segunda-feira, agosto 21, 2006

O silêncio ensurdecedor dos jornalistas portugueses

Entre a falta de coragem e o acomodamento, em tempo de “informação espectáculo”, os jornalistas portugueses – aqueles que poderiam ainda merecer esse nome – dão-nos o espectáculo patético da sua agonia.

Há quem sustente que já não há jornalismo, como o teórico situacionista francês Guy Debord. Já em 1988, no seu livro Comentários à Sociedade do Espectáculo, ele escalpelizara o processo de transformação da função informativa e formativa dos médias. Esse processo teria acabado por edificar um sistema, altamente profissionalizado, tecnológico e capitalizado, que embebeu totalmente o nosso quotidiano naquilo que designa por «espectáculo mediático integrado» – uma forma de fabricar, para desvitalizar as nossas mentes, uma ficção que tem por função ser a nossa realidade, permanente, hegemónica e global. E já nessa altura Debord realçava que o mais importante e grave não se situava na evolução tecnológica dos médias, mas sim no facto de que esse sistema proto-totalitário do «espectacular integrado» já produzira toda uma geração submetida às suas leis. Esta visão, que chegou ao meu conhecimento através dum excelente trabalho do jornalista Rui Pereira (que se espera ver um dia publicado) [1], parte, portanto, do princípio de que já não há jornalismo nem jornalistas, tal como os entendíamos e muita gente ainda entende. Mais: como escreve Rui Pereira, «as potencialidades [da televisão] no domínio da domesticação social superaram sempre e em muito os seus putativos usos de difusora de conhecimentos problematizadores ou de instigadora de possíveis gestos de dissidência cultural e de transgressão intelectual».

UM CERTO JORNALISMO HUMANISTA

Parece-me, todavia, legítimo perguntarmos o que é feito dos jornalistas e do jornalismo que outrora representaram algo de emancipador nas nossas vidas. No tempo do exílio, antes de 1974, ciclicamente discutíamos a questão da “objectividade” e da “isenção” do “bom” jornalismo, em geral em torno dos exemplos que nos estavam mais próximos: o Le Monde, a BBC e o New York Times. Os que tínhamos convicções comunistas ou marxistas, sustentávamos – creio que com razão – que não existe objectividade nem isenção que escape ao filtro dos interesses de classe. Mas aceitávamos o papel positivo de um certo jornalismo “de qualidade”, o qual, duma forma geral, em nome de princípios como a democracia e os direitos humanos, se esforçava por dar à opinião pública um retrato honesto e quanto possível verdadeiro da realidade dos factos. Uma deontologia específica, cujo símbolo vivo, em França, era Hubert Beuve-Méry, fundador do Le Monde, então uma “sociedade de jornalistas” autónoma do grande capital, aliás pouco dependente, nessa época, da própria publicidade. Sem esquecermos que há nisto alguma relatividade, não devemos subestimar, sob pena de ingratidão e de inverdade, o papel desse jornalismo em grandes causas da esquerda do séc. XX, como o antifascismo, o anticolonialismo, os direitos cívicos dos negros estadunidenses, a luta contra a guerra do Vietname, etc.. O “bom” jornalismo, dizia-se, era um “quarto poder”, autónomo, que exercia um papel crítico e de controlo dos outros poderes: o político, o económico e o judicial-repressivo.

O MUNDO MEDIÁTICO MUDOU, O SEU PAPEL NA SOCIEDADE TAMBÉM

Ao longo do tempo transcorrido, e mais intensa ou rapidamente nuns países do que noutros, vários factores foram transformando profundamente o mundo mediático e a sua específica função no quotidiano das pessoas. À medida que, pelo mundo fora, se foram operando as grandes concentrações do capital, a grande burguesia mundial percebeu o seu interesse em dominar o mundo mediático; a concorrência e o peso da publicidade na gestão dos médias tornaram inevitável que eles fossem, progressivamente, parar às mãos dos conglomerados capitalistas transnacionais. Por outro lado, os governos, dependentes do poder económico mas também dependentes da manutenção de uma imagem pública favorável, passaram a encarar as televisões e rádios públicas e a imprensa estatal ou para-estatal como instrumentos essenciais de governação. Por fim, numa fase posterior, já como consequência da avalanche neoliberal pós-choque petrolífero de 73, os próprios média públicos foram sendo progressivamente privatizados, sendo hoje residuais e dependentes dos privados – se repararmos, esta foi uma das primeiras aplicações do conceito de “serviço público” a morrer, não passando este, hoje, de conversa fiada ocasional de quadros políticos ou mediáticos.
Facto é que, com a privatização e a concentração, e a desenfreada concorrência entre eles, os médias deixaram de ter, mesmo que esporádica ou temporariamente, quaisquer condições de autonomia informativa. Dum ponto de vista marxista, o papel dos médias na imposição da ideologia dominante e nas tácticas políticas da burguesia tornou-se mais explícito e mais intenso.

