sábado, setembro 16, 2006

Diplomacia?

É razoável exigir-se que só se opte pela intervenção militar quando estiverem esgotadas todas as opções diplomáticas. Mas a diplomacia, até por exigência do próprio processo, faz-se muitas vezes por detrás de portas fechadas. Como saber então se os parceiros estão a negociar de boa fé? Como pode a opinião pública avaliar se a diplomacia foi de facto esgotada? Quando por vezes os esforços diplomáticos são divulgadas, a comunicação social nem sempre detalha em pormenor as propostas em cima da mesa, ou retrata apropriadamente os acontecimentos que precedem as negociações. Mas o Deus e o Diabo estão nos detalhes. Temos assistido a inúmeros casos em que os EUA têm declarado o falhanço da via diplomática, quando na verdade trabalharam para a subverter, sempre com a preocupação porém de criar a ideia que esforços foram desenvolvidos da sua parte, mas recusados por parte do opositor.
Veja-se o recente exemplo durante a crise no Líbano. O Hezbollah sequestrou 2 soldados israelitas a 12 de Julho, com o objectivo, explicitado de imediato, de negociar a sua troca por prisioneiros libaneses. Israel negou­‑se a fazer qualquer troca, afirmando que com terroristas não se pode negociar, e ripostou militarmente em peso. Importava recordar que Israel não só já havia negociado com organizações que considera terroristas, como inclusivamente já o havia feito com o Hezbollah, tendo realizado em 2004 uma troca de centenas de prisioneiros libaneses e palestinos pelos corpos de 3 soldados israelitas [1]. Após o irromper do conflito armado, a Secretária de Estado dos EUA, Condoleeza Rice, afirmava-se firmemente por um cessar-fogo, assim que possível, quando as condições estivessem reunidas [2], isto é, depois de destruída a infra­‑estrutura libanesa, enfraquecido o Hezbollah (ou assim pensavam), e posicionadas tropas israelitas no sul do Líbano. Diplomacia à lei da bala.
Intimamente associado ao conflito no Líbano está o relacionamento dos EUA (e Israel) com o Irão, que os EUA têm vindo a alegar possuir planos de produção de armas nucleares. Neste contexto, tem sido praticamente irrelevante não serem apresentadas corroborações de tal alegação: o Director Geral da Agência Internacional de Energia Atómica, Mohamed El Baradei, reafirmou em Abril deste ano que não existem evidências de que o Irão esteja a desviar material nuclear para fins bélicos [3]. Sobre o Presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, tem-se desenhado uma caricatura de pessoa perigosa e incapaz de negociar, que nega o Holocausto e proclama querer destruir Israel (embora uma leitura atenta dos seus discursos torne claro que tais caracterizações são exageros enviesados [4]). Com o terreno já calcado, o porta-voz do Departamento de Estado do EUA, Sean McCormack, pôde afirmar que «nada indica que os iranianos estejam dispostos a entrar num processo diplomático sério» sobre o assunto nuclear [5].
Como entender então que o Irão tenha tido um papel positivo na Conferência de Bona em finais de 2001, onde se discutiu o futuro do Afeganistão pós-Taliban, incluindo limitar as exigências de lugares ministeriais da Aliança do Norte? Como agradeceram os EUA? Incluindo o Irão no Eixo do Mal, no discurso do Estado da Nação. Apesar disso, o Irão continuou a lançar a mão diplomática, colaborando na luta contra o terrorismo e a Al Qaeda. A pedido dos EUA enviou tropas para vigiar a fronteira com o Afeganistão para evitar a fuga de elementos da Al Qaeda; e suspendeu os vistos de alguns dos seus elementos que teriam entrado no Irão. Ainda em 2002, apoiou a iniciativa Árabe pôr fim ao conflito com Israel, um considerável afastamento da sua recusa em reconhecer o estado judaico, sob a condição de Israel cumprir as resoluções 242 e 338 do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas a persistência de uma atitude agressiva por parte dos EUA, apesar da boa vontade demonstrada, levou o Líder Supremo Ayatollah Ali Khamenei a denunciar negociações com os EUA como inglórias.
