terça-feira, agosto 01, 2006

Víctor Jara: o menestrel da Unidade Popular

Na manhã do dia 11 de Setembro de 1973, a notícia do golpe militar já havia corrido todo o país. Seguindo uma orientação da CUT chilena, Víctor Jara dirigiu­‑se apressado à Universidade Técnica para se juntar aos estudantes e professores que prometiam resistir. O Campus foi cercado por tropas do exército. A madrugada foi de terror, ouvia-se tiros e explosões por todos os lados. Os que tentaram escapar do cerco foram imediatamente abatidos. Víctor buscou, então, elevar a moral dos sitiados usando a sua melhor arma: o canto.
Na manhã do dia 12 de Setembro, os tanques iniciaram o ataque contra a universidade. Depois de uma luta desigual, os resistentes foram obrigados a render­‑se. Reunidos no pátio, forçados a deitarem‑­se com as mãos na cabeça, começaram a ser espancados e humilhados. A multidão foi levada até ao Estádio Chile. Mal chegou ao Estádio, Víctor foi reconhecido por um oficial fascista que lhe disse: «Você é aquele maldito cantor, não é?». Antes que pudesse responder, foi barbaramente agredido e conduzido a um local especial do estádio – dedicado aos militantes mais perigosos. O destino de Víctor Jara já estava selado.
Os militares levaram­‑no arrastado ao porão onde foi novamente espancado e torturado. Quando foi reconduzido às arquibancadas, o seu rosto estava ensanguentado e mal podia andar ou falar. O clima ali era dantesco. Muitos dos prisioneiros tinham surtos de loucura, tentavam escapar e eram executados. Outros simplesmente se suicidavam.
No dia 14 de Setembro os prisioneiros começaram a ser transferidos para o Estádio Nacional do Chile [1]. Víctor, pressentindo que aqueles seriam os seus últimos momentos, pediu papel e caneta e no inferno escreveu o seu derradeiro poema:

Somos cinco mil
nesta parte da cidade.
Somos cinco mil.
Quantos seremos no total
nas cidades e em todo o país?
Somente aqui, dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.
Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura!
(...)
Que espanto causa o rosto do fascismo!
(...)
É este o mundo que criaste, meu Deus?
Para isto os teus sete dias de assombro e de trabalho?

Mal acabou de escrever os seus últimos versos, os carrascos vieram buscá-lo. Os companheiros de infortúnio conseguiram milagrosamente salvar o seu poema. Novamente começou a sessão de espancamento. Um oficial fascista gritou várias vezes: «Cante agora, se puder, seu filho da puta!». Víctor, quase sem vida, ainda conseguiu reunir as suas últimas forças para cantar a estrofe do hino da Unidade Popular, “Venceremos!”. A última etapa do seu martírio começou ali mesmo.
Brutalmente agredido, tendo as mãos quebradas, foi arrastado para os porões do Ginásio. Esta foi a última vez que o viram vivo. Dois dias depois seis corpos desfigurados e perfurados à bala foram achados na periferia da cidade. Um deles era do compositor e militante comunista Víctor Jara.

