Em vez de se interrogarem sobre os mecanismos que impedem os filhos da imigração de um pleno gozo da igualdade de direitos e oportunidades, as elites fazem-lhes apelos no sentido de “se integrarem”. Como se os jovens “guetizados” dos bairros populares fossem responsáveis pelas discriminações de que são alvo. O êxito intelectual, económico, desportivo ou artístico de certos franco-magrebinos, mediaticamente explorado, opõe‑se assim às figuras ameaçantes dos “delinquentes” e dos “terroristas”...
Existem pequenas palavras que encerram mundos. Este “mas” com que nos cruzamos recorrentemente desde o início da década de 1990, em artigos cada vez mais numerosos nos grandes jornais franceses, merece que nos detenhamos sobre ele [1]. A sua história corresponde à articulação das representações mediáticas do “imigrante” e dos discursos dominantes sobre essa outra temática que lhe é indissociável, a “integração”.
No final de Janeiro de 2004, o jornal Le Parisien publicava uma série de seis artigos intitulados “Os muçulmanos que conseguiram integrar-se”, acompanhados de fotos dos visados. «Fato antracite, camisa de riscas azuis a condizer com uma gravata amarela, cabelo puxado atrás, Karim, nascido em Mantes-la-Jolie há 24 anos, acaba de abandonar um posto de técnico-comercial bem pago para criar a sua própria empresa» [2]. «A proprietária, Najia el-Mouna Cifi, 46 anos, parece saída de um reclame da Afflelou. De cabelos curtos, óculos rectangulares pretos, camisola escura e maquilhagem perfeita, a assistente social que trabalha com idosos sobressai nitidamente nesta decoração das “Mil e Uma Noites”» [3]. «Pêra cuidadosamente cortada, olhos amêndoa de uma intensidade penetrante, silhueta seca e porte altivo... Mesmo vestido com umas calças de ganga e uma simples camisola, Allam Farourou tem o ar de um príncipe berbere. Numa profissão como a sua, o seu carisma é um extraordinário trunfo. Este franco-argelino ensina electrónica no liceu profissional Marcel Cachin de Saint‑Ouen» [4].
Estes artigos são particularmente representativos de um tipo de discurso que se tem vindo a generalizar em todos os grandes periódicos desde o primeiro caso do véu islâmico em 1989. Associam, como é hábito, o sucesso da “integração” ao estatuto económico e social obtido, supostamente atestado por via de um certo mimetismo, e tido como o resultado de uma motivação essencialmente pessoal. O “integrado”, aquele que conseguiu alcançar o sucesso, parece seguir uma trajectória que deverá conduzi-lo a assemelhar-se com esse mito do “francês de origem”, “saído de um reclame da Afflelou”. Coloca-se desta forma uma máscara branca na figura do “integrado”.
Assente na ideia de que a excepção confirma a regra, esta técnica discursiva define por contraste aquele que não conseguiu “integrar-se”: pobre ou abandonado, aquele que não conseguiu “emancipar-se” dos múltiplos critérios culturais, religiosos, fenotípicos, que progressivamente o afastaram da “identidade francesa” acometendo‑o para a figura do “imigrante”. A personagem é assim necessariamente remetida para a situação da sua origem, que se supõe evocar uma situação de partida marcada pela não-integração: no primeiro exemplo, o estilo “quadro” e a vontade empreendedora são opostas a Mantes-la-Jolie, fazendo-se deste modo assentar a noção de “integração” sobre a ascensão económica. O segundo distingue entre o sucesso obtido e as “Mil e uma Noites”, ou seja aludindo a um plano cultural, religioso e geográfico. O último concebe esse sucesso mediante uma oposição entre o estatuto de professor e o liceu profissional de Saint-Ouen.
Para além desta subtileza semântica estabelecida a partir das noções de “islão”, de “Magrebe” e de “imigração”, estes artigos propõem uma imagem da “dificuldade do imigrante”, do “muçulmano” ou do “magrebino” em “integrar‑se” que subentende diversas mensagens: aquele que de facto deseja integrar‑se consegue‑o; os restantes optam ou dão-se por satisfeitos com uma situação de insucesso – «não, o motor da integração não parou de trabalhar».
