quarta-feira, agosto 02, 2006

A economia política do futebol entre transformações e resistências

Entrevista com Anthony King [1]


Ao longo dos últimos anos, o futebol tem-se tornado um sector económico que directa e indirectamente afirma a sua crescente importância. No quadro de uma crescente mercadorização do jogo e da sua progressiva definição enquanto espectáculo, são inúmeras as transformações em questão. Anthony King, sociólogo e professor na Universidade de Exeter, é responsável por um esforço pioneiro de compreensão do alcance dessas transformações, como mostram os seus dois livros: The End of Terraces: The Transformation of English Football in the 1990s (Leicester University Press, Londres, 1998) e The European Ritual: Football and the New Europe (Ashgate, Aldershot, 2003). Convidando para os estudos sobre futebol os clássicos debates sobre a emergência do neoliberalismo ou o processo de fragilização dos poderes do Estado-nação, King revela a amplitude de significados das experiências em jogo no jogo de futebol. O mérito da sua análise, contudo, não reside apenas neste pioneirismo, mas também no facto de a sua investigação se apoiar num intenso trabalho de campo que lhe permitiu revelar o sentido e a acção dos próprios adeptos do jogo no tempo deste Novo Estádio.

– A história do estádio de futebol foi o ponto de partida para a sua abordagem ao futebol a partir das ciências sociais. Por que começou por aí?

Nas duas últimas décadas, apercebi-me de que as transformações que marcavam o estádio de futebol enquanto edifício transportavam significados que ultrapassavam o domínio do aparente e do aleatório. Elas incorporavam uma transformação geral da economia política do futebol, do futebol em si mesmo e até da sociedade inglesa em geral. O título do meu livro, The End of Terraces, que correspondeu à minha investigação de doutoramento – encontrávamo-nos então no início da década de 1990 –, procurava focar uma dimensão específica dessas transformações, o fim da zona do peão (os terraces). Aí encontravam-se em questão algumas dinâmicas fundamentais que sugeriam a oposição entre duas visões do futebol e – de forma paralela ainda que não mimética – da própria sociedade. A pequena transformação que consistiu em acabar com a zona do peão era pois o culminar de algumas linhas dominantes de evolução do futebol profissional nas últimas três décadas. Os terraces ofereciam-se como espaços simbólicos de uma determinada era de regulação no futebol, correspondente ao período do pós-guerra e à década de 1960, quando a experiência do futebol é marcada por uma certa cultura masculina a nível dos adeptos, por um lado, e por um determinado sistema de transferência de jogadores a nível da economia do jogo, por outro lado. Ao chegarmos aos anos 90, desde logo em Inglaterra, com o Relatório Taylor, estipulou-se o imperativo de uma completa renovação do futebol profissional inglês.

– Como caracterizaria a cultura desse espaço simbólico que, nos anos 90, é radicalmente transformada?

A vida na zona do peão era fortemente marcada por uma cultura de adepto muito masculina. Em regra, trata­‑se da cultura do futebol associada a um universo identificado no conceito de working class. Os vários estereótipos do hooligan, da tradição operária inglesa e da cultura popular encontram-se acomodados nesse espaço simbólico que é a zona do peão. A reacção dos que vivem o jogo na zona do peão à extinção desta, e a resposta ao fim do seu terreno simbólico – tal foi o que procurei estudar inicialmente. Observei em concreto como estes grupos processam, na sua dinâmica, a própria heterogeneização da classe operária, a sua dispersão física no quadro de uma nova economia global, a sua desconcentração espacial. O fim da zona do peão e a afirmação de uma classe operária cada vez mais heterogénea, com novas estratificações e com fronteiras menos definidas, são realidades que coincidem. Com a nova estratificação da classe operária surgem condições para uma especialização dos públicos do futebol e essa especialização expressa-se no seccionamento das bancadas dos estádios. Assistimos na sociedade e no futebol ao triunfo de uma desregulação pós­‑moderna ou tatcheriana. A cultura do adepto transforma-se no quadro das grandes transformações da estrutura socioprofissional da sociedade, com a elevada diferenciação das classes trabalhadoras, da nova lumpenproletarização aos “colarinhos brancos”. Os adeptos da zona do peão vão-se heterogeneizando ao longo das últimas décadas e reconstituem-se como uma nova classe trabalhadora fragmentada social e geograficamente. Alguns dos adeptos adoptam novos comportamentos culturais e sociais, procurando o futebol como um espectáculo cultural que se quer minimamente dignificado e não tanto associado à referência popular até então dominante. Esta preocupação é central para os media e para as novas empresas que, oriundas de diferentes ramos económicos, chegam ao mundo do futebol. O mesmo sucede com sectores sociais que antes mantinham as suas distâncias se não face ao futebol, pelo menos face ao estádio de futebol. Todas estas transformações confrontam-se com a persistência dos adeptos que se reivindicam da tradição popular até então dominante. E o que é interessante verificar é que, nestes tempos de heterogeneização, muitos destes adeptos parecem regressar ao termo working class para se identificarem, projectando aí a sua vontade de preservar a tal cultura masculina do jogo. Encontrei aqui, neste ponto, portanto, uma autonomia da cultura do adepto no quadro geral da sua posição de classe e do seu lugar económico e social. Foi aí que se centrou a minha investigação.

