Entrevista a Susan George
Susan George, especialista nas distorções e desigualdades ligadas à globalização, calcula que, em 2004, o Sul transferiu para o Norte 274 mil milhões de dólares (saldo das transações); apenas os pagamentos de serviços da dívida chegaram a 374 mil milhões de dólares.
Presidente do Conselho de Administração do Transnational Institute, da Holanda, a intelectual norte‑americana radicada na França, Susan George, não deixa muitas dúvidas: «em lugar do Norte estar a ajudar o Sul, é o Sul que está a financiar o Norte». Autora de um contundente libelo contra a globalização neoliberal, O relatório Lugano (Boitempo Editorial, 2002), George é uma das principais ideólogas do movimento ATTAC. Para ela, se for mantida a actual situação de dívidas colossais e impagáveis por parte dos países em desenvolvimento para as nações ricas, não há muitas esperanças de os países em desenvolvimento crescerem a taxas realmente significativas.
Em entrevista à Carta Maior, a pesquisadora contabiliza 90 crises causadas pelo sistema financeiro entre 1990 e 2002 e demonstra que o actual funcionamento dos mercados tem gerado crescentes desigualdades entre as pessoas e nações. Ela explica que hoje, a forma de se acumular riquezas «é fazer dinheiro de dinheiro». E acrescenta que a concentração não é apenas deste capital gerado a partir de investimentos não produtivos, mas de poder. Com base no actual quadro mundial, Susan analisa que «no capitalismo, não há democracia».
A pesquisadora participou do seminário “Pobreza e Desenvolvimento no Contexto da Globalização”, organizado pelo Centro Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento no Rio [de Janeiro]. Para ela, os países em desenvolvimento precisam actuar conjuntamente para que os seus débitos sejam renegociados. A pesquisadora também considera fundamental que sejam adoptados controles das movimentações de capitais especulativos nesses países.
Susan entende que a união entre as nações mais pobres é tão importante quanto a organização e a actuação colectiva da sociedade. A conscientização e mobilização das pessoas, além de processos como o Fórum Social Mundial, levam‑na a afirmar que «há mais esperança que há dez anos». Mesmo apontando aspectos positivos, ela encerra a entrevista com um alerta: «o mundo está a desperdiçar muito rapidamente as suas chances de ser justo».
Vivemos um momento em que o Brasil e outros países voltam a colocar a ideia do desenvolvimento como uma prioridade – muitas vezes a qualquer custo. Isso é viável?
A dívida do Sul reduz completamente essa possibilidade. De acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Brasil irá gastar mais de metade de tudo o que obteve com as suas exportações somente para pagar os serviços da dívida neste ano. Então, restarão apenas 45% dos recursos para toda a população brasileira. Isso claramente não será suficiente.
Os países do Sul precisam realizar uma acção conjunta para dizer que não pagarão todas as suas dívidas, que querem renegociar os débitos. As transferências líquidas do Sul para o Norte chegaram a 274 mil milhões de dólares em 2004 [valor resultante da soma dos pagamentos de serviços da dívida, remessas de lucros e capital repatriado subtraída das remessas de migrantes para o Sul e de programas de desenvolvimento patrocinados nestes países pelo Norte]. Em outras palavras, a cada ano o Sul está a pagar ao Norte o equivalente a três Planos Marshall, que foi responsável por reconstruir a Europa e a Ásia após a Segunda Guerra Mundial. Em lugar do Norte estar a ajudar o Sul, é o Sul que está a financiar o Norte.
A senhora também defende controle de capitais?