ZIDANE, KHALED, DEBBOUZE... E KELKAL
O que verdadeiramente constitui uma novidade nestas figuras mediáticas como a do “imigrante burocrata”, do “técnico”, do “director de empresa”, do “professor”, ou do “autarca” é a função que nelas se manifesta, de enquadramento, e o discurso com o qual se articulam, da integração mediante discriminação positiva. A mediatização de Aïssa Dermouche, por exemplo, sucessivamente designado como “autarca muçulmano”, “autarca oriundo da imigração”, ou “modelo de integração” foi produzida através de uma remissão sistemática para imagens de “muçulmanos furiosos, contrários à lei sobre o véu e por isso islamitas”. Estas figuras do integrado associam-se a uma outra função mais antiga, que visa confrontar o desempenho do Outro.
A vitória da equipa francesa «Black-blancs-beurs» no Campeonato do Mundo de Futebol de 1998 serviu de suporte à apologia destas figuras particulares do sucesso entre “imigrantes”. Estas manifestavam‑se sob os traços da excelência desportiva devotada à bandeira tricolor. O discurso jornalístico apropriou-se destas figuras do “vencedor” opondo-as às dos “delinquentes” ou dos “terroristas”.
Os discursos da “integração” e as imagens do “integrado” são manipuladas pelos grandes meios de comunicação social não só como aval anti‑racista mas também como medida de compensação face a uma retórica da ameaça. Asseguram no entanto uma função central na manutenção dos estigmas da diferença e na sua transmissão quase hereditária que atinge uma parte dos franceses que são designados por “provenientes da imigração” e a quem se exige perpetuamente que “se integrem”.
Tendo vindo a proliferar desde 1995, este tipo de figura está circunscrito ao universo do espectáculo e é declinado com os traços do “cantor”, do “cómico”, da “vedeta”, ou do “desportista”. Ela consagra a imagem de um “imigrante” valorizado porque espectacular, o que normalmente significa dedicado, valoroso, servil e sobretudo de elevado rendimento. A combinação destas imagens “positivas” e “negativas” restitui uma duplicidade que afirma em suma: “O imigrante constitui regra geral uma ameaça, mas pode excepcionalmente integrar‑se, desde que essa integração se proceda no campo do espectáculo”. Trata-se, enfim, de reconhecer que uma certa representação positiva do “integrado” se impôs enquanto forma dominante de olhar a “imigração” sob um prisma favorável, procedendo do mesmo passo à relegação geral do grupo.
O que está aqui em jogo? O que se sugere afinal ao representar essencialmente o “sucesso” e a “integração” com os traços do “cantor popular”, do “emérito desportista” ou do “simpático humorista”? Exactamente o mesmo que nos discursos daqueles que visam representar a massa dos “imigrantes” como “estropiados”.
“Imigrante, mas conseguiu vencer”... Não se trata tanto de se opor “imigração” e “sucesso”, o que releva de um debate puramente ideológico e notoriamente nauseabundo; não se trata tão pouco de discutir o que deveria significar a noção de “sucesso”. É necessário compreender a irrupção de um certo discurso dominante sobre o “sucesso imigrante” em locais específicos e num determinado momento. Como se explica afinal que estas imagens, legitimadas por via de uma forma de justificação “bem-pensante”, de que uma “nova, nova esquerda” se reclama, emirjam e se radicalizem justamente a partir da reconversão desta última aos discursos securitários acerca da “imigração”, dos “pobres” e do “islão” [5]?
Estas imagens adquirem os seus títulos de nobreza nos grandes jornais durante o período preciso em que estes se apropriam da “imigração” para fazer dela um dos objectos principais dos seus artigos consagrados a tudo aquilo que poderia ser tomado como ameaça à identidade, à integridade, à segurança da população e à soberania do território francês. Este “mas” torna-se assim o eixo central de um pensamento político sobre a imigração, restringido à sua abordagem securitária.
