1. Admitamos por 1 minuto que a história desta guerra começou com o rapto de um soldado que integrava as forças de defesa israelita ao perímetro de Gaza. Ou seja, que foram “eles”, os palestinianos, “que começaram”.
Admitamos ainda que Gaza não é uma prisão que os carcereiros entregaram aos encarcerados, mas parte de um país com as suas instituições estatais.
Admitamos também que Israel não detém nove mil prisioneiros palestinianos, entre os quais se encontram centenas de adolescentes.
Admitamos, até, que Israel nunca trocou prisioneiros. Mesmo que uma nota da sua embaixada em Portugal nos explique que «Israel já trocou centenas de prisioneiros terroristas para recuperar os corpos de alguns soldados mortos, quando não havia outros meios para garantir o seu retorno» [1]...
Admitamos.
2. E pergunte-se: mesmo que tudo assim fosse, justifica-se o que se seguiu?
Justifica-se colocar milhão e meio de pessoas a duas e três horas de água por dia?
Justifica-se o fecho, durante uma semana, da única fronteira por onde entram os abastecimentos a uma língua de terra onde a única coisa que aí cresce é o cimento armado?
Justifica-se o rapto de 64 deputados, de um terço do governo, e até de um vice presidente da comissão política da Assembleia Parlamentar euro-mediterrânica?
Justifica-se o bombardeamento de inúmeros edifícios que cumpriam funções de natureza pública, da transformação de electricidade ao ministério da economia?
Justifica-se, enfim, que o saldo da “resposta” ultrapasse já a centena de mortos civis, ou seja, de pessoas que não andam com tubos Qassam aos ombros?
A desproporção da resposta, mais do que óbvia, indigna o mais endurecido dos corações. Mas para a embaixada de Israel, a justificação é simples: «Lembramos mais uma vez que foi o próprio povo palestiniano que elegeu um governo dirigido pelo Hamas, uma organização terrorista» [1]...
3. Para aliviar a insuportável pressão sobre Gaza, um outro partido árabe, o Hezzbollah libanês, decidiu raptar dois soldados israelitas. Não é claro onde a operação decorreu, porque as versões divergem. Mas também não é relevante. O Peace Corps das Nações Unidas que vigia a “linha azul”, ou seja, a fronteira entre os dois países, regista nos seus relatórios inúmeras violações do espaço territorial e aéreo por ambas as partes. E Israel ocupa ainda uma língua de terra libanesa, as chamadas quintas de Chebaa.
Mas admitamos a versão hebraica dos acontecimentos.
Admitamos também que Israel nunca ocupou o Sul do Líbano, não bombardeou Beirute, nunca teve nada a ver com o massacre de mais de mil palestinianos nos campos de refugiados de Sabra e Chatila, situados no Sul daquela cidade, nem detém em seu poder dezenas de prisioneiros libaneses.
Admitamos ainda que uns dias antes da “retaliação”, o exército libanês não desarticulou uma rede terrorista paga, formada e equipada pela Mossad, operando no interior do Líbano e responsável por, pelo menos, 4 atentados, o último dos quais em 26 de Maio último.
Admitamos.
4. Ainda assim, a pergunta é: justifica-se o que estamos a ver?
Justifica-se a chuva de fogo que se abateu sobre o Líbano? A destruição de aldeias e o bombardeamento sistemático das periferias urbanas de maioria chiita?
Justifica-se a fria destruição de todas as infra‑estruturas vitais à economia de um país – do aeroporto de Beirute às principais vias de comunicação com o exterior, passando pela redução a pó das centrais eléctricas – fazendo-o recuar, como o próprio Chefe do Estado Maior israelita, Dan Halutz, reconhece, «30 anos para trás»?
Justifica-se o bombardeamento de uma das principais estações de televisão, a Al Manar, só porque ligada ao Hezzbollah?
E finalmente, justifica-se que por causa do rapto de dois soldados, se comece uma guerra que eleva os mortos civis dos dois lados para a casa das centenas e, se isto não parar, seguramente para a dos milhares?
A desproporção é, também neste caso, por demais evidente. Mas para a embaixada de Israel tudo se explica. Segundo nota de 13 de Julho, os bombardeamentos têm objectivos circunscritos: «não deixar os soldados raptados serem levados para outro país» e «alvos específicos da organização terrorista». Para encontrar explicação para o facto do Líbano estar a ser levado de novo para os anos setenta, será preciso encontrar, perdida entre linhas, uma tão enigmática quanto reveladora frase: «os sequestros são um sintoma, não a causa desta reacção» [1]...
5. Há uma saída para esta guerra que tem todas as condições para alastrar? Ontem mesmo os microfones captaram, em off record, um palpitante momento do almoço do G8. G.W. Bush, a braços com a tragédia iraquiana, não quer que as coisas derrapem, por agora, no Levante Mediterrânico. Não há tropas para tudo, nem aliados regionais que tudo aceitem sem pestanejar. De momento, prefere a redução de danos. Depois de nas Nações Unidas, os EUA terem vetado uma resolução que apelava ao cessar fogo, é elucidativo o comentário que fez a Blair: «a ironia disto é que eles têm de conseguir que a Síria faça com que o Hezzbollah pare de fazer aquela merda». Como?, se o imperador não se digna a falar com ditadores? «Vou telefonar ao Annan [nr: secretário geral das ONU] para falar com o Assad [nr: presidente sírio]»...
6. O que G. W. Bush deveria saber de cor e salteado é que não haverá Paz no Médio Oriente enquanto não existir um Estado Palestiniano soberano e viável. Não há outra saída para este conflito de cinco décadas. Isto mesmo o reconhecia Henry Siegman, a 8 de Junho, no insuspeito Financial Times: «Israel existe. Que o Hamas o reconheça ou não, isso nada acrescenta ou diminui ao que é irrefutável. Em contrapartida, 40 anos depois da guerra de 67, não existe ainda Estado Palestiniano. A questão politicamente pertinente que, em consequência, se coloca, é a de saber se Israel reconhece ou não o direito dos palestinianos a ter um Estado. E não o inverso» [2].
_______
[1] Nota explicativa da Embaixada de Israel, datada de 13 de Julho.
[2] “The issue is not whether Hamas recognizes Israel”, Financial Times de 8 de Junho.
Miguel Portas
http://infoalternativa.org/moriente/mo055.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário