quarta-feira, agosto 02, 2006

O povo dispensável do Líbano

O mais chocante no assalto de Israel ao Líbano é a precisão desapaixonada com que o bombardeamento foi executado. De ponte para silo, de silo para central eléctrica, de central eléctrica para fábrica, de fábrica para mesquita, de mesquita para hospital, de hospital para edifício de apartamentos, cada um dizimado com a calma desdenhosa de um cirurgião a remover um tumor cancerígeno. Não sentimos qualquer sentido de raiva no comportamento de Israel, apenas a selvageria calculada de homens que encaram como seu dever decapitar sistematicamente toda uma civilização e deixá-la em ruínas.A destruição do Líbano é o trabalho de robots, não de homens. Insensíveis, sem remorsos, feixes de pele e osso.Ninguém poderia ter feito o que estes homens fizeram em apenas sete dias e continuar a fazer parte da família humana a que você e eu pertencemos.Até agora, não há indicação de que os soldados israelenses capturados tenham sido agredidos ou maltratados. O arrasamento de uma metrópole outrora agitada e próspera foi executado enquanto as vítimas certamente ainda estão enfiadas em algum desconhecido lugar escondido. Não há objectivo para a turbulência de Israel, os termos da libertação podiam ter sido negociados numa "troca de prisioneiros" como fizeram muitas vezes antes. O bombardeamento é puramente um acto de violência gratuita destinado a destruir uma nação que mal se recuperou de 18 anos de ocupação israelense. Agora o Líbano retornou à Idade da Pedra.Por que?Terão os soldados sido torturados ou abusados como teriam sido sob a custódia americana ou israelense?Espero que não. Espero que estejam a ser bem tratados. Espero que sejam soltos e possam passear em direcção ao sul através dos escombros e das partes de corpos esparramados de modo a que eles possam apreciar o que o seus líderes fizeram em seus nomes. Espero que sejam libertados de modo que o Hezbollah possa clamar por uma vitória moral sobre as forças da desumanidade e do cinismo que infectam as poltronas do governo em Tel Aviv e Washington.Seja qual for a oportunidade que possa ter havido para a paz, ela se foi agora. Temos de ser realistas. A próxima geração de muçulmanos desprezará a nós e a tudo o que representamos. Nenhuma capital ou cidade estará segura. Os EUA e Israel estão a semear dentes de dragão por todo o Médio Oriente e a sua colheita sangrenta virá nas décadas pela frente. Cheney estava certo, esta guerra poderia perdurar por 50 anos e não acabar no nosso tempo de vida.O Líbano foi a última gota. Ele prova que era verdade tudo o que disse Bin Laden: "Eles vieram tomar sua terra e seus recursos; eles vieram desonrar suas mulheres e desgraçar sua cultura; eles vieram humilhá-lo em frente aos seus filhos e amontoar ignomínia sobre sua religião".Onde é que ele estava errado?O escritor Pepe Escobar disse isto melhor: "O efeito da barragem bombista israelense será atrair ondas mais novas e mais caudalosas de muçulmanos moderados para o Islão político e radical. A percepção da rua árabe — assim como para a maior parte dos 1,4 mil milhões de muçulmanos do mundo — foi reforçada: o eixo EUA-Israel parece ter uma licença para matar árabes com impunidade" (Pepe Escobar, "Leviathan Run Amok" , Asia Times). Escobar está certo. As vidas de muçulmanos nada significam. Eles tornaram-se o povo "dispensável" cuja segurança simplesmente não importa. A sua carnificina maciça aparece regularmente no noticiário da noite enquanto estórias de cortar o coração são desfiadas acerca do sofrimento de pais e mães israelenses que perderam seres amados em ataques retaliatórios.Os muçulmanos não têm mães e pais? Será tão importante demonizá-los que devem ser despojados de todo traço de humanidade, incluindo pais?Para onde irão estas pessoas "dispensáveis" quando os recursos do mundo continuam a secar e as suas pátrias são cada vez mais assediadas?Indonésia, Somália, Arábia Saudita, Irão, Síria, Líbia, Sudão, Afeganistão; para onde irão todos eles? Serão eles colocados em campos de refugiados ou viverão como prisioneiros na sua própria terra; serão alvejados como cães ou levantar-se-ão e combaterão até o fim?Quantos escolherão aderir às fileiras crescentes de jihadis e grupos de resistência a conspirar e planear represálias do modo que puderem? Quantos considerarão que é melhor morrer de pé do que viver de joelhos?O Líbano preparou o caminho para um século de guerra. Foi arrasado e o seu povo evacuado para ajustar contas com o Hezbollah e criar uma zona tampão no flanco norte de Israel. As vidas arruinadas não têm consequência. A cidade será reconstruída com empréstimos do Banco Mundial e do FMI e o trabalho será contratado pela Halliburton e pela Bechtel. Já vimos tudo isto antes; a destruição absoluta de uma sociedade de modo a que possa ser colocada nas mãos dos empreiteiros globais. O Líbano não será excepção.Agora que o flanco norte de Israel foi "pacificado" Olmert pode voltar seus olhos para leste, em direcção a Damasco onde o oftalmologista Bashar Al-Assad terá de ser derrubado a fim de assegurar caminhos para oleodutos do norte do Iraque até Haifa. Deste modo Israel tornar-se-á um grande jogador nas guerras por recursos deste século e um líder na região.O jogo do xadrez geopolítico está a desdobrar-se tal como fora escrito anos atrás pelos neoconservadores que na altura haviam sido considerados como radicais e lunáticos. Ninguém está a rir agora. Os 12 aldeões que foram massacrados ontem em Srifa pelas bombas israelenses não estão a rir-se nem os pais das 11 crianças que foram vaporizadas por um míssil israelense enquanto tomavam banho num canal no campo de refugiados de Oasmia. Isto é o cálculo da miséria humana; a matança deliberada de pessoas inocentes para alcançar objectivos políticos. Não é diferente do terrorismo. Bush e Olmert são dois homens que têm confiança absoluta na capacidade da violência para modelar o comportamento. Eles não estão preocupados com os rios de sangue que alimentam seus sonhos. Afinal de contas, trata-se de pessoas "dispensáveis".

Mike Whitney
http://resistir.info/

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