Podemos fazer uma rápida genealogia das representações mediáticas da “imigração”. O declínio da figura do “trabalhador imigrante” é desencadeado a partir da imposição de freios e, depois, da interrupção da imigração laboral em 1973 e 1974. Até então, a imigração laboral pós-colonial havia fornecido ao patronato uma mão-de‑obra flexível e sujeita à exploração, destinada a ocupar os trabalhos menos valorizados numa economia de pleno emprego. Os grandes jornais propunham assim uma figura paternalista do “trabalhador imigrante” dócil e digno de dó, que podia deslizar periodicamente para o crime. Podemos falar de uma alteridade de “providência”. Esta imagem sucedia às representações da guerra colonial, em que o “imigrante-tipo” oscilava entre o “indígena” e o “fellagha” (guerrilheiro), ou seja, uma alteridade de guerra; e precedia aquela que actualmente nos ocupa. A economia caracterizada pelo desemprego de massas e o declínio do Estado social desestabilizaram as referências simbólicas, o olhar sobre o Outro, a percepção da ameaça, e forçaram os discursos dominantes a reformularem-se de forma a não serem totalmente desacreditados.
As figuras dominantes do “imigrante que teve sucesso” bem como as do inimigo imigrante, as de Zidane, de Khaled ou de Djamel Debbouze – e, num outro registo, as de Khaled Kelkal [6] ou de Zacarias Moussaoui [7] – participam desse investimento simbólico, sobre o corpo imigrante, enquanto ameaça económica social, política, religiosa e cultural.
A representação do Outro em geral e da “imigração” funciona como uma válvula para as crises simbólicas. O clássico ressurgimento de correlações lendárias – do tipo imigração = desemprego, imigração = insegurança, imigração = islão = desaculturação – não lhe é estranha. Constituindo normalmente a assinatura da extrema‑direita, elas perpassam actualmente, sob formas mais ou menos subtis, o conjunto dos discursos mediáticos, por todo o espectro político. Os artigos sobre o sucesso dos “imigrantes” parecem afirmar que, fora do espectáculo – ou seja, na sua forma mais alargada, na sociedade civil –, a imigração implica uma ameaça de natureza económica sobre o emprego (“o imigrante-desempregado”), de natureza política e social sobre o Estado e a população (“o imigrante-terrorista” ou “delinquente”), de natureza demográfica sobre o espaço (“o imigrante‑invasor”) e de natureza religiosa e cultural (“o imigrante‑muçulmano”...).
Sempre que a cultura colonial se viu confrontada com crises de legitimidade, ela recorreu a imagens do Outro e mobilizou personagens susceptíveis de representar os benefícios da colonização sobre os indígenas. Por exemplo, as figuras do “emir Abd El-Kader, submetido e iluminado” ou de “Joséphine Baker, diva indígena”, que arrastavam multidões, permitiram manter estes discursos sobre o sucesso dos indígenas na e pela República imperial.
O espectador pode aí ler uma imagem valorizada dele próprio, a imagem do “mestre”, do “civilizador”, do “conquistador”, ou do “professor”, do “educador”, do “pai”. Trata-se da mesma dinâmica que faz de um “Zidane, campeão do mundo” o suporte dos mitos de uma França pós-colonial, em que o imigrante ex‑colonizado poderá “alcançar o sucesso... se para tal procurar obter os meios”.
Tomemos essa figura do inimigo pós-colonial por excelência que é Khaled Kelkal, jovem, de origem magrebina, proveniente do subúrbio, delinquente que se tornou terrorista, muçulmano tornado islamita. A sua figura foi mobilizada com profusão pela imprensa em torno dos atentados de 1995. A maior parte dos meios de comunicação social erigiram-no em símbolo do medo contemporâneo, simbiose das caras do inimigo interno e do “traidor”: nele convergem a ameaça da “invasão imigrante” e da sua revolta, a conversão integrista dos muçulmanos e a insurreição da juventude empobrecida ou proveniente da imigração... Kelkal é a figura de crise de um discurso que faz passar a imigração de incómodo a ameaça. A imprensa nacional apropria-se dele como se se tratasse da prova incarnada de todas as suspeitas que ela própria desenhava sobre o corpo do “imigrante”.