UM FILHO DO POVO

Víctor Jara nasceu no pequeno povoado de Lonquén em 1935. Era filho de camponeses. Aos seis anos já acompanhava o seu pai nos trabalhos da terra. As dificuldades familiares levaram a sua mãe a mudar­‑se para Santiago levando os seus cinco filhos. Ela empregou­‑se como cozinheira num pequeno restaurante, no qual o pequeno Víctor também colaborava. No entanto, quando tinha apenas quinze anos, uma tragédia mudou a sua vida: a sua mãe faleceu vítima de um enfarte.
Ele então resolveu ingressar no Seminário da Ordem do Redentorista. Esta era uma ordem conservadora que se baseava no enclausuramento e numa rígida disciplina eclesiástica. As únicas coisas que o atraíram ali foram os cantos gregorianos. Cerca de dois anos depois Víctor pediu desligamento do seminário.
Nos anos seguintes participou do coral universitário, de um grupo de mímica e ingressou na Escola de Teatro da Universidade do Chile. No Festival de Teatro Estudantil dirigiu a peça Parecido a la felicidad. Foi um grande sucesso e excursionou por toda a América Latina. Em Cuba ficou cerca de três semanas. O país ainda estava a ferver. A revolução acabava de sair vitoriosa e iniciava­‑se a construção de uma nova sociedade. Víctor ficou empolgado com tudo o que viu e manteve uma entrevista com um dos jovens comandantes revolucionários, que se chamava Ernesto Guevara.
No final de 1960 apaixonou-se por Joan, bailarina e professora nascida na Inglaterra. No ano de 1962, Víctor realizou uma longa turné pelo Leste-Europeu e pela URSS. Foi nesta longa e atribulada viagem que ele resolveu se tornar comunista. Joan ficou preocupada com a decisão. Visando tranquilizá-la e justificar a sua posição, ele escreveu: «Não pense que serei algum tipo de apóstolo (...) O meu ideal como comunista resume­‑se a apoiar os que acreditam que, com um regime do povo, o povo será feliz».
Víctor tornou­‑se rapidamente um director respeitado, ganhou vários prémios e tornou-se professor na Escola de Arte Dramática da Universidade do Chile. Além de interpretar e dirigir, ele continuava a compor e a cantar. Víctor gravou o seu primeiro compacto com as músicas La cocinerita e El cigarrito. O disco alcançou algum sucesso, o que o projectou no mundo da música popular chilena. O próximo disco contou com as músicas Paloma quiero contarte – escrita para Joan enquanto estava na Europa – e La beata – uma canção folclórica cómica que narra a paixão de uma beata pelo padre da cidade.
A canção foi um escândalo nacional. As rádios proibiram a sua divulgação. O governo ordenou o recolhimento de todos os discos e a sua destruição. De repente, ele viu­‑se alvo de agressões de todos os sectores conservadores da sociedade. Mas, La beata tornou­‑se um símbolo da resistência contra a moral conservadora e hipócrita das elites chilenas. A juventude lotava La Peña, casa de cultura de Violeta Parra, para ouvir Jara cantar a música proibida.

CANÇÃO E ENGAJAMENTO

Víctor começou a dar às suas canções um carácter mais de crítica social. Justificando a sua posição, afirmou numa entrevista: «Cada vez mais me comove o que acontece ao meu redor (...) a pobreza do meu próprio país, da América Latina e de outras nações do mundo (...) Por isso (...) é que preciso da madeira e das cordas de um violão para dar vazão à tristeza ou à alegria, em algum verso que abra o coração como uma ferida ou em alguma linha que nos ajude a sair de dentro de nós mesmos, para ver o mundo com novos olhos». Nesta linha compôs uma das suas canções mais comoventes e mais conhecidas: Te recuerdo Amanda. Nesta música ele narrou um pouco do quotidiano e da tragédia da vida operária.
No início de 1967, Víctor lançou mais um compacto. Desta vez foi dedicado a Che Guevara, que ainda não havia sido assassinado na Bolívia. A música principal chamava-se El aparecido. Em 1968 eclodiu o movimento pela reforma universitária. Professores e alunos ocuparam a Faculdade de Música de Artes Cénicas da Universidade do Chile. Quando uma das manifestações foi atacada pelo Grupo Móvel, batalhão anti­distúrbio da polícia chilena, Jara escreveu a música Movil Oil Special. Era uma sátira que procurava relacionar a política de repressão do governo com os interesses das empresas de petróleo estrangeiras. A música virou o hino do movimento pelas reformas. A música de Jara ganhou as massas e virou um instrumento das suas lutas.
Em Março de 1969, policiais, sob as ordens do ministro do Interior, o democrata cristão de direita Edmundo Zúcovic, atacaram camponeses acampados em terras improdutivas. O saldo foi oito mortos, entre eles uma criança de nove meses, e dezenas de feridos. Jara imediatamente compôs uma canção denunciando Zúcovic intitulada Preguntas por Puerto Montt – cidade onde ocorreu o conflito. Violentos protestos tomaram as ruas de Santiago.
O ambiente cultural chileno estava a fervilhar. O movimento cultural politizava­‑se no mesmo ritmo da sociedade chilena. Foi neste clima que se realizou o 1º Festival da Nova Canção Chilena. Víctor Jara participou com a música Plegaria a un labrador. Pela primeira vez, ele se apresentou no Estádio Chile. A música de Jara tornar­‑se­‑ia o hino do movimento camponês em todo o mundo. Dizem os seus versos:

Levante-te
e mira as montanhas
de onde vêm
o vento, o sol e a água.
Tu que manejas o curso do rios
tu que semeaste o voo da tua alma.
Levanta-te
e olha as tuas mãos
para crescer, estende-as a teu irmão,
e juntos iremos
unidos pelo sangue
hoje é o tempo que pode ser amanhã.
Livra-nos daquele que nos domina
na miséria.
Traz-nos o teu reino de justiça
e igualdade.
Sopra como o vento
a flor das quebradas.
Limpa como o fogo o cano do meu fuzil.
Faça-se por fim a tua vontade aqui na terra
(...)
agora e na hora da nossa morte
Amém.

