domingo, setembro 03, 2006

A América Latina frente à globalização

A QUE CHAMAMOS GLOBALIZAÇÃO?

A globalização é um fenómeno que pretende ser exclusivamente económico e pretende sê­‑lo com muita arrogância. Na realidade, pretende ser a única fórmula económica que funciona, baseando­‑se no princípio do neoliberalismo. Isto é, a ideia de que após o falhanço da União Soviética já não há vias alternativas em matéria económica.
Esta ideia, desenvolvida originariamente por um grupo de economistas estadunidenses, essencialmente por Milton Friedman, que nos anos 70 desenvolveram a ideia de que, para favorecer a flexibilidade da ideologia, a todo o custo havia que reduzir o tamanho do estado.
Pensavam que o estado, ao longo do século XX, tinha tido a tendência de se expandir demasiado, a ocupar muito espaço e que, por conseguinte, havia que o reduzir, havia que diminuir o estado e uma das suas mais importantes prerrogativas. Isto é, o estado não tinha que jogar nenhum papel económico, não [tinha que] possuir nada, nem recursos em dinheiro, nem terras, nem empresas estratégicas como as do transporte, serviços básicos, etc.

O ESTADO DEVIA VENDER, OU SEJA, PRIVATIZAR

Estas privatizações, que começaram de forma brutal nos anos 80, faziam­‑se pela primeira vez na história. Após o século XVIII, os estados viveram um grande desenvolvimento e foram também actores económicos para poder ter meios e distribuir a riqueza nacional.
Antes, em muitos países onde só havia algumas riquezas, estas pertenciam a uns pequenos grupos da sociedade, as oligarquias, que possuíam 80 ou 90 por cento da riqueza nacional. A situação era extremamente injusta e as pessoas continuavam a protestar. Esses pequenos grupos (uns 10 por cento da população), defendiam os seus privilégios apoiando-se num aparelho repressivo forte, que não servia para defender o país, mas os ricos dos pobres.
Nas sociedades modernas, a partir do século XIX e após uma série de revoluções, pouco a pouco, o estado apropriou­‑se destas propriedades para distribuir a riqueza entre a maioria da sociedade. O estado passou a ser um actor económico muito importante.
Ao longo do século XX, o estado tinha desenvolvido a sua capacidade de cobrar impostos aos que deviam pagar impostos, isto é, aos que mais ganhavam e estes impostos serviam ao estado para construir as infra­‑estruturas que permitem dar à sociedade o que precisa, os serviços básicos.
Transformou-se num estado benfeitor introduzindo os princípios da segurança social, a aposentação. Um estado estratega para o futuro e planificador. Esse estado era em definitivo um estado para os pobres.
A tese da globalização era que esse estado tinha que desaparecer e do mesmo modo tinham que desaparecer os impostos, com a ideia de que “um estado mínimo é um estado melhor”, “menos estado, melhor estado”, mas isso era bom só para os ricos e não para os pobres.
Então desenvolveu-se a tese de que havia que privatizar tudo o que pertencia ao estado.