A figura de Kelkal pertence a um registo de alteridade de guerra. Ela concilia no entanto narrativas sensivelmente idênticas às que perpassam os discursos da “integração”. As figuras da ameaça apoiam-se sobre a produção de um desejo de segurança, as do sucesso sobre um desejo mimético, que funciona como uma injunção à parecença. As imagens do “imigrante que venceu” não são o sinal de um progresso no que toca à representação das minorias visíveis: são o suporte de justificação e de difusão de uma mensagem securitária. Elas são nem mais nem menos que um dos pólos de um discurso susceptível de legitimar a guerra levada a cabo contra a “imigração”, a “delinquência”, a “juventude desfavorecicla” e o “islão”.
Mathieu Rigouste
http://infoalternativa.org/
[1] A partir de um inquérito sócio-histórico baseado num corpo de 1600 artigos do L’Express, Le Parisien, Le Monde e Minute, de 1995 a 2002. Cf. Mathieu Rigouste, Les Cadres médiatiques, sociaux et mythologiques de l’imaginaire colonial. La représentation de “l’immigration maghrébine” dans la presse française de 1995 à 2002, Paris X, 2002.
[2] Philippe Baverel, “Ces musulmans qui ont réussi leur intégration: «Grâce aux injustices, je me suis forgé un caractère»”, Le Parisien, 28 de Janeiro de 2004, p. 13.
[3] Claire Chantry, “Ces musulmans qui ont réussi leur intégration: «Je n’ai jamais été montré du doigt...»”, Le Parisien, 29 de Janeiro de 2004, p. 11.
[4] Charles de Saint-Sauveur, “Ces musulmans qui ont réussi leur intégration: «En s’acharnant on peut réussir»”, Le Parisien, 30 de Janeiro de 2004, p. 10.
[5] Podemos situar esta inversão em torno de 1997 e mais precisamente do colóquio de Villepinte, Cidades seguras para cidadãos livres (pdf, francês), de 24 e 25 de Outubro de 1997, no decurso do qual o Partido Socialista e, na sua esteira, a esquerda plural, decidem afrontar a direita no seu terreno privilegiado, fazendo da insegurança o eixo da sua campanha presidencial.
[6] Presumível responsável pelos atentados de 1995, abatido pela polícia em 29 de Agosto de 1995.
[7] Acusado nos Estados Unidos pelos atentados de 11 de Setembro de 2001.
Existem pequenas palavras que encerram mundos. Este “mas” com que nos cruzamos recorrentemente desde o início da década de 1990, em artigos cada vez mais numerosos nos grandes jornais franceses, merece que nos detenhamos sobre ele [1]. A sua história corresponde à articulação das representações mediáticas do “imigrante” e dos discursos dominantes sobre essa outra temática que lhe é indissociável, a “integração”.
No final de Janeiro de 2004, o jornal Le Parisien publicava uma série de seis artigos intitulados “Os muçulmanos que conseguiram integrar-se”, acompanhados de fotos dos visados. «Fato antracite, camisa de riscas azuis a condizer com uma gravata amarela, cabelo puxado atrás, Karim, nascido em Mantes-la-Jolie há 24 anos, acaba de abandonar um posto de técnico-comercial bem pago para criar a sua própria empresa» [2]. «A proprietária, Najia el-Mouna Cifi, 46 anos, parece saída de um reclame da Afflelou. De cabelos curtos, óculos rectangulares pretos, camisola escura e maquilhagem perfeita, a assistente social que trabalha com idosos sobressai nitidamente nesta decoração das “Mil e Uma Noites”» [3]. «Pêra cuidadosamente cortada, olhos amêndoa de uma intensidade penetrante, silhueta seca e porte altivo... Mesmo vestido com umas calças de ganga e uma simples camisola, Allam Farourou tem o ar de um príncipe berbere. Numa profissão como a sua, o seu carisma é um extraordinário trunfo. Este franco-argelino ensina electrónica no liceu profissional Marcel Cachin de Saint‑Ouen» [4].