O sucesso da música foi enorme e ele foi lançado à condição de principal compositor popular do Chile. As suas canções tocavam nas rádios e na televisão. O movimento da Nova Canção Chilena chegava ao seu auge e Víctor Jara era o seu principal expoente.
Em janeiro de 1970, Allende foi novamente indicado como candidato e Víctor engajou­‑se na campanha da Unidade Popular (UP). Diante do crescimento da esquerda, recrudesceram as provocações da direita. Os latifundiários montavam milícias armadas contra os camponeses sem-terra. A esquerda chilena organizava manifestações contra o fascismo. Neste momento foi assassinado o jovem comunista Miguel-Angel Aguilera. Os funerais transformaram­‑se em grandes manifestações que reuniram centenas de milhares de pessoas. Em sua memória, Jara fez a canção El alma llena de banderas. Com esta música concorreu ao II Festival da Nova Canção Chilena.
Allende finalmente venceu as eleições com uma margem apertada de votos. Uma multidão tomou as ruas de Santiago. Mas a batalha não havia terminado. Como ninguém obteve maioria absoluta dos votos, cabia ao Congresso, no qual a UP era minoria, confirmar o vencedor. Começou assim uma intensa pressão sobre os parlamentares democrata-cristãos para que não aceitassem o resultado das urnas.
O comandante-em-chefe, general René Schneider, que se opunha ao projecto dos golpistas, foi brutalmente assassinado por um comando direitista. A tragédia ocorreu entre a eleição de Allende e a sua indicação pelo Congresso. O país ficou consternado e o resultado acabou sendo desfavorável às forças de direita. O congresso acabou reconhecendo a vitória de Allende.
O seu primeiro álbum após a posse foi El derecho de vivir en paz. A canção que dava nome ao disco era dedicada à luta do povo vietnamita e a Ho-Chi-Minh. Víctor compôs outra música para criticar as correntes que ficavam em cima do muro entre a UP e a direita golpista. A música que ficou muito famosa chamava­‑se Ni chicha ni limoná – “nem assim, nem assado” – numa clara provocação às posições dúbias dos democrata­‑cristãos. Desta época era, também, a não menos provocativa Las casitas del barrio alto – tradução livre da música Little boxes de Malvina Reynolds e que ficou mundialmente famosa na voz de Pete Seeger. Víctor a adaptara à conturbada realidade chilena e fizera dela uma dura crítica às elites chilenas, moradoras do Bairro Alto, que se envolviam até em atentados contra generais legalistas.
Víctor passou a ser vítima de uma campanha orquestrada pelos sectores conservadores. Ele era, ao lado de Neruda, o principal artista do Partido Comunista e da UP. Um artista que colocou todo o seu enorme talento ao serviço da transformação social no Chile. Ele próprio respondeu aos seus detractores: «Ao escolher ser um membro do partido comunista, principal inimigo das forças reaccionárias chilenas e odiado por elas, preparei­‑me para sofrer perseguições e ataques pessoais bem piores do que as ofensas gratuitas que os porta-vozes da conspiração reaccionária me têm dirigido».

NO OLHO DO FURACÃO

Em 1971 um agrupamento esquerdista assassinou o ex-ministro democrata-cristão Edmundo Zukovic. O mesmo que foi alvo da música Preguntas por Puerto Montt. A direita acusou Víctor de ser um dos instigadores do assassinato. Esta foi a justificação utilizada para o rompimento político entre a Democracia-Cristã e a UP, contribuindo para o enfraquecimento do governo.

Víctor combatia principalmente a direita, mas criticava as correntes esquerdistas, particularmente o MIR. Este vivia em permanente conflito com o governo Allende. Em 1972 ele foi ao centro do furacão: a Universidade de Concepción. Naquela cidade nasceu o MIR e lá ele tinha a sua maior força. Víctor conclamou a manutenção da unidade popular e o decidido apoio ao governo Allende. Esta atitude acarretou a ira da extrema-esquerda, que o acusou de reformista.
No final de 1972 eclodiu a greve dos camionistas, que foi seguida por uma greve no comércio, nos transportes urbanos, nos hospitais, etc. Começou a faltar alimentos nas grandes cidades. Proliferou o mercado negro. As organizações populares formaram brigadas para o abastecimento da população mais pobre. Realizaram­‑se tentativas heróicas de furar o cerco imposto pela greve nos transportes. Víctor Jara engajou­‑se neste luta, organizando a distribuição de alimentos. Mais tarde integrou uma das brigadas de trabalho voluntário que foi ao interior ajudar na colheita e no transporte do milho para os centros urbanos.
No início de 1973 realizaram-se novas eleições para o Congresso Nacional. Víctor percorreu o país fazendo campanha para os candidatos do Partido Comunista. Cantava nas fábricas, nos canteiros de obras, nas escolas e nas favelas. A campanha trouxe mais uma vitória para a UP, que obteve mais votos do que havia conseguido na eleição de Allende em 1970.

