A combinação da mudança tecnológica com a globalização está a provocar alterações fundamentais no que se refere a quem faz que tipo de trabalho, onde, quando e como. Isto tem implicações profundamente contraditórias para a natureza das funções, para as pessoas que as desempenham e, portanto, para a natureza das cidades.Por um lado, o trabalho que anteriormente estava ligado geograficamente a um determinado local tornou-se volátil numa dimensão sem precedentes históricos; por outro lado, tem havido grandes migrações de pessoas que percorrem o planeta à procura de trabalho e de segurança pessoal. Tem havido pois um duplo desenraizamento – uma deslocação do trabalho em direcção às pessoas e uma deslocação das pessoas em direcção ao trabalho. Em conjunto, estas reviravoltas estão a transformar o carácter das cidades tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento.Da mesma forma, estão também a transformar as identidades e as estruturas sociais. A maior parte das descrições clássicas da estratificação social atribuem uma importância central à identidade ocupacional. O bloco básico de construção da identidade de classe tem sido tradicionalmente a ocupação, normalmente uma identidade estável adquirida lentamente quer por herança quer através dum processo de formação destinado a dotar o estudante ou o aprendiz com habilitações para a vida. Depois de entrar nessa ocupação e de praticar essas habilitações, o seu detentor tem uma posição reconhecida na divisão social do trabalho que lhe dá um 'lugar' nessa sociedade por toda a vida, salvo qualquer calamidade como a doença, o desemprego ou a falência – riscos contra os quais os estados previdência da maior parte dos países europeus proporcionam uma forma qualquer de seguro social.Estas identidades contribuíram para dar à maior parte das cidades uma forma conhecida que é familiar aos seus habitantes: bairros que abrigam determinadas indústrias; instituições reconhecidas de mercado de trabalho; estruturas familiares características; e infra-estruturas físicas e sociais que reflectem e reforçam esses padrões. As estruturas e relações sociais completam-se na geografia física da cidade – espaços 'masculinos' e espaços 'femininos'; áreas de 'gueto' onde se concentram os imigrantes recém-chegados e áreas onde são preponderantes os habitantes indígenas; áreas barulhentas onde se juntam os jovens e outras sossegadas onde vivem os mais velhos. Estes padrões são modelados por padrões sexistas e raciais e estruturados pelas relações de poder entre os diferentes grupos sociais. Isto não afecta apenas os que vivem num determinado local, os que trabalham num determinado local, ou os que preferem viajar para determinados locais, mas também a forma como cada área é encarada subjectivamente – por exemplo, quais as áreas que são consideradas e por quem como limpas, seguras ou amistosas.Os movimentos sem precedentes de pessoas e de empregos por todo o mundo coincidiram com uma rotura de muitas das identidades ocupacionais tradicionais. Habilitações específicas ligadas à utilização de determinadas ferramentas ou maquinaria têm vindo cada vez mais a dar lugar a habilitações mais genéricas e em mutação rápida, relacionadas com o uso das tecnologias de informação e de comunicações (no que se refere ao trabalho envolvendo o processamento da informação) ou a novas tecnologias de trabalho com economia de mão-de-obra, por exemplo, na construção, na produção, na embalagem, ou na limpeza. Em muitos países, esta desintegração das identidades ocupacionais coincidiu também com o colapso das formas institucionais da representação dos trabalhadores, tais como os sindicatos, que no passado serviram para dar uma certa forma coerente e visibilidade social a essas identidades. Estamos a ficar com uma paisagem em rápida mutação e em grande parte desconhecida na qual se criam (e desaparecem) profissões com grande rapidez, frequentemente sem sequer terem uma designação concreta – apenas uma combinação atabalhoada de 'habilitações, 'capacidades' e 'competências'.Sem identidades ocupacionais coerentes e estáveis como blocos de construção básica de análise social, como é que podemos começar