Estes artigos são particularmente representativos de um tipo de discurso que se tem vindo a generalizar em todos os grandes periódicos desde o primeiro caso do véu islâmico em 1989. Associam, como é hábito, o sucesso da “integração” ao estatuto económico e social obtido, supostamente atestado por via de um certo mimetismo, e tido como o resultado de uma motivação essencialmente pessoal. O “integrado”, aquele que conseguiu alcançar o sucesso, parece seguir uma trajectória que deverá conduzi-lo a assemelhar-se com esse mito do “francês de origem”, “saído de um reclame da Afflelou”. Coloca-se desta forma uma máscara branca na figura do “integrado”.
Assente na ideia de que a excepção confirma a regra, esta técnica discursiva define por contraste aquele que não conseguiu “integrar-se”: pobre ou abandonado, aquele que não conseguiu “emancipar-se” dos múltiplos critérios culturais, religiosos, fenotípicos, que progressivamente o afastaram da “identidade francesa” acometendo‑o para a figura do “imigrante”. A personagem é assim necessariamente remetida para a situação da sua origem, que se supõe evocar uma situação de partida marcada pela não-integração: no primeiro exemplo, o estilo “quadro” e a vontade empreendedora são opostas a Mantes-la-Jolie, fazendo-se deste modo assentar a noção de “integração” sobre a ascensão económica. O segundo distingue entre o sucesso obtido e as “Mil e uma Noites”, ou seja aludindo a um plano cultural, religioso e geográfico. O último concebe esse sucesso mediante uma oposição entre o estatuto de professor e o liceu profissional de Saint-Ouen.
Para além desta subtileza semântica estabelecida a partir das noções de “islão”, de “Magrebe” e de “imigração”, estes artigos propõem uma imagem da “dificuldade do imigrante”, do “muçulmano” ou do “magrebino” em “integrar‑se” que subentende diversas mensagens: aquele que de facto deseja integrar‑se consegue‑o; os restantes optam ou dão-se por satisfeitos com uma situação de insucesso – «não, o motor da integração não parou de trabalhar».
ZIDANE, KHALED, DEBBOUZE... E KELKAL
O que verdadeiramente constitui uma novidade nestas figuras mediáticas como a do “imigrante burocrata”, do “técnico”, do “director de empresa”, do “professor”, ou do “autarca” é a função que nelas se manifesta, de enquadramento, e o discurso com o qual se articulam, da integração mediante discriminação positiva. A mediatização de Aïssa Dermouche, por exemplo, sucessivamente designado como “autarca muçulmano”, “autarca oriundo da imigração”, ou “modelo de integração” foi produzida através de uma remissão sistemática para imagens de “muçulmanos furiosos, contrários à lei sobre o véu e por isso islamitas”. Estas figuras do integrado associam-se a uma outra função mais antiga, que visa confrontar o desempenho do Outro.
A vitória da equipa francesa «Black-blancs-beurs» no Campeonato do Mundo de Futebol de 1998 serviu de suporte à apologia destas figuras particulares do sucesso entre “imigrantes”. Estas manifestavam‑se sob os traços da excelência desportiva devotada à bandeira tricolor. O discurso jornalístico apropriou-se destas figuras do “vencedor” opondo-as às dos “delinquentes” ou dos “terroristas”.
Os discursos da “integração” e as imagens do “integrado” são manipuladas pelos grandes meios de comunicação social não só como aval anti‑racista mas também como medida de compensação face a uma retórica da ameaça. Asseguram no entanto uma função central na manutenção dos estigmas da diferença e na sua transmissão quase hereditária que atinge uma parte dos franceses que são designados por “provenientes da imigração” e a quem se exige perpetuamente que “se integrem”.
Tendo vindo a proliferar desde 1995, este tipo de figura está circunscrito ao universo do espectáculo e é declinado com os traços do “cantor”, do “cómico”, da “vedeta”, ou do “desportista”. Ela consagra a imagem de um “imigrante” valorizado porque espectacular, o que normalmente significa dedicado, valoroso, servil e sobretudo de elevado rendimento. A combinação destas imagens “positivas” e “negativas” restitui uma duplicidade que afirma em suma: “O imigrante constitui regra geral uma ameaça, mas pode excepcionalmente integrar‑se, desde que essa integração se proceda no campo do espectáculo”. Trata-se, enfim, de reconhecer que uma certa representação positiva do “integrado” se impôs enquanto forma dominante de olhar a “imigração” sob um prisma favorável, procedendo do mesmo passo à relegação geral do grupo.