JORNALISTAS EMBEDDED (OU “NA CAMA COM”)

O mundo pós-queda do muro de Berlim, este mundo mais declaradamente obsceno, genocida e mafioso, o mundo da ditadura do conglomerado finança-bomba-droga, o mundo da liberdade das raposas nos galinheiros, conseguiu impor o seu discurso único com a indispensável ajuda dos jornalistas, devidamente enquadrados no mundo empresarial mediático. O que nos deve preocupar não são os que gostam disso, os que lucram com isso, os que têm o preço na montra – esses são, nos dias de hoje, o que eram Moreira das Neves, Pedro Moutinho, José Augusto ou Manuel Múrias antes de 1974. São claramente megafones da ditadura, que nem pestanejam perante os terríveis crimes dos impérios, para quem mais ou menos 100.000 mortos, mais ou menos um milhão de desempregados, mais ou menos umas megatoneladas de urânio e uns milhões de cancros não aquecem nem arrefecem. São corruptos e capazes de tudo: de mentir, de caucionar os piores crimes, de censurar as informações, de caluniar e de provocar, sob a capa rota da “independência”, da “isenção”, e de palavras vagas ou secretas como “a nossa fonte”, “o alegado criminoso”, “segundo os comentadores”, etc. – nas mãos deles, puras muletas para fins de impunidade judicial.
Mas, talvez mais grave que o papel desses “jornalistas”, é o dos que se vendem muito mais discretamente, os que não estão na montra, mas cujo silêncio é precioso para que o sistema funcione bem. Digo que “se vendem” porque, nas profissões, como esta, que deveriam implicar um particular compromisso ético ou deontológico com a sociedade – como é, por exemplo, o caso dos médicos, dos artistas e escritores, dos professores e de certos cientistas –, a cumplicidade por inacção ou por omissão é quase tão grave como a dos cúmplices directos. Esta questão colocou-se-nos claramente, aos músicos resistentes ao fascismo, logo a seguir à breve “primavera marcelista” de 70-71, quando o governo passou a impor a censura prévia aos discos de canções (que até então só eram censurados após a edição, tal como os livros e outras publicações não periódicas). Que fazer?, discutíamos. O meu segundo álbum de canções, de parceria com o escritor Álvaro Guerra, Crónica, de 1972, nunca foi publicado porque eu não admiti os cortes que a censura lhe fez. E, como sabíamos “como se faz um disco”, decidimos passar a fazer (também) discos clandestinos ou marginais. Foi o caso da Ronda do Soldadinho, de que conseguimos meter 2 ou 3 mil exemplares em Portugal, que se venderam a 20 escudos por baixo das mesas de café. Assim se tentou, mal que bem, assegurar a função social das canções em disco.