a cartografar as mudanças que estão a ocorrer actualmente nas nossas cidades? Uma hipótese é começar pelo seu desenraizamento espacial. Aqui, uma tipologia possível é atribuir-lhes a categoria de 'fixo' ou 'volátil', com uma categoria intermédia para as profissões que aliam as características estáveis e voláteis e que poderemos designar por 'divididas'.Uma das ironias da actual situação é que muitas das profissões fixas são na maior parte das vezes desempenhadas pelas pessoas mais voláteis, enquanto que algumas das profissões mais voláteis podem ser desempenhadas por pessoas com profundas raízes ancestrais no local onde trabalham.Comecemos por algumas profissões fixas. Uma das características mais óbvias da estabilidade é a necessidade da proximidade física dum determinado local, porque a profissão envolve directamente o fabrico, a alteração, a limpeza ou a movimentação de bens físicos ou a entrega de serviços pessoais reais às pessoas num tempo real e num espaço real.Partindo do meu próprio espaço real, passo em revista as profissões fixas que o sustentam. Vivo em Londres numa rua de casas de três pisos do século dezanove, onde cerca de um terço das casas são ocupadas por agregados familiares simples da classe média e o restante foi transformado em apartamentos ou ocupado por agregados familiares mais alargados, famílias maiores e mais pobres. A maior parte das famílias da classe média utilizam uma empregada de limpeza três ou quatro horas por semana. Das empregadas de limpeza que conheço nesta rua, uma é boliviana, uma é mauritana, uma ugandesa, e uma colombiana. Nenhuma delas é branca; nenhuma nasceu na Europa, muito menos em Londres. No fim da rua há dois restaurantes, um café, uma loja de peixe e batatas fritas, e um estabelecimento de venda de frango frito. Um dos restaurantes serve pratos ao estilo europeu de diversas origens, principalmente franceses. O seu proprietário é de Montenegro, casado com uma irlandesa. As empregadas são brasileiras, polacas e russas. O outro restaurante anuncia um menu italiano mas tanto o proprietário como o pessoal (com excepção duma empregada albanesa) são turcos, tal como o café. Os empregados da loja de peixe e batatas fritas são chineses. O estabelecimento de venda de frango frito, que está aberto durante quase toda a noite e atende uma clientela bastante grosseira, é, apesar do seu nome americano, servida por um grupo transitório de trabalhadores de aspecto exausto de origem africana ou asiática.Periodicamente as casas da rua que são de propriedade pública (cerca de 20 por cento do total) são renovadas todas ao mesmo tempo. Isto aconteceu no ano passado, e durante várias semanas as redondezas estiveram cheias de trabalhadores da construção. Desta vez, tanto quanto pude ver, todos os trabalhadores especializados eram polacos; alguns dos operários menos especializados eram de diversos países balcânicos. Com excepção duma capataz (uma londrina negra) não vi nenhuma mulher entre o pessoal.Como não tenho automóvel, utilizo frequentemente o serviço dos mini-táxis. Os motoristas estão sempre a mudar mas incluem um grande número de homens de países do sul da Ásia e de África. Que eu saiba só há uma motorista mulher, uma nigeriana mal-humorada que se recusa a sair do carro mas buzina fortemente para anunciar a sua chegada. Já não me lembro da última vez que me calhou um motorista branco.Esta diversidade de origem étnica não é exclusiva do trabalho manual. A pequena companhia que faz a manutenção da minha rede de computadores é dirigida por um cipriota grego. O seu representante é sírio e quando está demasiado ocupado envia um engenheiro turco para resolver os meus problemas. São todos altamente especializados e instruídos. Ao balcão de atendimento do nosso centro de saúde local estão duas mulheres muito eficientes – uma é nigeriana e a outra somali.Estes exemplos podiam ser multiplicados por mil, não apenas em Londres mas em muitas cidades por todo o globo, onde a manutenção de infra-estruturas estáveis e as actividades de serviços de atendimento a clientes estão cada vez mais nas mãos de pessoas que nasceram noutros países ou noutros continentes. A sua presença