confundem pelo fato da criação emergir do não-pensado, do não instituído ou hierarquizado. Todo anarquista é um criador e qualquer ação artística é anarquista, consciente ou não, pois a criação só se realiza rompendo com o princípio de autoridade. Essa relação fecunda entre anarquistas e surrealistas se mantém viva ainda nos velhos e sempre novos anos 60, onde, no moinho de uma nova sensibilidade (não apenas livresca, linear, mas descontínua, dionísica, contracultural, sem hierarquias) estabeleceram-se novas afinidades, aproximações entre arte e anarquia.
Uma arte-postura que foi designada de arte marginal, experimental, independente, underground, curtição, subterrânea ou desbunde, aparece nas ruas de Amsterdã com os" provos", nas paredes de Sorbonne e de Nanterre, onde se lia "se queres o mundo que poderias ter graças aos descobrimentos/ invenções e riquezas atualmente existentes, esteja preparado para lutar por esse mundo. Para lutar por esse mundo na rua". Abbie Hoffman e hippies nos E.U.A., e também no `udigrudi' brasileiro com Flor do Mal, Presença, Verbo Encantado, e com o Tropicalismo e os Parangolés (criação de Hélio Oiticica).
Valorizando as experiências comunitárias, as sensações, a apropriação de rituais profanos, os acontecimentos fugazes e plurais, essa arte favorecia o momento, a afirmação insolente e cândida do ácrata frente a realidade social. Essa marginalidade é vivida pelos artistas como a necessidade de viver até o limite novas formas de comportamentos e linguagens. Realiza a possibilidade dos artistas representarem para si mesmos a utopia que organizam.
Em 1980/81, José Celso Martinez Correia e o Teatro Oficina recebiam, pela segunda vez, o grupo Living Theater51(na primeira vinda do grupo, em 1971, seus membros, haviam sido presos em Ouro Preto) e as comunidades artístico-teatrais de Zé Celso e Julian Beck partilharam experiências de transformações radicais de indivíduos-atores. Transformações mentais, culturais mas sobretudo, do corpo, onde essas comunidades de vida e arte livre possam exercer a fusão completa entre arte e vida.
Ora, mas tudo isso, Living Theater, Oficina, Zé Celso, Judith Malina, foi há vinte anos época do Rei da Vela e Paradise Now" - poderia bocejar um leitor mais sedento de montagens, textos e artes mais pós-modernas. Ainda bem que não. Há poucos anos a comunidade do Living encenou Anarchy in N.Y. e o Oficina - Cia de Teatro Comum Uzyna Uzona encenou In-Xorcismo e Comunhão de Cacilda!, trilogia escrita por Zé Celso.
Anarchy e In-Xorcismo de Cacilda são os gritos vivos de denúncia e exorcismo da sociedade administrativa, hierárquica e massificada que a experiência comunitária e artística do Living, do Uzyna Uzona e de centenas, milhares de outros coletivos, onde vida e arte se encontram. Ainda ecoam as palavras de Hélio Oiticica:" Uma posição crítica universal permanente e o experimental são elementos construtivos. Tudo o mais é diluição na diarréia"52.
NOTAS
1 Para uma análise da relação entre utopia e movimento operário vide Ranciére, J. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário. São Paulo, Cia. Das Letras, 1988.
2 AUERBACH, E. Introdução aos Estudos Literários. São Paulo, Cultrix, 1970, pp. 229-230.
3 Na Barricada. Rio de Janeiro, ano II, nº 2, 16/01/1916.
4 Quanto à percepção do urbano na obra de Poe, vide o artigo de SEVCENKO, Nicolau. "Perfis urbanos terríveis em Edgar Allan Poe". In Revista Brasileira de História, vol. 5, nº 8/9, abril/85.
Em relação à gang juvenil Apaches vide artigo de PERROT, Michelle. "Na França da Belle Époque, os `Apaches', primeiros bandos de jovens". In Os excluídos da história. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
5 MUNFORD, L. A cidade na história. Belo Horizonte, Itatiaia, 1965, vol. 2, p. 685.
6 Cf. "Cyberpunks." In La Letra A. Buenos Aires, ano 2, nº 3, 1991, pp. 16-31
e GIBSON, W. NEUROMANCER, São Paulo, Aleph, 1991.
7 ENGELS, F. "The condition of the work-class in England." In Marx-Engels, On Britain, Moscow, Progress, 1962, p. 56.
8 BENJAMIN, W. "Sobre alguns temas em Baudelaire". In Os pensadores, vol. XLVIII, São Paulo, Abril, 1975, pp. 42-44.
9 RIO, J. do. Histórias da gente alegre. Rio de Janeiro, José Olympio, 1981, p. IX.
10 BARRETO, L. Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. São Paulo, Ediouro, s/d, p.71.
11 PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1986, pp. 306-311.
12 Vide a extensa enumeração realizada na pesquisa do historiador e memorialista Edgard Rodrigues.
13 Diário Popular, março de 1892.
14 MACHADO, Antonio de Alcantara. Novelas Paulistanas. Belo Horizonte/ São Paulo, Itatiaia/ Edusp, 1988, pp. 96-100.
15 ANDRADE, O. Teatro: A Morta, O Rei da Vela, O Homem e o cavalo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
16 ANDRADE, O. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, pp. 98-120.
17 Idem, pp. 165-166.
18 Idem, p. 102.
19 GÓES, F. O Espelho Infiel: Estudos e Notas de Literatura. São Paulo, Conselho Estadual de Cultura, Comissão de Literatura, 1966, pp. 121-122.