– De que formas se mostrava a resistência ao fim da zona do peão?

Para melhor compreender essa resistência, assinalemos um primeiro momento. A desregulação económica a que assistimos a partir do início da década de 1960 a nível do futebol, com o fim do tecto salarial para os jogadores profissionais, dá-se como um primeiro passo para uma mudança orgânica que leva à concentração de poder em cinco clubes de futebol em Inglaterra – o Manchester United, o Liverpool, o Arsenal, o Totenham e o Everton, sendo que estes dois ficaram agora para trás nessa luta pela hegemonia, surgindo um novo fenómeno económico como o Chelsea, financiado por um grande capitalista russo. É a partir do fim dessa política do tecto salarial e é com a entrada da televisão na economia do jogo que começa um processo que se afirmará espectacularmente na década de 1990. Na década de 1990, dá-se uma luta política entre as forças de desregulação económica – Estado, grandes media e grandes clubes – e as culturas dos adeptos que se sentem afectadas pelas transformações que se procura levar adiante. Uma das questões mais visíveis foi a referida questão do fim da zona do peão, zona que acabou sendo transformada em espaço de lugares sentados, o que por sua vez levou à diminuição da lotação dos estádios e ao aumento generalizado do preço dos bilhetes. E, para além desta questão, essa transformação criou uma cultura de espectáculo substancialmente diferente da cultura do peão no que se refere à forma de experimentação do jogo. O jogo tornou-se um espectáculo, algo para se ver sentado e não de pé. Criaram-se, neste contexto de transformação, vários movimentos de adeptos, sob a forma de associações desportivas independentes ou, mais notoriamente, através do chamado movimento das fanzines. Nesses movimentos, o conceito de working class ressurge a fim de reunir cultural e politicamente o que economicamente e socialmente foi sendo dispersado.

– Que balanço faz sobre essa resistência?

A questão central do ponto de vista da luta foi a da exigência da manutenção da zona do peão. A imposição de lugares sentados, desejada pelos clubes e estipulada pela lei, resulta da enorme dificuldade dos clubes e do Estado em lidarem com os rituais tradicionais do jogo. Isto é o que está por detrás da tão badalada questão de segurança. A cultura masculina dos adeptos produzira estádios onde é perigoso estar, criando um problema económico para os clubes numa época em que procuraram expandir a venda do jogo a novas classes e grupos sociais, trazendo as famílias e as mulheres para o estádio. Era economicamente necessário criar um estádio mais disciplinado. A crescente importância da racionalidade económica no futebol tem assim uma implicação disciplinar que é adversária da cultura dos adeptos. O estádio torna-se o lugar de uma luta social entre o Estado e os directores dos clubes. E, simultaneamente, decorre uma luta opondo de um lado o Estado e esses directores e, de um outro lado, certos grupos de adeptos. Neste confronto, os media desempenham um lugar decisivo ao se afirmarem como agentes que promovem o estereótipo do hooligan e tornam dominante a questão da segurança.

– Procurou-se então, de algum modo, retirar ao jogo a sua carga “popular”, “operária”, situando-o num plano mais respeitável, socialmente mais prestigiado. Em Portugal, com os novos estádios, também assistimos a um discurso que de alguma forma procurou a transformação do futebol como um produto culturalmente prestigiado, um espectáculo a consumir pelas famílias. A televisão assume que relevância nesta criação do jogo como espectáculo?