como migrantes recém-chegados ou temporários tem múltiplos efeitos na forma e no carácter das cidades hospedeiras hoje dependentes do seu trabalho, tanto nas áreas onde eles vivem como nas áreas onde eles trabalham. Enquanto trabalhadores de serviços e utilizadores de serviços eles estão frequentemente no interface do consumo e da produção tanto dos serviços públicos como privados e neste processo ambos se transformam: criam-se mercados para novos tipos de comida e de serviços pessoais; as instituições de saúde e educacionais alteram as horas e os idiomas em que prestam os seus serviços; e aparecem novos códigos de vestuário ou de comportamentos, tácitos ou explícitos, que colocam múltiplos desafios tanto aos novos como aos antigos residentes cuja sobrevivência social depende de saber descodificá-los. A composição étnica específica de qualquer cidade é modelada por uma complexa interacção de factores que incluem o seu passado histórico, político, religioso, e as tradições culturais, a estrutura industrial e a localização geográfica; o facto da diversidade, no entanto, é cada vez mais universal.Isto para as profissões fixas; e quanto às voláteis? O desenvolvimento duma divisão global do trabalho não é novo. As regiões sempre comercializaram os seus produtos umas com as outras desde que a história é história, e o assalto de outras partes do mundo à procura de matérias-primas ou de trabalho escravo é pelo menos tão velho como o colonialismo. No final do século XIX o Império Britânico exibia um padrão notavelmente desenvolvido de especialização industrial regional entrelaçado numa rede comercial global. O século XX assistiu ao funcionamento das corporações multinacionais com uma crescente independência dos interesses dos estados nações nos quais estavam sediadas, inaugurando um período depois da Segunda Guerra Mundial que foi caracterizado por Baran e Sweezy como 'capitalismo monopolista'. [1] Na década de 70, tornou-se claro que estava a chegar uma 'nova divisão global do trabalho' na indústria da manufactura com as companhias a dividir os seus procedimentos de produção em sub-procedimentos separados e a redistribuir essas actividades por todo o globo onde quer que as condições fossem mais favoráveis. [2] Esta tendência continuou na década de 80 com indústrias tão diversas como a do vestuário, da electrónica e da auto-manufactura afastando os seus instrumentos de produção das economias desenvolvidas com altos custos de mão-de-obra e forte controlo ambiental e dirigindo-os para países em desenvolvimento, muitas vezes para 'zonas de mercado livre' em que se oferecem diversos incentivos fiscais aos países desenvolvidos e se suspendem os regulamentos de protecção à mão-de-obra e ao ambiente como forma de atrair o mais possível o investimento directo estrangeiro. Os trabalhadores nessas zonas eram desproporcionadamente jovens e do sexo feminino, e recebiam salários abaixo do nível da subsistência. Apesar disso, não eram de forma alguma passivos e muitos deles organizaram-se activamente para melhorar a sua sorte. [3] Esta é uma das razões por que algumas das regiões outrora consideradas como de salários baixos, por exemplo o sudeste da Ásia e a América Central, são agora consideradas de salários relativamente médios, e as companhias abandonaram-nas para explorar mão-de-obra ainda mais barata em zonas como a China, a África sub-saariana e outras partes da América Latina.Escusado será dizer que esta evolução teve impactos dramáticos tanto nas cidades que perderam os empregos das manufacturas como nas que os ganharam. Nas áreas em desenvolvimento, como as 'maquiladoras' mexicanas ou na região Metro Manila das Filipinas, surgiram enormes desenvolvimentos urbanos novos, muitas vezes altamente poluídos, cujas economias dependiam das manufacturas para exportação. Estas áreas atraem a mão-de-obra das periferias rurais empobrecidas e, ao fazê-lo, criam novos mercados urbanos para bens e serviços e novas necessidades de infra-estruturas e alojamento que na maior parte das vezes não são resolvidas de forma adequada.Nos países desenvolvidos, as cidades que se formaram como centros produtivos no século XIX e princípios