domingo, setembro 10, 2006

As mentiras, as ameaças, a hipocrisia...

Depois da guerra vêm a hipocrisia, a mendacidade, as ameaças, as mentiras descaradas. Comecemos pelo homem dos olhos penetrantes, Sayed Hassan Nasrallah, chefe do movimento guerrilheiro Hezbollah que deu uma tareia aos israelenses no Líbano à custa – bem, à custa da destruição de grande parte do Líbano.
Foram os homens de Nasrallah que cruzaram a fronteira israelense a 12 de Julho, capturaram dois soldados israelenses, mataram outros três e assim desataram a selvajaria totalmente previsível da Força Aérea e do Exército israelenses contra a população largamente civil do Líbano.
Agora vejam o que diz Sayed Nasrallah: «Se soubesse que a captura dos soldados levaria a uma guerra a tal escala, se o Hezbollah soubesse sequer 1 por cento, definitivamente não a teríamos levado a cabo». Isto, amigos, é o que eu chamo uma grande mentira. Se o Hezbollah não tinha ideia do que Israel ia fazer no Líbano – e são pessoas inteligentes e disciplinadas que conheciam muito bem a situação política de Ehud Olmert na altura (é certamente pior agora devido ao falhanço do seu exército no Líbano) –, então por que construiu todos esses bunkers em grutas, rochas e colinas durante anos antes da guerra? Por que levaram milhares de mísseis para o sul do Líbano? Por que se prepararam para disparar a um navio de guerra israelense – o que fizeram, e quase o afundaram depois de o terem atingido em cheio – e se prepararam com tanto sucesso para a pequena ofensiva terrestre que Israel subsequentemente levou a cabo? É suposto que acreditemos que resistiram sob intensos ataques israelenses – que mataram mais de 1000 civis, como certamente eles saberiam – sem qualquer planificação? Ou que os homens do Hezbollah que atingiram o navio israelense se levantaram de manhã, comeram as suas sanduíches manouche de queijo, e disseram: “Ei, vamos disparar hoje a um barco de guerra israelense!”
Não, esse ataque – um alvo militar perfeitamente justificável dada a agressão israelense – também foi cuidadosamente planeado. De acordo com Seymour Hersh em The New Yorker, o ataque de Israel também foi cuidadosamente planeado – e autorizado pela administração Bush como parte da sua campanha para humilhar o Irão.
Penso que Hersh tem razão. Mas penso que ambos os lados planearam isto, e um indício disso veio noutra parte do pronunciamento incrivelmente hipócrita de Nasrallah.
«Em todo o caso», disse ele, «Israel ia lançar uma guerra no princípio do Outono e o nível de destruição então seria ainda maior». Bom, obrigado por me dizeres, Hassan.
Assim vemos como o Hezbollah está a planear a sua narrativa no pós­‑guerra. Nunca quiseram que os libaneses sofressem, mas iam de qualquer modo sofrer mais tarde e, além disso, o Hezbollah ganhou. E agora, a liderança do Hezbollah anuncia formalmente que tenciona obedecer à resolução 1701 do Conselho de Segurança da ONU – que exige o desarmamento – mas que não se vão de facto desarmar. Assim é a paz nos nossos tempos mais uma vez. Até à próxima guerra.
Mas igualmente perniciosa é a narrativa totalmente falsa que os israelenses e os seus apoiantes estão agora a preparar para o mundo, que inclui todas as velhas mentiras sobre o anti­‑semitismo dos repórteres e do envolvimento da Cruz Vermelha no terrorismo. Tome­‑se, por exemplo, um artigo ultrajante no jornal francês Libération de quinta-feira, escrito por Shmuel Trigano e intitulado “Guerra, mentiras e vídeo”. Este artigo coloca alguns temas usuais mas deliberadamente enganosos, o mais odioso dos quais afirma que, ao mostrar as crianças assassinadas pela Força Aérea israelense em Qana, a imprensa estava a tentar «reactivar uma ideia anti­‑semita muito antiga: que os judeus matam crianças.

Na antiguidade, eles (os judeus) eram acusados de canibalismo, na Idade Média – e ainda hoje no mundo árabe – de crimes rituais». E, claro, eu entendo a mensagem. Não devíamos ter mostrado essas fotografias dos inocentes de Qana assassinados pelas bombas israelenses (ainda pior seria, sem dúvida, se disséssemos que eram bombas israelenses “fabricadas nos Estados Unidos”) e nunca devíamos ter assinalado que há uma década atrás, soldados israelenses mataram outros 106 inocentes em Qana, mais de metade deles crianças, e na verdade não devíamos mostrar nenhumas crianças árabes mortas – a menos que queiramos ser rotulados como anti­‑semitas medievais.
Shmuel depois surge com uma narrativa israelense quase tão discutível como a que estou agora a ouvir dos porta­‑vozes de Israel: que porque um fotógrafo libanês a meio tempo colou duas nuvens de fumaça numa fotografia de um lugar bombardeado e vendeu a fotografia falsificada à Reuters – num acto de mendacidade que lhe valeu ser justificadamente despedido – todas as fotografias de Beirute foram provavelmente manipuladas e falsificadas. Isto, evidentemente, é um disparate, embora no momento em que soube da fotografia falsa tenha prognosticado a um amigo que os amigos de Israel iriam agora lançar a dúvida sobre todas as imagens do Líbano. As mentiras contra a imprensa dos amigos de Israel são tão previsíveis como vis.
Depois vem a acusação de que todos nós repórteres trabalhámos no sul do Líbano sob o “controle” do Hezbollah – e que os nossos colegas em Gaza trabalham todos sob o “controle” do Hamas. «Todos os jornalistas», segundo Shmuel, sabem que trabalham «sob a autorização dos poderes existentes que exercem a sua autoridade sobre as fotografias e dão acreditação aos jornalistas» para trabalharem lá.
Perdoe­‑me, Shmuel, mas este é o tipo de material que procede da parte traseira de um boi.
Não trazemos nenhuma “autorização do Hezbollah”; na verdade, aqueles de nós que tentaram entrevistar membros do Hezbollah durante a guerra não conseguiam encontrá-los – não mais do que a Força Aérea israelense conseguiu encontrá­‑los. Mas não, nós jornalistas, de acordo com este texto, acreditamos que é «justo» que os civis israelenses sofram. Nós focamos somente as «vítimas» de Israel – e isto é «anti­‑semitismo “por defeito”». Sendo um velho conhecedor das guerras sujas do Líbano, tenho que dizer que esta é exactamente a mesma mentira que foi contada sobre nós durante o bombardeamento israelense em 1978, a invasão de 1982, o bombardeamento de civis em 1993 e o bombardeamento de civis em 1996 – e cá a temos de novo.
Será que os amigos de Israel, pergunto-me com frequência, atacam jornalistas decentes e honrados como anti­‑semitas porque querem que o anti­‑semitismo se torne respeitável? Devemos suspirar com enfado ou raiva perante tal desonestidade? Bom, uma coisa lhes digo. No que à desonestidade diz respeito, Nasrallah está entre os melhores. Mas ainda tem muito que aprender com os israelenses.

Robert Fisk
http://infoalternativa.org/autores/fisk/fisk094.htm

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