A importância da televisão é central. O processo de transformação do futebol inglês e do futebol europeu em geral não se compreende se não atendermos aos novos media, às novas concentrações de empresas mediáticas e ao seu alcance global. A televisão patrocina as mudanças e apoia a concentração de poder em alguns clubes. Para a televisão, os estádios eram lugares sujos do ponto de vista da imagem. E a violência tornava o jogo igualmente desagradável enquanto produto televisivo que se queria universalmente vendável. Havia que libertar o jogo dessa imagem num tempo em que ele era um novo produto potencial para os media. O estádio tinha de se tornar um novo lugar, com os códigos do bom produto televisivo.

– Refere que essa cultura dos adeptos da zona do peão, nos últimos anos, tem-se de algum modo recriado em ambientes como o pub...

À medida que o estádio se tornou restritivo e disciplinado, com o exercício de um maior controlo sobre estes grupos de adeptos que dominavam o espaço do estádio e com a sua exclusão económica, muito desses adeptos já não se importam em não ir ao estádio. Construíram novos espaços próprios no pub, a fim de recriarem uma atmosfera excessiva – quanto ao consumo de bebida, por exemplo – que era típica do antigo estádio e que é interdita no novo estádio. Ainda assim, no tempo do novo estádio, continua a ser importante o lastro daquela antiga atmosfera. As viagens acompanhando os clubes ao continente europeu, por exemplo, são óptimas oportunidades para recriar atmosferas antigas. Há adeptos que só vão ao estádio quando os jogos da sua equipa são na Europa.

– Como foram aceites pelos adeptos ingleses os jogadores estrangeiros que começaram a chegar ao futebol inglês nos últimos anos, em geral identificados com um estilo de jogo oposto ao paradigma da working class?

A chegada de jogadores estrangeiros à Premier League prendeu-se directamente com a Lei Bosman. Isso mudou a forma de jogar dos clubes ingleses. A chamada europeização do futebol inglês dá-se com a chegada de grandes estrelas do continente europeu. Eric Cantona, nomeadamente, mudou a forma de os adeptos do Manchester United pensarem o futebol, sobretudo porque ele se constituiu simultaneamente como símbolo da cultura tradicional e símbolo da nova economia política de futebol. A sua figura indomável é também a figura de estilo que representa o clube na Europa. A forma de os adeptos pensarem a própria Europa, e em concreto o lugar da cidade de Manchester na Europa, mudou. Em simultâneo com um isolamento nacional do clube num quadro de uma grande dinâmica de vitórias nas competições inglesas – um isolamento muito alimentado pela hostilidade dos adeptos dos restantes clubes para com o Manchester United –, afirma-se, no contexto da nova Liga dos Campeões, uma rede de ligação directa de laços competitivos entre o Manchester United e os principais clubes europeus. O clube tende a situar-se local e globalmente no quadro de uma nova ordem transnacional.

– Que traços principais caracterizam essa nova ordem transnacional?

Certas forças de desregulação criaram um desenvolvimento desigual no futebol, havendo uma concentração de poder nos grandes clubes europeus, que criam uma rede que ultrapassa as fronteiras nacionais tradicionais. Simultaneamente, a cultura dos adeptos é também parte activa desse processo. Desenvolveu-se então o que chamo um novo localismo. Não digo que as nações e os Estados e as ligas nacionais estão a terminar. Estou a dizer que paralelamente à velha ordem internacional surge uma nova ordem transnacional, com a renegociação das posições das ligas nacionais. E isso observa-se igualmente a nível da cultura dos adeptos. Há aí, aliás, um campo em aberto para a realização de etnografias dos adeptos, partindo da ideia do futebol como parte de uma nova rede de serviços que suporta uma nova economia, um novo conceito de tempo e uma nova experiência do espaço. Quando comecei a investigar o futebol, em Inglaterra, os sociólogos dedicavam­‑se acima de tudo ao hooliganismo. Parte desse interesse respondia genuinamente a um esforço sociológico de abordagem do fenómeno, parte tinha que ver com as preocupações do Estado em termos de segurança. De fora, de qualquer das formas, ficaram as grandes transformações económicas, culturais e sociais do jogo. É isso que procuro compreender.

[1] A presente entrevista foi originalmente publicada na revista Etnográfica, vol. IX (2), 2005, pp. 347-351. Cf. www.ceas.biz/etnografica.asp
Nuno Domingos, José Neves
http://resistir.info/

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