do século XX, tiveram que se transformar em centros de serviços ou entraram em decadência até acabarem em áreas enferrujadas com um alto desemprego, centros comerciais vazios, aumento de criminalidade, e serviços públicos em deterioração. Em muitos casos não foi de um dia para o outro que passaram de empregadoras de trabalhadores locais especializados e organizados para desertos de fábricas e armazéns vazios. Pelo contrário, passaram por um período transitório durante o qual o trabalho foi automatizado, simplificado e embaratecido. Muitas vezes importava-se mão-de-obra imigrante para efectuar as tarefas que já não eram atractivas para as gentes locais durante o período próspero que decorreu na maior parte dos países desenvolvidos desde a década de 50 até meados da década de 70. Quando as fábricas começaram a fechar, a partir dos meados da década de 70, foram esses trabalhadores imigrantes, quer fossem asiáticos do sul no norte do Reino Unido, norte-africanos em França, turcos na Alemanha, hispânicos nos Estados Unidos ou coreanos no Japão, que apanharam com a pancada desta alteração. Ao fermento da decadência das áreas enferrujadas somaram-se as tensões étnicas.Menos bem estudada – pelo menos até há pouco tempo – tem sido a nova divisão global do trabalho na área dos colarinhos brancos. Apesar disso, também esta tem-se alterado desde a década de 70 quando trabalho menos especializado, como a introdução de dados ou a composição de dados, começou a ser exportado por grosso da América do Norte e da Europa para economias de custos mais baixos nas Caraíbas, assim como na Ásia sul e sudeste, enquanto que os serviços de maior especialização, como programação informática, começaram a ser exportados para o mundo desenvolvido a partir de economias em desenvolvimento como a Índia, as Filipinas e o Brasil. [4] No ano 2000, foi desencadeado o primeiro projecto de investigação com o objectivo de descrever e medir o desenvolvimento da divisão internacional da mão-de-obra no trabalho do processamento-telecomunicação-informação, sob a sigla EMERGENCE, que significa 'Estimation and Mapping of Employment Relocation in a Global Economy in the New Communications Environment' (Avaliação e Descrição da Relocação do Emprego numa Economia Global no Novo Ambiente das Comunicações). O EMERGENCE foi inicialmente fundado pelo Programa da Sociedade de Informações da Comissão Europeia para efectuar a investigação nas quinze nações que eram na altura membros de pleno direito da União Europeia mais os estados candidatos (hoje membros de pleno direito) da Hungria, Polónia e da República Checa. Posteriormente, o projecto conseguiu mais fundos para efectuar uma investigação semelhante na Austrália, nas Américas e na Ásia. No final resultou uma imagem multifacetada da nova divisão global do trabalho, complexa e em mutação rápida, nos serviços de informações. A primeira resposta obtida foi quanto à extensão com que os empregadores estão actualmente a utilizar as novas tecnologias para deslocalizar o trabalho. Foi efectuada uma análise em 7268 estabelecimentos com cinquenta empregados ou mais nos dezoito países europeus e uma análise semelhante em 1031 estabelecimentos de todas as dimensões na Austrália. Esta análise incidiu sistematicamente nos locais onde eram prestados sete serviços profissionais genéricos diferentes. Estes serviços profissionais eram: actividades criativas e geradoras de conteúdos, incluindo pesquisa e desenvolvimento; desenvolvimento de software; introdução de dados e dactilografia; funções de gestão (incluindo gestão de recursos humanos e de formação assim como gestão de logística); funções financeiras; actividades de vendas; e serviço a clientes (incluindo consultoria e serviços de informações ao público assim como apoio pós-venda). Para cada função, a análise incidiu na extensão com que era prestada à distância através duma ligação de telecomunicações, 'trabalho electrónico', se era prestada a partir da empresa ou entregue a terceiros, e quais as razões para a escolha de qualquer localização especial ou prestador de serviços.Os resultados proporcionaram uma imagem abrangente da extensão com que estes serviços