A violência recrudescia nas ruas. O jovem operário da construção civil Roberto Ahumada, militante da UP, foi abatido a tiros numa manifestação pacífica contra o fascismo. Víctor conhecia Roberto e a sua esposa e compôs para ele a canção Cuando voy al trabajo. Mais tarde, o próprio comandante Arturo Araya, adido naval de Allende, seria assassinado por terroristas. As constantes ameaças levaram Víctor Jara e a sua família a afastarem­‑se de Santiago e a mudarem para Isla Negra, próximo da casa de Neruda.
Em Isla Negra compôs Manifiesto. Uma exposição dos motivos que o levavam a cantar:

Eu não canto por cantar
nem por ter boa voz,
canto porque a guitarra
tem sentido e razão,
tem coração de terra
e asas de pombas brancas,
é como a água benta,
benditas glórias e penas,
aqui se encaixou meu canto,
como dissera Violeta,
guitarra trabalhadora
com cheiro de primavera.
Que não é guitarra de rico
nem coisa que se pareça,
meu canto é dos andarilhos
para alcançar as estrelas
que o canto tem sentido
quando palpita nas veias,
do que morrerá cantando
as verdades verdadeiras,
não as lisonjas fugazes
nem as famas estrangeiras
senão canto de uma lonja,
até ao fundo da terra.
Ali onde tudo chega
e onde tudo começa,
canto que foi valente
sempre será canção nova.

Víctor ainda participou da grande manifestação de 3 de Setembro, na qual cerca de um milhão de pessoas saíram às ruas gritando: «Allende, Allende, o povo te defende!». Víctor seguiu em frente carregando uma faixa que dizia: «Trabalhadores da cultura contra o fascismo». Sem o saber, esta seria a última homenagem que o povo chileno prestaria ao seu valoroso presidente.
Neruda conclamou ao povo que realizasse uma grande campanha de denúncia contra o fascismo. Realizaram­‑se, então, exposições, recitais, programas de rádios e de televisão alertando sobre o perigo que representaria a vitória da direita. Víctor foi chamado para dirigir um programa no Canal Nacional de Televisão. O tema de abertura era uma canção antifascista feita em co-autoria com Pablo Neruda intitulada Aqui me quedo. Iniciava assim:

Eu não quero a Pátria dividida
nem por sete machados dessangrada.
quero a luz do Chile no alto levantada
sobre a nova casa construída.

Neste grande esforço de denúncia dos planos golpistas e dos perigos do fascismo para o povo chileno, ele compôs ainda o magistral Vientos del Pueblo.

De novo querem manchar
a minha terra com sangue operário
os que falam de liberdade
e têm as mãos manchadas
os que querem separar
a mãe dos seus filhos
e querem reconstruir
a cruz que arrastara cristo.
(...)
Não me assusta a ameaça
patrões da miséria.
A estrela da esperança
continuará sendo nossa.

Na madrugada do dia 11 de Setembro eclodiu o golpe militar. A grande parte das emissoras ligadas à UP havia sido ocupada pelo exército. Mas ainda foi possível ouvir parte do último discurso do companheiro presidente: «só me cabe dizer aos trabalhadores: eu não vou renunciar. Colocado diante de uma opção histórica, pagarei com a minha vida à lealdade do povo».
Víctor dirigiu­‑se apressadamente à Universidade Técnica. Às 16:30 horas do mesmo dia fez uma última ligação para a sua esposa. «Tenho que ficar aqui. Vai ser difícil voltar com o toque de recolher. Quando ele for suspenso na primeira hora da manhã, vou para casa. Mãezinha, eu amo você!». Víctor jamais voltou a ver a sua família e uma noite sombria desabou sobre o Chile. Uma noite que durou mais de 15 anos.

Augusto Buonicore

[1] O Estádio Chile actualmente denomina-se Estádio Víctor Jara.

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