domingo, agosto 27, 2006

A decadência da classe trabalhadora brasileira em números

Ao comparar dois artigos sobre a economia brasileira, alguém não familiarizado com a nova realidade do mercado de trabalho, pensaria que se tratam de dois países inteiramente diferentes.
O primeiro artigo é do Financial Times, jornal que jamais poderá ser acusado de “chapa branca”, ou identificado com a “base aliada” do governo Lula na mídia. O título do artigo é “Lucros do Brasil apontam reação à turbulência” e leva o sub-título “PIB cresceu 5,2% no primeiro trimestre; empresas têm ganhos altos”.(1)
Segue-se uma verdadeira enxurrada de boas notícias:
“As empresas do Brasil informaram lucros recordes no primeiro trimestre deste ano, ajudando a melhorar sua saúde financeira após repetidas turbulências econômicas ao longo da década passada”.”A renda líquida de 209 empresas negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) totalizou R$ 12,4 bilhões no primeiro trimestre deste ano, segundo a Economática, uma consultoria econômica. Isto representa um aumento de 61% em relação a 2004 e o melhor resultado em primeiro trimestre dos últimos cinco anos”.”A comparação exclui bancos, assim como a Petrobrás e a Eletrobrás, as empresas estatais de petróleo e energia. Os lucros da Petrobrás cresceram 32%, para R$ 5 bilhões, enquanto os lucros do Itaú, o maior banco em capitalização no mercado, subiu 30%, para R$ 1,14 bilhão”.”Por trás da estelar performance corporativa está um forte crescimento econômico doméstico e internacional, uma combinação que o Brasil não via há anos. ‘Faz muito tempo desde que vimos lucros como estes no Brasil --pelo menos desde 1996 ou 1997’, disse Marcelo Kayath, chefe de ações latino-americanas do CSFB, o banco de investimento”.
Em resumo, uma festa, digna de comemorações e paradas cívicas. E isso tudo está sendo dito por um dos jornais mais conservadores do mundo em termos de economia. Suas antipatias a partidos e governos mesmo que com leve viés esquerdista é notória.
Portanto podemos concluir com serenidade que a “euforia dos números” do governo Lula não é só propaganda. No entanto, ao examinarmos um outro artigo, sentimos que alguma coisa não parece estar certa.
O artigo se intitula “Renda volta a cair após três meses; desemprego fica estável, diz IBGE” (2) e foi publicado na Folha Online no mesmo dia! Nele podemos ler uma série de informações que parecem se referir a outro país:
”A taxa de desemprego nas seis maiores regiões metropolitanas do país ficou estável em 10,8% da PEA (População Economicamente Ativa) em abril, o mesmo índice de março, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados hoje”.
“Já a renda do trabalhador recuou 1,8%, após três meses de crescimento, e ficou em R$ 938,70 ante R$ 945,20 em março”.”A série histórica da pesquisa do IBGE mostra que a tendência do desemprego nos primeiros meses do ano é de aumento, com o fim das contratações temporárias. Desde o início deste ano, no entanto, o IBGE destaca um comportamento mais moderado do aumento do desemprego em razão do processo de recuperação do mercado de trabalho verificado no segundo semestre do ano passado”.Não parece incrível? De um lado temos “lucros recordes”, “Faz muito tempo desde que vimos lucros como estes no Brasil”, “o melhor resultado em primeiro trimestre dos últimos cinco anos”. No entanto no que se refere ao emprego, o IBGE aponta apenas para um comportamento “mais moderado” do aumento do desemprego, já elevadíssimo.
Mesmo assim, atribui essa “melhoria” para a classe trabalhadora a uma recuperação do mercado de trabalho que teria ocorrido no ano passado, e em função apenas de contratações temporárias! Em outras palavras, o excepcional desempenho das empresas no primeiro trimestre desse ano, não teve nenhuma influencia sobre o nível de emprego e além disso, depois de ligeira alta, a renda média dos trabalhadores, seguindo sua tendência de décadas, voltou a cair.
Tudo isso está ai, demonstrado em números. Não se trata de especulações teóricas nem “percepções” pessoais, sem maiores fundamentos na realidade. São estatísticas oficiais, obtidas por instituições de grande credibilidade e divulgadas por veículos de mídia sem nenhum interesse político partidário.
Então à que conclusões devemos chegar? O que explicaria essa anomalia de um crescimento de 5,2% no PIB no mesmo período em que o desemprego se mantém “estável” e só não aumenta por causa do desempenho do ano passado? Como entender lucros recordes ao mesmo tempo em que a renda dos trabalhadores cai?
Mesmo o mais ingênuo esquerdista “sabe” que em períodos de lucros excepcionais é muito mais fácil a mobilização da classe trabalhadora para reivindicar aumentos reais de salários. O mais fanático defensor da “mão invisível” do mercado também “sabe” que empresas com lucros em alta, tendem a ser muito mais liberais em conceder aumentos de salários e benefícios.
Além disso, o “bom senso” indica que os lucros vêm de um aumento na atividade economia, o que só pode significar um aumento de demanda por mão-de-obra. Mas os números dizem exatamente o contrário!
Como se pode explicar isso? A resposta que todos procuram evitar é que não existe paradoxo algum. O lucro da empresas agora é obtido em grande parte com a eliminação de postos de trabalho e a redução de custos por meio das novas tecnologias e técnicas gerencias.
Isso significa que em períodos de atividade econômica baixa ou apenas moderada, todo o esforço de modernização da produção se concentra na eliminação da maior fonte de custos das empresas: seus trabalhadores.
Ao contrário da “era fordista”, quando a automação visava o aumento contínuo da produção, na “era toyotista” a automação é usada, sobretudo para reduzir custos. Isso tem enormes implicações.
Sabemos que em qualquer processo de produção, dado um determinado aumento da produtividade por operário, pode-se escolher entre produzir mais unidades com o mesmo número de empregados ou produzir o mesmo número de unidades com menos empregados.
Alguém pode argumentar que isso sempre foi verdade e que, portanto, não há porque existir uma tendência geral em direção a segunda opção. Mas existe uma diferença essencial em termos de tecnologia.
Suponha que você é um engenheiro de produção e o ano é 1890. Você foi contratado para tentar aumentar a produtividade de uma grande fábrica de móveis de madeira. Depois de estudar atentamente os procedimentos dos carpinteiros em serrar tábuas com serrotes, o que seria mais viável? Propor a aquisição de uma máquina capaz de serrar mais madeira em menos tempo ou encontrar uma máquina capaz de substitui completamente um carpinteiro?