profissionais já estavam deslocalizados no ano 2000. Na Europa, perto de metade de todos os estabelecimentos já estavam a prestar pelo menos uma destas funções à distância utilizando uma ligação de telecomunicações para executar o serviço, enquanto que na Austrália cerca de um quarto delas fazia o mesmo.Ainda mais impressionante do que a extensão geral do 'trabalho electrónico' é a forma que ele assume. A maior parte da literatura sobre trabalho à distância, trabalho por telecomunicação, trabalho em casa ou quaisquer outros pseudónimos para 'trabalho electrónico', pressupõe que a forma dominante é o trabalho com base em casa. No entanto estes resultados mostram que o empregado de 'trabalho electrónico' estereotipado com base exclusivamente em casa é de facto uma das formas menos populares. Mais ainda, o 'trabalho electrónico' em casa é sobrecarregado fortemente pela 'contratação electrónica de terceiros' como um mecanismo de organização de trabalho à distância, com cerca de 43 por cento de empregadores europeus e 26 por cento de australianos a utilizar esta prática. Grande parte da 'contratação electrónica de terceiros' é efectuada no interior da região onde está sediado o empregador (34,5 por cento), mas uma parte substancial (18,3 por cento) contrata noutras regiões dentro do mesmo país e 5,3 por cento contratam fora das suas fronteiras nacionais. Estas deslocalizações de trabalho inter-regionais e internacionais (por vezes inter-continentais) dão-nos pistas para a geografia da nova divisão internacional do trabalho nos 'serviços electrónicos'. Quais são os principais factores que impulsionam esta contratação para além das fronteiras nacionais? No topo da lista está a procura da especialidade técnica adequada. Só quando esta está disponível é que entram em cena factores secundários como a fiabilidade, a reputação e o baixo custo. É este factor, mais do que qualquer outro, que explica a importância da Índia no fornecimento de 'serviços electrónicos'. Com a sua enorme população parece oferecer uma fonte quase inesgotável de formados em ciências de computadores de língua inglesa. Uma análise de 200 das maiores companhias no Reino Unido, encomendada em 2001 por um importante prestador de serviços internacional, revelou que a Índia era o centro de desenvolvimento de software ultramarino escolhido preferencialmente por 47 por cento dos gestores. [5] Já há sinais contudo de que o mercado de software indiano está a ficar esgotado, apesar da queda drástica da procura dos Estados Unidos. Algumas companhias indianas já avançaram para posições intermédias na cadeia de preços e elas próprias estão a contratar noutros destinos, que incluem a Rússia, a Bulgária, a Hungria e as Filipinas.Para as actividades de valor acrescentado mais baixo, como a introdução de dados, países mais baratos como o Sri Lanka, Madagascar e a República Dominicana constituíram-se como destinos alternativos aos anteriores (como Barbados e as Filipinas). A China está a ganhar terreno com uma população ainda maior e custos mais baixos do que a Índia, assim como a determinação de assumir um papel de liderança na 'economia electrónica'.Diferentes funções profissionais caracterizam-se por diferentes tipos de trabalhadores. Funções de pouca especialização, tal como a introdução de dados ou o trabalho de serviço a clientes, tendem a envolver grandes quantidades de trabalhadores que são tendencialmente mulheres; as funções de maior especialização, como o desenho de sistemas, empregam geralmente quantidades menores que são tendencialmente homens.Quando as companhias se confrontam com a possibilidade de escolha de opções globais, tornam-se ainda mais exigentes quanto ao local para onde se dirigir, escolhendo fornecedores ou locais como 'cavalos para corridas'. Neste processo há algumas regiões (Bangalore é um exemplo clássico) que adquirem reputações mundiais pela sua excelência num determinado campo, enquanto que outras são completamente ultrapassadas. O projecto EMERGENCE classificou como 'vencidas electronicamente' grandes secções do mundo, incluindo grande parte da África sub-saariana e a Ásia Central. [6] O que é que aconteceu desde 2000? Uma segunda série de estudos, executados pelo projecto asiático EMERGENCE [7] em 2002 e 2003, revelou que houve alterações significativas nos primeiros anos do século vinte e um. O que no virar do milénio era ainda uma experiência de risco tornou-se numa prática normal, para não dizer uma rotina, três anos depois. As cadeias de preços tornaram-se mais longas e mais complexas, envolvendo cada vez mais intermediários. O mundo assistiu ao aparecimento de novas companhias enormes dedicadas ao fornecimento de serviços profissionais, muitas vezes muito maiores do que os seus clientes, com uma divisão do trabalho global interna. Quando uma grande empresa no sector privado ou público decide entregar a terceiros um grande contrato para fornecimento de serviços profissionais, cada vez se trata menos de escolher entre a Índia ou a Rússia, o Canadá ou a China, mas sobretudo uma questão de decidir qual a companhia específica (por exemplo a Accenture, a EDS ou a Siemens Business Services). Quando essa companhia obtém o contrato, pode decidir dividir o trabalho por equipas em diversas partes do mundo, de acordo com um determinado equilíbrio de conhecimentos profissionais, idiomas, custos e critérios de qualidade envolvidos. Este tipo de trabalho podia ser encarado, de certa forma, como um caso paradigmático de volatilidade, deslizando sem fricções através do globo entre equipas que estão ligadas por redes de telecomunicações e por uma cultura corporativa comum mas que apesar disso podem estar localizadas fisicamente em ambientes fortemente contrastantes, e ocupar locais sociais muito diferentes na estrutura de classes local.A presença desta nova classe internacional de cibertrabalhadores sem dúvida tem impacto nas cidades em que vivem. Por exemplo, podem assumir comportamentos que espalham os valores e as culturas das empresas multinacionais nas suas comunidades locais e reduzem a cadeia de preços das companhias fornecedoras. Se saírem para passarem a trabalhar para outras companhias, sediadas localmente, ou decidirem iniciar um negócio por sua própria conta, também estes sofrerão as marcas da experiência internacional. Há ainda outros efeitos mais concretos. Por exemplo, o impacto da indústria de software internacional em Bangalore foi dramático ao criar pressão sobre a infra-estrutura e sobre os aumentos dos preços das propriedades que afectam os outros residentes da cidade, quer trabalhem nessa indústria ou não. Os moradores doutras cidades também se tornaram vítimas do sucesso internacional de algumas das suas vizinhas – por exemplo, o sucesso de Dublin enquanto parte do fenómeno Celtic Tiger produziu um congestionamento de tráfego crónico e uma inflação no preço das propriedades que levou a que a compra duma casa passasse a estar fora do alcance de muita gente que anteriormente tinha posses para a comprar. Da mesma forma, o trânsito fica congestionado sempre que há uma mudança de turno nos azafamados call centers de Noida e Gurgaon perto de Delhi no norte da Índia.Entretanto, o simples facto de que o seu trabalho possa ser deslocalizado para outra parte do mundo coloca um travão às perspectivas dos trabalhadores de colarinho branco nas cidades em que tradicionalmente têm estado baseados tais trabalhos. A precariedade cada vez maior dos seus empregos, expressa muitas vezes por contratos de auto-emprego ou contratos a prazo fixado, não tem apenas como efeito tornar mais difícil a luta para uma melhoria no salário e nas condições; também pode ter impacto no mercado habitacional local tornando impossível obter um financiamento para habitação.Até aqui, tracei uma imagem fortemente dicotómica de um mundo em que o fixo se contrapõe ao volátil no que se refere a tarefas e a pessoas. Para a maior parte de nós, evidentemente, a realidade é muito mais complexa do que isto, apresentando características estáveis e voláteis em configurações complexas. Designei esta situação por dividida. Numa existência dividida, as características da estabilidade e da volatilidade estão em constante e tensa interacção umas com as outras. As actividades enraizadas de tempo real (como meter as crianças na cama ou comer uma refeição) são