Se um país possuía petróleo e pertencia ao estado, ao privatizá-lo ocorria que o compravam os ricos ou, pior, compravam­‑no os estrangeiros e o país perdia o único recurso para ajudar os mais necessitados.
(…) Reduzir o estado quer dizer também diminuir o seu Orçamento e portanto, o número dos seus funcionários públicos e os países que aplicaram a globalização despediram milhares de funcionários públicos, reduziram a sua aposentação e em muitos países já quase não existe uma educação e uma saúde públicas. Os mais pobres vão a uma escola de escassa qualidade e os ricos vão à escola privada, mantendo dessa maneira a estratificação social: os mais pobres sempre serão pobres e os ricos sempre serão ricos.
A globalização criou um desapossamento da riqueza e da soberania nacional, mantendo uma diferença de categoria social e de gasto social muito marcado. E isto num contexto político, o dos anos 90, onde por razões históricas não havia uma grande vontade de resposta social. Esta teoria foi aplicada sem consultar a sociedade.
O primeiro país onde foi aplicada foi no Chile de Augusto Pinochet, o qual, com a força agressiva da ditadura, pôde impor esta reforma e intimidar a sociedade que não podia responder por medo à repressão.
Foi aplicada depois no Reino Unido, em Inglaterra, com o governo de Margareth Thatcher em 1979. Ali conseguiu quebrar os sindicatos, privatizar o transporte, as minas, terminando uma tradição de dois séculos de lutas sociais.
Em 1980 ganhou as eleições Ronald Reagan, que introduziu nos Estados Unidos esta teoria da globalização e a aplicou­ em todas as instituições controladas pelos Estados Unidos, como são o FMI e o Banco Mundial. A partir desse momento, controlando estas instituições, a globalização começou a estender-se a todos os países.
O segundo país na América Latina onde foi aplicada essa nova teoria foi a Bolívia. Foi uma verdadeira “terapia de choque”, onde com uma brutalidade impressionante foram arrebatados à sociedade e aos trabalhadores os seus direitos e a riqueza do país.
Em 1983, o presidente Sánchez de Lozada, no seu primeiro mandato, iniciou esta terapia de choque com a privatização dos hidrocarbonetos. Seguiu­‑se o Perú com o governo de Alberto Fujimori e a Venezuela, onde em 1992 Carlos Andrés Pérez aplicou a mesma terapia e se produziu uma insurreição popular conhecida como “o Caracazo”, onde o Exército reprimiu o povo deixando entre 2 e 3 mil vítimas e possivelmente muitas mais.
(…) Dois anos depois, no primeiro de Janeiro de 1994, entrou em vigor o primeiro Tratado de Livre Comércio entre os Estados Unidos, o Canadá e o México (NAFTA). No mesmo dia, entraram em cena os zapatistas do Subcomandante Marcos, que saíram da Selva Lacandona para protestar simbolicamente contra o NAFTA e ocuparam San Cristóbal de Las Casas com as armas. Nesta ocasião, o Subcomandante Marcos pela primeira vez começou a difundir uma visão clara sobre a globalização e os seus efeitos.
Quando os zapatistas entraram em San Cristóbal de Las Casas, o que hoje chamamos globalização, ainda não tinha nome. Não sabíamos dar um nome a este fenómeno de privatizações, violações dos direitos laborais, transformações da economia. As finanças começaram a ter mais importância que a produção industrial.
Os analistas pensavam ainda que eram fenómenos separados e não uma só fórmula, onde existe uma só solução para os problemas económicos. Eu tinha proposto chamar­‑lhe “o pensamento único”, porque não nos era permitido pensar de outra maneira, isto era a única coisa que funcionava e era preciso aceitá­‑lo como um dogma indiscutível. Depois começou-se a chamar-lhe “globalização”, mas o Subcomandante Marcos já o tinha entendido, através das suas reflexões pela Internet.

QUE SE ESTAVA A PASSAR NA AMÉRICA LATINA DESDE HÁ MAIS DE 10 ANOS?