Em 2003, porém, deu-se a ocupação estadunidense do Iraque. O Irão viu-se com três trunfos para conversações diplomáticas: a sua influência sobre os grupos xiitas no Iraque; os elementos da Al Qaeda detidos no Irão, que os EUA desejavam interrogar; e as preocupações dos EUA com o programa nuclear iraniano. Enviou então uma proposta de conversações onde oferecia concessões no seu programa nuclear, reforço da sua acção contra terroristas refugiados no Irão, abertura na sua relação com Israel, terminar o apoio material aos grupos palestinos (como o Hamas e a Jihad Islâmica) encorajando-os a porem fim à acção violenta, e pressionar o Hezbollah a tornar-se apenas numa organização política. O Presidente Bush, o Vice-presidente Dick Cheney, o Secretário de Defesa Donald Rumsfeld e o então Secretário de Estado Collin Powell decidiram ignorar a proposta. Mais, na ausência de provas Rumsfeld alegou que o ataque terrorista em Riade, em Maio de 2003, havia sido cometido por elementos da Al Qaeda provindos do Irão, e implicaram uma cumplicidade entre o Irão e a Al Qaeda. Rumsfeld cancelou então um encontro com representes do Irão e fechou as portas diplomáticas. Mas no Outono desse ano, Richard Armitage, sub-secretário de estado, afirmava ao Congresso que os EUA estavam dispostos a dialogar, mas apenas quando o Irão concordasse em partilhar inteligência sobre a Al Qaeda (!). O Irão iniciou então diálogo com a Grã-Bretanha, França e Alemanha, mas a relutância dos EUA em negociar impedia chegar-se a um acordo [6].
Um processo semelhante sucedeu no tratamento da Síria pelos EUA. No seguimento dos ataques do onze de Setembro, a Síria disponibilizou milhares de ficheiros de inteligência sobre a Al Qaeda aos EUA, tornando­‑se uma das principais fontes de informação dos EUA sobre a organização. Na altura, mostrou-se também aberta a conversar sobre o seu apoio ao Hezbollah [7]. Embora a Síria não tenha sido incluída na versão final do Eixo do Mal, era considerada como tal pelos neoconservadores, e as vias diplomáticas foram fechadas. Em 2003, Israel estava disposto a negociar com a Síria, inclusivamente sobre os Montes Golã, mas os EUA desencorajou-os.
Nestes e outros casos (veja-se a habilidade como a Administração Bush destruiu as aberturas criadas por Bill Clinton com a Coreia do Norte), o interesse dos EUA tem sido criar a ilusão de impossibilidade de diplomacia. Conjuntamente com um espectro de ameaça imediata corroborada por fabulações, prepara terreno para eventuais aventuras militares.

[1] André Levy, Sessão pública sobre situação no Médio Oriente, Jangada de Pedra, 25/07/2006.
[2] Rice: ceasefire depends on conducive conditions, Reuters, 18/07/2006.
[3] IAEA chief finds no early evidence of iranian weapons program, PBS, 13/04/2006.
[4] André Levy, Escalada contra o Irão, Jangada de Pedra, 25/04/2006.
[5] Powers split over Iran talks bid, BBC, 18/01/2006.
[6] Gareth Porter, Burnt Offering: How a 2003 secret overture from Tehran might have led to a deal on Iran’s nuclear capacity – if the Bush administration hadn’t rebuffed it, The American prospect, 06/06/2006.
[7] Seymour Hersh: U.S. helped plan israeli Aattack, Cheney "convinced" assault on Lebanon could serve as prelude to preemptive attack on Iran, Democracy Now!,.

André Levy
http://infoalternativa.org/mundo/mundo170.htm

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