constantemente interrompidas por actividades 'virtuais' (como o toque do telefone), enquanto que as actividades 'virtuais' (como ver o email de cada um) são prejudicadas pelas realidades físicas da situação em que cada um se sente (um torcicolo, por exemplo, ou o impacto dum corte de energia). Os tradicionais ritmos da vida diurnos são interrompidos pela necessidade de dar resposta a exigências globais. A interpenetração de zonas de tempo numa esfera da vida leva inexoravelmente ao desenvolvimento duma economia de vinte e quatro horas, à medida que as pessoas obrigadas a trabalhar em horas não tradicionais precisam depois de satisfazer as suas necessidades enquanto consumidores durante horas fora do normal, o que por sua vez obriga outro grupo a estar de serviço para fornecer esses serviços, desencadeando um processo pelo qual as horas de porta aberta se vão alargando lentamente através da economia e com elas a expectativa de que é normal estar tudo sempre aberto. Este processo de normalização é acelerado pela existência em cada cidade de quantidades crescentes de novos residentes cujo quadro comparativo de referências é espacial e não temporal. Em vez de compararem as horas de abertura das lojas duma cidade europeia com o que eram antigamente, é mais provável que as comparem com as de Nairobi, Nova Iorque ou Nova Delhi. Dificilmente terão noção da solidariedade social que esteve na base das razões para muitas das tradicionais estruturas temporais ou, se o tiverem, consideram-nas pouco mais do que estranhas anomalias (ou até práticas racistas concebidas para os boicotar). Por exemplo, no Reino Unido, desde a década de 50 até à década de 80, a maior parte das lojas na maioria das cidades fechava meio-dia durante a semana, o que era conhecido por 'dia de fechar mais cedo'. Embora isto trouxesse alguma inconveniência para os fregueses, era quase universalmente aceite como justo, visto que os empregados tinham que trabalhar nas manhãs de sábado e portanto mereciam meio dia livre de compensação noutra altura qualquer da semana. Estas atitudes são quase inconcebíveis no século XXI.Esta experiência dividida de espaço e de tempo reflecte-se na fractura das identidades ocupacionais. Embora muitas descrições de funções mantenham uma mistura de características estáveis e voláteis, estas são cada vez mais voláteis. Tem havido uma erosão das fronteiras nítidas do local do trabalho e do dia de trabalho, com um excedente de muitas actividades para fazer em casa ou noutros locais, incluindo a expectativa de que se tem que continuar a ser produtivo enquanto se viaja, quer se seja um motorista de camião a receber ordens por telemóvel durante o intervalo para o almoço, ou um executivo a trabalhar numa folha de cálculo numa sala de espera do aeroporto. Num mundo em que as responsabilidades pela casa e pelas crianças estão distribuídas desigualmente entre os sexos, estes impactos estão longe do género neutro e contribuíram para um novo desenho invisível das fronteiras entre as tarefas que podem ser feitas facilmente e de forma segura por mulheres e as que se anunciam subliminarmente como masculinas.Acompanhando estas dissoluções das antigas unidades de espaço e tempo, também assistimos a um novo desenho de muitos dos procedimentos de trabalho que envolvem algumas mudanças subtis e outras não tão subtis na responsabilidade por determinadas tarefas na maior parte dos locais de trabalho. Algumas destas mudanças têm o efeito cumulativo de inclinar a balança entre a estabilidade e a volatilidade. Por exemplo, uma função que anteriormente aliava receber e cumprimentar clientes com outras actividades secundárias pode ser completamente refeita com base no computador, tornando fácil deslocalizá-la total ou parcialmente noutro local. Se esse outro local for a própria casa do trabalhador existente, então isso pode ser considerado como bastante libertador, mas se os conhecimentos profissionais não forem exclusivos desse trabalhador, o mais provável é que o outro local seja a secretária de qualquer outra pessoa no outro lado do mundo; longe de ser liberalizador, isto constitui portanto uma nova fonte de falta de segurança. Inversamente, algumas