O que está aqui em jogo? O que se sugere afinal ao representar essencialmente o “sucesso” e a “integração” com os traços do “cantor popular”, do “emérito desportista” ou do “simpático humorista”? Exactamente o mesmo que nos discursos daqueles que visam representar a massa dos “imigrantes” como “estropiados”.
“Imigrante, mas conseguiu vencer”... Não se trata tanto de se opor “imigração” e “sucesso”, o que releva de um debate puramente ideológico e notoriamente nauseabundo; não se trata tão pouco de discutir o que deveria significar a noção de “sucesso”. É necessário compreender a irrupção de um certo discurso dominante sobre o “sucesso imigrante” em locais específicos e num determinado momento. Como se explica afinal que estas imagens, legitimadas por via de uma forma de justificação “bem-pensante”, de que uma “nova, nova esquerda” se reclama, emirjam e se radicalizem justamente a partir da reconversão desta última aos discursos securitários acerca da “imigração”, dos “pobres” e do “islão” [5]?
Estas imagens adquirem os seus títulos de nobreza nos grandes jornais durante o período preciso em que estes se apropriam da “imigração” para fazer dela um dos objectos principais dos seus artigos consagrados a tudo aquilo que poderia ser tomado como ameaça à identidade, à integridade, à segurança da população e à soberania do território francês. Este “mas” torna-se assim o eixo central de um pensamento político sobre a imigração, restringido à sua abordagem securitária.
Podemos fazer uma rápida genealogia das representações mediáticas da “imigração”. O declínio da figura do “trabalhador imigrante” é desencadeado a partir da imposição de freios e, depois, da interrupção da imigração laboral em 1973 e 1974. Até então, a imigração laboral pós-colonial havia fornecido ao patronato uma mão-de‑obra flexível e sujeita à exploração, destinada a ocupar os trabalhos menos valorizados numa economia de pleno emprego. Os grandes jornais propunham assim uma figura paternalista do “trabalhador imigrante” dócil e digno de dó, que podia deslizar periodicamente para o crime. Podemos falar de uma alteridade de “providência”. Esta imagem sucedia às representações da guerra colonial, em que o “imigrante-tipo” oscilava entre o “indígena” e o “fellagha” (guerrilheiro), ou seja, uma alteridade de guerra; e precedia aquela que actualmente nos ocupa. A economia caracterizada pelo desemprego de massas e o declínio do Estado social desestabilizaram as referências simbólicas, o olhar sobre o Outro, a percepção da ameaça, e forçaram os discursos dominantes a reformularem-se de forma a não serem totalmente desacreditados.
As figuras dominantes do “imigrante que teve sucesso” bem como as do inimigo imigrante, as de Zidane, de Khaled ou de Djamel Debbouze – e, num outro registo, as de Khaled Kelkal [6] ou de Zacarias Moussaoui [7] – participam desse investimento simbólico, sobre o corpo imigrante, enquanto ameaça económica social, política, religiosa e cultural.
A representação do Outro em geral e da “imigração” funciona como uma válvula para as crises simbólicas. O clássico ressurgimento de correlações lendárias – do tipo imigração = desemprego, imigração = insegurança, imigração = islão = desaculturação – não lhe é estranha. Constituindo normalmente a assinatura da extrema‑direita, elas perpassam actualmente, sob formas mais ou menos subtis, o conjunto dos discursos mediáticos, por todo o espectro político. Os artigos sobre o sucesso dos “imigrantes” parecem afirmar que, fora do espectáculo – ou seja, na sua forma mais alargada, na sociedade civil –, a imigração implica uma ameaça de natureza económica sobre o emprego (“o imigrante-desempregado”), de natureza política e social sobre o Estado e a população (“o imigrante-terrorista” ou “delinquente”), de natureza demográfica sobre o espaço (“o imigrante‑invasor”) e de natureza religiosa e cultural (“o imigrante‑muçulmano”...).