20 ANDRADE, M. Obra Imatura. São Paulo, Ed. Martins, 1972, p. 211.
21 Idem, p. 208.
22 GÓES, F. Op. cit. 1966, p. 135.
23 ARANHA, Luiz. "Poema Giratório". In Revista Nova, ano 2, nº 7, 15/03/1932, p. 253.
24 Idem, p. 216.
25 Idem, pp. 272-273
26 ANDRADE, Mário de. Poesias completas. São Paulo, Martano, 1966, p. 102.
27 MACHADO, Alcântara. op. cit., 1988, p. 79.
28 BOSI, A. "As letras na Primeira República" In História geral da civilização brasileira. São Paulo, Difel, 1977, vol. 9, p. 297.
29 Jornal Na Barricada. Rio de Janeiro, nº 2, 16/01/1916.
30 NORTE, S.A.Q. Bakunin: Sangue, Suor e Barricadas. Campinas, Papirus, 1988.
Termina seu esboço de dialética da negação escrito em 1842 com a frase citada.
31 KHOURY, Y.A. "A poesia anarquista". In Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 8, nº 15, fevereiro/1988, pp.215-247.
32 BOSI, A. "Poesia resistência". In O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Cultrix, 1983, p.177.
33 KHOURY, Y.A. Op. cit., p.220.
34 Idem, pp.232-233.
35 RODRIGUES, E. Nacionalismo & Cultura social. Rio de Janeiro, Laemmert, 1972, p. 86.
36 KHOURY, Y.A. Op. cit., p.224.
37 OITICICA, J. Ação direta. Rio de Janeiro, Germinal, 1970, p.27.
38 Os anarquistas sempre desconfiaram de uma arte militante, porém sempre disseram sim a uma arte que fosse parte integrante, inalienável do homem e de seu direito à paixão e à ação.
39 Todas as citações extraídas de Lacaze-Duthiers, "El Arte y la Vida". In Cenit, nº 49, enero, 1955, pp. 1457-1459.
40 Cf. TRAGTENBERG, M. A delinquência acadêmica. São Paulo, Rumo, 1979.
41 O termo `happening' engloba várias formas de protesto entre os quais o `teach-in' onde estudantes, professores e convidados expõem opiniões diversas num debate cultural-político, o `sit-in' onde grupos sentam-se em algum lugar público e recusam-se a sair, o teatro de rua onde encenam-se pequenos atos de protestos. Vide NEWFIELD, J. Una minoria profetica: la nueva izquierda norteamericana. Barcelona, Martinez Roca, 1969
e GINSBERG, A. Uivo: Kaddish e outros poemas (1953-1960). Porto Alegre, LPM, 1984.
42 RESZLER, A. L'esthetique anarchiste. Paris, Presses Universitaires de France, 1973, pp. 101-103.
43 "A Clara Torre" In Le Libertaire, 11 de janeiro de 1952. Para um balanço dessa convergência anarco-surrealista ver COELHO, P. A. (org.). Surrealismo e anarquismo, São Paulo, Imaginário, 1990.
44 HOLLANDA, H-B- de. Impressões de viagem. São Paulo, Brasiliense, 1980.
45 As citações foram extraídas de Veloso:1976 e Gil, 1982. ver também TORQUATO NETO. Os últimos dias de pauperia. São Paulo, Brasiliense, 1982
e GIL, G. e RISERIO, A. O poético e o político e outros escritos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
46 As poesias de Germinal de Amor encontram-se tanto na imprensa libertária dos anos 60 (O Libertário, Dealbar) como em Algunas Canciones y otras Poesias, São Paulo, Ed. Folha do Cambuci, 1967 e numa edição artesanal sem título de 1968. Ambas edições constam do acervo doado pelo C.C.S.(Centro de Cultura Social) ao Centro de Documentação e Recursos Audio-Visuais (CEDRAU), Arquivo Canto Libertário, UNESP-Campus de Assis.
47 Fernado Savater é uma das mentes mais lúcidas do atual pensamento libertário, não apenas no desconstruir da razão autoritária mas também nas suas iluminações éticas e estéticas. Vide entre outros A decir verdad, Sobras Completas, Las Razones del Antimilitarismo y otras Rozones.
48 OLIVEIRA, R. C. "A categoria de (des)ordem e a pós modernidade da Antropologia". In Pós-Modernidade. Campinas, Ed. UNICAMP, 1990.
49 BURROUGHS, W. El trabajo. Barcelona, Mateu, 1971.
É essencialmente um escritor político fascinado pelos meios com os quais os indivíduos controlam outros, não apenas em termos políticos mas também psicológicos, mentais.
50 Cf. Le Libertaire, 12/10/1951.
Lembremos que, este periódico, quando da morte de André Breton publicou em sua primeira página "André Breton morreu. Aragon está vivo... É uma dupla infelicidade para o pensamento honesto".
51 ROSENFELD, A." Living Theatre e o Grupo Lobos". In Arte em Revista, nº 5, 1981, Kairós, pp. 105-107.
52 Cf. OITICICA, H." Brasil Diarréia". In Arte em Revista, nº 5, 1981, Kairós, pp. 43-45.
Sergio Augusto Queiroz Norte
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01881998000100006
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