É evidente que a segunda opção estaria fora de questão naquela época. O que você faria seria adquirir uma serra a motor, capaz de serrar muito mais tábuas com um único operador. Só que isso não significa que você poderia dispor de uma máquina para cada operação.
Não existiria ainda uma máquina capaz de tornear com precisão, outra para polir e envernizar, e assim por diante. Além disso, a serra mecânica não serviria para mais nada alem dessa operação específica.
O seu ganho de produtividade só fará sentido se você puder aumentar muito a própria escala do negócio. O investimento na serra a motor só será recuperado caso toda a linha de produção possa ser acelerada. Isso significa que você terá de contratar mais empregados e faze-los produzir no ritmo mais acelerado possível.
Esse é exatamente o “espírito do fordismo”. Produzir sempre mais para um mercado em eterna expansão e concorrência moderada por acordos cartel e leis governamentais protecionistas. Nesse caso, automação não significa desemprego.
Mas, e se o mercado parar de se expandir e a concorrência se tornar global e incontrolável? E se a tecnologia evolui a ponto de um robô de fato substituir completamente um operário? Esse foi exatamente o cenário mundial a partir da crise do petróleo dos anos 70.
Nesse caso seu objetivo será o oposto, ou seja, procurar produzir o mesmo número de peças com o menor número possível de operários. Produzir muito passa a ser um desperdício inaceitável. Tudo deve ser produzido apenas quando necessário (just-in-time). Esse é justamente o “espírito do toyotismo”.
Além disso, com o surgimento dos computadores, o mesmo raciocínio se aplica ao comércio e ao setor de serviços, cuja mecanização, antes era tecnicamente inviável.
Mas, o que acontece quando a economia volta a crescer? Seria o caso de retornar ao estilo de produção fordista, contratar milhares de funcionários e reduzir as margens de lucro? É lógico que não. Nesse caso é a hora de lucros “recordes” ou “nunca vistos antes”.
O resultado está nos números que, independente da evolução tecnológica, continuam a não mentir.
http://lauromonteclaro.sites.uol.com.br/

Notas:
“Lucros do Brasil apontam reação à turbulência” – Raymond Colitt - Financial Times – 25/05/2005.
“Renda volta a cair após três meses; desemprego fica estável, diz IBGE” - Janaina Lage - da Folha Online, no Rio – 25/05/2005.

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