outras funções que anteriormente estavam mais ligadas à secretária (e portanto, em princípio, deslocalizáveis) podem ser desenhadas de novo para incluir mais actividades de interface com clientes e tornarem-se mais limitadas espacialmente, embora possam não estar amarradas a um único local mas a vários, se se pretender que o trabalhador possa encontrar-se com clientes.Mais preocupante é a lenta erosão das fronteiras ocupacionais e, com elas, das identidades ocupacionais. É fácil caricaturar como rígido e hierárquico o velho mundo em que todos sabiam que 'esta função é o que eu faço; aquela função é o que você faz; aquela função está reservada para jovens recém-formados; aquela outra é feita por trabalhadores mais velhos com muita experiência que sabem o que é que pode correr mal'. Para além de tudo o mais, podia facilmente levar ao estabelecimento de regras tácitas que atribuíam algumas tarefas a mulheres ou a membros de certos grupos étnicos de pessoas com antecedentes de instrução especiais. Isto punha barreiras inaceitáveis à mobilidade social e à igualdade de oportunidades. Mas sem isto, o que é que temos? Um mundo em que somos sempre apenas tão bons quanto o desempenho da semana passada; em que para manter o emprego temos que estar sempre preparados para adquirir novas habilitações e para alterar as formas antigas com que fomos treinados (e das quais nos orgulhávamos no passado); em que não conseguimos saber com certeza e antecipadamente quando é que estaremos livres e quando é que temos que trabalhar, em que nunca podemos dizer 'não, isso não é da minha responsabilidade' sem medo de represálias. Um mundo sem fronteiras ocupacionais pode tornar-se muito facilmente num mundo em que a solidariedade social é praticamente impossível porque já não temos qualquer forma clara de definir quem são os trabalhadores nossos colegas ou os nossos vizinhos, e em que muitas das nossas interacções são com estranhos em que é difícil distinguir entre amigos ou aliados e perigosos ou inimigos.O futuro das nossas cidades dependerá em grande parte da forma como reintegrarmos estas personalidades divididas, os locais de trabalho e as vizinhanças.
Notas 1- Paul Baran and Paul Sweezy, Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order (New York: Monthly Review Press, 1966). 2- F. Froebel, J. Heinrichs, & O. Krey, The New International Division of Labor (Cambridge: Cambridge University Press, 1979). 3- Ver por exemplo Women Working Worldwide, Common Interests: Women Organising in Global Electronics (London: Women Working Worldwide, 1991). 4- Ursula Huws, The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World (New York: Monthly Review Press & London: Merlin Books, 2003). 5- Citado em silicon.com, May 31, 2001, www.silicon.com/news/500020/1/1024784.html . 6- Ursula Huws, ed., When Work Takes Flight: Research Results from the EMERGENCE Project, IES Report 397, Brighton: Institute for Employment Studies, Brighton, 2003. 7- Ursula Huws and J. Flecker, eds., Asian EMERGENCE: The World's Back Office?, IES Report 409, Institute for Employment Studies, Brighton, 2004.
Ursula Huws
http://resistir.info
Notas 1- Paul Baran and Paul Sweezy, Monopoly Capital: An Essay on the American Economic and Social Order (New York: Monthly Review Press, 1966). 2- F. Froebel, J. Heinrichs, & O. Krey, The New International Division of Labor (Cambridge: Cambridge University Press, 1979). 3- Ver por exemplo Women Working Worldwide, Common Interests: Women Organising in Global Electronics (London: Women Working Worldwide, 1991). 4- Ursula Huws, The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World (New York: Monthly Review Press & London: Merlin Books, 2003). 5- Citado em silicon.com, May 31, 2001, www.silicon.com/news/500020/1/1024784.html . 6- Ursula Huws, ed., When Work Takes Flight: Research Results from the EMERGENCE Project, IES Report 397, Brighton: Institute for Employment Studies, Brighton, 2003. 7- Ursula Huws and J. Flecker, eds., Asian EMERGENCE: The World's Back Office?, IES Report 409, Institute for Employment Studies, Brighton, 2004.
Ursula Huws
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