Sim, particularmente para os países em desenvolvimento, e especialmente para os maiores, como o Brasil. Se você abrir os mercados para todo o tipo de investimentos, os capitais podem entrar, mas também podem sair. Apenas entre 1990 e 2002, ocorreram pelo menos 90 severas crises financeiras no mundo. Você se expõe ao tipo de crise financeira que o Brasil teve em 1999, a exemplo de muitos outros países da Ásia, e da Rússia. Estes países precisam tomar precauções, precisam guardar‑se frente aos movimentos do capital que não estão em nada interessados no país. Esses capitais não se importam com os cidadãos daquele país, não se importam com os empregos, não se importam com o desenvolvimento do país, com os serviços sociais essenciais.
Os países detentores dos maiores PIBs mundiais – EUA, Japão, Alemanha – são os mesmos que obtêm os maiores lucros como rentistas?
Hoje, por meio de transações cambiais, entre o dólar, libras, euro, reais, entre as moedas do planeta, enfim, movimenta-se 1,2 biliões de dólares por dia. É algo inimaginável. Você não precisa mais produzir coisas reais. O meio pelo qual se acumula riquezas é fazer dinheiro de dinheiro.
Mas é possível apontar‑se que países estão a obter maiores lucros com esse tipo de investimento?
Você pode ver pelas firmas que actuam nesse ramo, pelos maiores bancos. E posso dizer‑lhe que entre os 30 maiores bancos do mundo, temos somente instituições estadunidenses, britânicas, alemãs e japonesas, com raríssimas excepções.
A senhora está a falar dos problemas globais, entre nações. O que pode ser dito para as pessoas que querem ter uma vida melhor, ganhar um pouco mais de dinheiro, através do investimento das suas economias?
A questão não é essa. O que precisa ser dito é que os pequenos investidores, esse tipo de pessoas de que você está a falar, jamais conseguirão ter qualquer influência sobre o mercado. Talvez essas pessoas contribuam para um fundo de pensão que é importante, mas individualmente, elas representam um percentual irrisório diante do mercado. No capitalismo, não há democracia. Por outro lado, se o mercado estiver a caminhar para uma grande queda, elas se machucarão antes.
Quem dita as regras?
Em todo o mundo, cerca de nove milhões de pessoas são quem exerce papel importante nisso. Elas concentram aproximadamente 30 biliões de dólares investidos! As forças que estão a mover esse mercado, os maiores investidores são os bancos, as companhias de seguro, os fundos de pensão e os bancos de investimento que prestam consultoria – como Goldman Sachs e Merril Lynch – que cuidam também de economias dos pequenos clientes.
As pessoas podem, contudo, fazer uma reflexão a respeito do que é suficiente, não?
Infelizmente, muitas pessoas responderão que “nada é suficiente”. Durante toda a sua história, os ricos vêm dizendo: “tudo para nós e nada para os outros”. Isso é Adam Smith, que é o pai da teoria do capitalismo. Ele sabia que nunca é suficiente. Não se trata do que é suficiente para mim, é algo a ser resolvido no plano colectivo. Sozinho você pode até fazer algo, mas que representará algo ínfimo. Agora, se você se associar a outras pessoas, então sim pode fazer algo, unindo-se, a um movimento, a uma ONG, a um partido, praticando e lutando pelo comércio justo...
O meio ambiente relaciona‑se de algum modo com todas essas questões?
Definitivamente. Se não priorizarmos o meio ambiente, não teremos condições de discutir as soluções no plano político e económico.
Para a senhora, o mundo está a melhorar ou a piorar?
A piorar. Por causa do meio ambiente, que não estamos a cuidar de forma séria; nas questões financeiras estamos piores, porque não temos controles internacionais. Mais e mais decisões vêm sendo tomadas em um plano que não é democrático... Mas há também vários sinais de esperança, como o Fórum Social Mundial. A sociedade civil está mais actuante, os cidadãos não estão a aceitar tudo. As pessoas não acreditam que o neoliberalismo seja algo natural – dez anos atrás era assim... Há mais esperança que há dez anos, mas o mundo está a desperdiçar muito rapidamente as suas chances de ser justo.
Antonio Biondi
http://infoalternativa.org/mundo/mundo168.htm
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