Estavam a instaurar­‑se experiências de globalização. Havia protestos, como em Caracas, mas não muitos mais noutros países. Isto devia­‑se também ao facto de que todos os meios de comunicação repetiam constantemente às pessoas que se tratava de fórmulas mágicas, que iam permitir às sociedades a entrada na modernidade, no desenvolvimento, na riqueza para todos e as pessoas esperavam para ver o que se ia passar e as próprias vítimas da globalização não se atreviam a protestar.
Hoje, a situação da comunicação não mudou muito. Ao contrário dos primeiros anos 90, o sistema de comunicação é bem mais sofisticado, há uma grande proliferação de meios escritos, radiais, televisivos e a comunicação é massiva, no entanto a constatação é que todo esse sistema na realidade não está a apresentar uma variedade de informação, mas a mesma informação.
Existem muitas fontes, mas na realidade funcionam como uma unidade, uma só mensagem ideologicamente de apoio indiscriminado à globalização e de crítica sistemática e igualmente indiscriminada contra o pensamento dissidente e aqueles que criticam a globalização. Os que têm recursos podem procurar esta informação crítica na Internet, mas isto pressupõe um verdadeiro nível de educação, de formação e de recursos económicos.
O tema da comunicação mediática internacional está a funcionar como o aparelho ideológico da globalização, como a maquinaria de propaganda da globalização.
Após 1994 começou-se a reflectir à escala internacional sobre como combater esta teoria que se estava a aplicar também no Norte e estavam­ a aplicá-la tanto os governos de direita como de esquerda, provocando danos muito importantes.
Começou a surgir um pensamento autónomo de como reflectir para identificar a globalização. Era como se todos tivéssemos uma doença da qual se conhece a sua sintomatologia, mas sem saber de que doença se tratava, as suas causas e as relações entre os diferentes sintomas.
Pouco a pouco encontrou-se uma definição que ninguém tinha teorizado. Começámos a organizar-nos com a participação de associações, ONGs, sindicatos e começámos a protestar, mas não contra a globalização em geral, mas contra as suas aplicações em cada país.
Em particular, tentou-se detectar as organizações que estavam a estimular a globalização, como o motor da globalização.
Em Dezembro de 1999 em Seattle, Estados Unidos, produziu-se uma grande manifestação em que participaram organizações que vinham de muitos países, porque nesta cidade se desenvolvia pela primeira vez uma cimeira de uma organização ainda pouco conhecida: a Organização Mundial do Comércio (OMC). A OMC é um dos motores da globalização e é ela que diz aos países como devem comportar­‑se para se abrir aos capitais estrangeiros, como sacrificar os seus trabalhadores para que se possam instalar as empresas que não respeitam os direitos laborais, que dão salários de miséria, que oferecem postos de trabalho­‑lixo e que dizem que isto é bom para o país.
Ali se denunciou que a OMC era uma organização responsável pelas grandes tragédias sociais que se produzem no mundo.
A partir desse momento começaram protestos em todo o mundo contra a globalização e as sociedades começaram a levantar­‑se.
Em Cochabamba, a empresa multinacional que tinha comprado a distribuição da água e que começou a aumentar o seu preço, enfrentou a ira das pessoas e teve que se ir embora. Em Arica, Perú, tinha-se privatizado a electricidade com o conseguinte aumento das tarifas. As pessoas iniciaram fortes protestos e a empresa teve que baixar os preços. Na Costa Rica, também protestaram e impediram as privatizações.
Depois começou-se a pensar que, não só se devia protestar, mas que era preciso passar a uma nova etapa, e reunir num lugar a nível mundial para procurar e propor, juntos, soluções alternativas à globalização.
Em 2001 decidimos fazê-lo numa cidade do Brasil, em Porto Alegre, e chegaram 15 mil pessoas. Neste primeiro encontro mundial reflectiu-se e procuraram-se alternativas, difundindo-as cada qual nos seus próprios países. Em 2002 chegaram 70 mil pessoas e juntaram-se outros movimentos e organizações.
Os globalizados começavam a produzir teorias sobre a globalização, ao mesmo tempo que analisavam como se podia passar a outro sistema.
(…) Existe hoje na América Latina uma luz frente aos danos sociais produzidos pela globalização e uma esperança de que seja possível outro tipo de economia. Uma economia mais humana, mais solidária, que ponha no centro da sua actuação a pessoa e não a riqueza e o egoísmo.
Penso que hoje em dia um governo que pretenda realizar mudanças sociais importantes ou devolver à sociedade a riqueza que lhe foi roubada durante séculos, para permitir que as pessoas possam viver com dignidade, com trabalho, educação, saúde, habitação, tem que ser muito modesto. Não se pode pensar, como se pensou noutra época, que o governo tem todas as soluções, que chega com um programa para fazer tudo a partir de acima.
O que tem que fazer é escutar a sociedade: o que é que a sociedade está a pedir como mudança, que tipo de solução está a procurar nos diferentes domínios sociais, qual é a melhor solução que colectivamente a sociedade está a querer encontrar em matéria de produção, organização, no social. É indispensável que o movimento social contribua para as soluções e é o que o Subcomandante Marcos resume numa frase, de que “o governo tem que mandar obedecendo”, não mandar com soberba, e deve fazê­‑lo independentemente do tipo de poder político que se apresente.
Foi o que fez Evo Morales com a nacionalização dos hidrocarbonetos, onde foi necessária muita coragem para suportar as críticas. É claro que não o fez porque era um capricho, mas porque a sociedade que o elegeu o pedia e queria que a riqueza da Bolívia regressasse à Bolívia e o mesmo acontecerá com a reforma agrária.
Ao mesmo tempo, os movimentos sociais têm que se organizar e trabalhar a partir de baixo e não esperar que tudo chegue de cima. Isto é definitivamente o mais importante para que prossiga a esperança de que a nossa sociedade latino­‑americana possa de facto sonhar em que outro tipo de mundo seja realmente possível.

Esta é a transcrição, efectuada por Giorgio Trucchi, de uma intervenção de Ignacio Ramonet no dia 10/06/2006 num ciclo de conferências que teve lugar na Universidade Nacional Autónoma da Nicarágua.

Ignacio Ramonet
http://infoalternativa.org/autores/ramonet/ramonet093.htm

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