Sempre que a cultura colonial se viu confrontada com crises de legitimidade, ela recorreu a imagens do Outro e mobilizou personagens susceptíveis de representar os benefícios da colonização sobre os indígenas. Por exemplo, as figuras do “emir Abd El-Kader, submetido e iluminado” ou de “Joséphine Baker, diva indígena”, que arrastavam multidões, permitiram manter estes discursos sobre o sucesso dos indígenas na e pela República imperial.
O espectador pode aí ler uma imagem valorizada dele próprio, a imagem do “mestre”, do “civilizador”, do “conquistador”, ou do “professor”, do “educador”, do “pai”. Trata-se da mesma dinâmica que faz de um “Zidane, campeão do mundo” o suporte dos mitos de uma França pós-colonial, em que o imigrante ex‑colonizado poderá “alcançar o sucesso... se para tal procurar obter os meios”.
Tomemos essa figura do inimigo pós-colonial por excelência que é Khaled Kelkal, jovem, de origem magrebina, proveniente do subúrbio, delinquente que se tornou terrorista, muçulmano tornado islamita. A sua figura foi mobilizada com profusão pela imprensa em torno dos atentados de 1995. A maior parte dos meios de comunicação social erigiram-no em símbolo do medo contemporâneo, simbiose das caras do inimigo interno e do “traidor”: nele convergem a ameaça da “invasão imigrante” e da sua revolta, a conversão integrista dos muçulmanos e a insurreição da juventude empobrecida ou proveniente da imigração... Kelkal é a figura de crise de um discurso que faz passar a imigração de incómodo a ameaça. A imprensa nacional apropria-se dele como se se tratasse da prova incarnada de todas as suspeitas que ela própria desenhava sobre o corpo do “imigrante”.
A figura de Kelkal pertence a um registo de alteridade de guerra. Ela concilia no entanto narrativas sensivelmente idênticas às que perpassam os discursos da “integração”. As figuras da ameaça apoiam-se sobre a produção de um desejo de segurança, as do sucesso sobre um desejo mimético, que funciona como uma injunção à parecença. As imagens do “imigrante que venceu” não são o sinal de um progresso no que toca à representação das minorias visíveis: são o suporte de justificação e de difusão de uma mensagem securitária. Elas são nem mais nem menos que um dos pólos de um discurso susceptível de legitimar a guerra levada a cabo contra a “imigração”, a “delinquência”, a “juventude desfavorecicla” e o “islão”.
Mathieu Rigouste
http://infoalternativa.org/
[1] A partir de um inquérito sócio-histórico baseado num corpo de 1600 artigos do L’Express, Le Parisien, Le Monde e Minute, de 1995 a 2002. Cf. Mathieu Rigouste, Les Cadres médiatiques, sociaux et mythologiques de l’imaginaire colonial. La représentation de “l’immigration maghrébine” dans la presse française de 1995 à 2002, Paris X, 2002.
[2] Philippe Baverel, “Ces musulmans qui ont réussi leur intégration: «Grâce aux injustices, je me suis forgé un caractère»”, Le Parisien, 28 de Janeiro de 2004, p. 13.
[3] Claire Chantry, “Ces musulmans qui ont réussi leur intégration: «Je n’ai jamais été montré du doigt...»”, Le Parisien, 29 de Janeiro de 2004, p. 11.
[4] Charles de Saint-Sauveur, “Ces musulmans qui ont réussi leur intégration: «En s’acharnant on peut réussir»”, Le Parisien, 30 de Janeiro de 2004, p. 10.
[5] Podemos situar esta inversão em torno de 1997 e mais precisamente do colóquio de Villepinte, Cidades seguras para cidadãos livres (pdf, francês), de 24 e 25 de Outubro de 1997, no decurso do qual o Partido Socialista e, na sua esteira, a esquerda plural, decidem afrontar a direita no seu terreno privilegiado, fazendo da insegurança o eixo da sua campanha presidencial.
[6] Presumível responsável pelos atentados de 1995, abatido pela polícia em 29 de Agosto de 1995.
[7] Acusado nos Estados Unidos pelos atentados de 11 de Setembro de 2001.
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