POR UM JORNALISMO DE RESISTÊNCIA

Quando se acredita em algo, quando se é honesto e se têm valores, há sempre três níveis de resistência em condições adversas: a legalidade, a alegalidade (a que podemos chamar marginalidade), e, se necessário, a ilegalidade (ou clandestinidade).
Ora – através da internet e não só – se fizermos algum esforço para, fora da comunicação social dominante, que é omissa e mentirosa, ir obtendo alguma informação credível sobre o que se passa no mundo, temos a possibilidade de aceder ao inestimável contributo de alguns jornalistas – todos estrangeiros – que ainda são jornalistas porque pagam o preço do despedimento, da marginalidade, da perseguição e por vezes da vida. Jornalistas íntegros e corajosos que preferem passar fome e arriscar a vida (embora também tenham estômago e filhos lá em casa) a serem roldanas, mesmo que silenciosas, da tenebrosa máquina de propaganda do Império. John Pilger, Danny Schechter, Kurt Nimmo, Robert Fisk, Dahr Jamail, Thierry Meyssan, Michel Collon, o colectivo Indymedia e tantos outros, para não se venderem, para não serem terroristas mediáticos, têm criado jornais, revistas, sites alternativos, redes subterrâneas de informação. Lutam para continuarem a ser jornalistas. E pagam o preço que têm de pagar. Dão provas de que prefeririam andar a lavar escadas ou a apanhar o lixo, a terem de exercer a sua profissão à custa do silêncio, da subserviência ou da comodidade.
O papel dos média é, hoje, tão importante como arma da ditadura capitalista, que a profissão de jornalista não se compadece com meios-termos. Diana Andringa queixa-se de que, agora, há «jornalistas a dias», que os seus empregos são precários. Discordo: ou se é jornalista, ou se é outra coisa qualquer (mesmo que se passe por jornalista). É confrangedor verificar que, no programa Clube de Jornalistas (RTP2), Ribeiro Cardoso, Estrela Serrano ou o próprio Professor Fernando Correia são incapazes, como os seus colegas, de expor, profunda e radicalmente, a responsabilidade dos jornalistas no mundo mediático de hoje. Não assumem que, de facto, já não é possível fazer verdadeiro jornalismo nos grandes médias. Porque o que nos ensinaram é que ser jornalista é ter por profissão apurar a verdade dos factos e comunicá-la aos seus concidadãos, pelos meios necessários para o efeito. Paul Nizan (1905-1940), jornalista comunista, disse que os jornalistas devem ser os “historiadores do imediato”, com o mesmo espírito de rigor na busca e na revelação da verdade dos factos que os grandes historiadores. Aqui, portanto, não se pode distinguir entre o jornalista e o cidadão. Há, ou deveria haver, na própria designação de “jornalista”, uma espécie de contrato moral entre o profissional da comunicação, que é um cidadão, e os cidadãos que são os seus leitores. Temos todo o direito de os interpelar e de lhes perguntar o que andam a fazer com esse contrato.

ONDE ESTÃO OS JORNALISTAS PORTUGUESES? O QUE ANDAM A FAZER?

Ora, no tempo da resistência antifascista e anticolonial, habituámo-nos a admirar um punhado de jornalistas (dos jornais e da rádio) que estavam sempre na brecha dos acontecimentos, tentando furar a censura, inventando maneiras, truques, linguagens e outros expedientes para nos transmitir a mensagem: foi o tempo de Adelino Gomes, Mário Mesquita, Joaquim Furtado, Luis Filipe Costa, José Nuno Martins, Rui Pedro, João Paulo Guerra e tantos outros. Mas, exceptuando raríssimos episódios, como a brilhante desmontagem­‑desmentido do “arrastão de Carcavelos” feita, via internet, por Diana Andringa e alguns colegas seus [2], o silêncio actual desses jornalistas portugueses é ensurdecedor. E não basta dizer que “estão na prateleira”. Nem basta pretenderem que estão a lutar “lá dentro” – a lutar por quê, perguntar-se-á, se não passa nada cá para fora? E também não basta que me digam que os jornalistas não são heróis, que têm de viver e que não podem fazer grande coisa porque o movimento social que os pudesse transportar não existe. Quando não há movimento social, resta-nos (se tivermos princípios) a resistência, se necessário a rebelião.
Mas entre os jornalistas há corporativismo a mais, e autoquestionamento a menos. Há falta de compromisso com o público e com a verdade. Falta de coragem e de ousadia. Não vemos surgir iniciativas jornalísticas marginais e críticas. Não se ouvem os gritos – de um jornalista que seja! – a denunciar o mundo orwelliano em que trabalha. Querem convencer-se de que os empregos dos jornalistas são empregos como os outros. Mas não são. Eles sabem escrever e comunicar, conhecem as técnicas e os canais da profissão – nós, não. Pior: eles sabem que, lá fora, há jornalistas a resistir. E isso é, para os jornalistas, uma responsabilidade terrível: não podem dizer que não sabiam, não podem dizer que não sabem como fazer, nem podem dizer que não podem fazer nada. Se são consciências acordadas, são consciências sem descanso. Se estão a dormir, nós estamos fartos de esperar que acordem.

[1] Rui Pereira, Intersecções perversas – O ambíguo e o umbigo no espectáculo comunicacional, Maio 2006 (n. IA).
[2] Ver http://www.eraumavezumarrastao.net (n. IA).

José Mário Branco
http://infoalternativa.org/midia/midia042.htm

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