domingo, setembro 10, 2006

«Exigir o pagamento da dívida externa é um crime»

Entrevista a Eric Toussaint

Como, e para o benefício de quem, funcionam as finanças globais? Eric Toussaint, activista belga, historiador, cientista político, membro da CADTM (Comité pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo), membro do conselho científico da ATTAC francesa e membro do conselho internacional do Fórum Social Mundial, defende, juntamente com Damien Millet, o perdão da dívida externa dos países em desenvolvimento. No livro 50 Perguntas, 50 Respostas sobre a Dívida. O FMI e o Banco Mundial (Boitempo, 2006), ele analisa os mecanismos utilizados pelos países ricos para exercer um domínio, que se constitui como «uma nova forma de colonização», praticada por intermédio das dívidas dos países de terceiro mundo e da acção das instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BIRD).

O livro e o seu pensamento foram o tema da entrevista que a IHU On-Line realizou com ele, por telefone. Nela, ele também fala da conjuntura nacional e latino-americana.

IHU ON-LINE – Porque a dívida externa é definida como um grande estelionato?

ERIC TOUSSAINT – O montante pagável em termos de serviço da dívida externa ou interna pública é calculado em uma quantidade muito maior do que a dívida inicial. Através do pagamento, os países endividados transferem, a preços muito altos, a dívida original. A segunda questão é que os países ou os órgãos credores são, na sua maioria, bancos privados ou o que se chama de investidores institucionais, que são os fundos de pensões ou sociedades secretas de segurança pública. São esses credores privados os possessores do dinheiro e os países endividados têm a dívida que é, na sua maioria, em muitos aspectos, uma dívida odiosa, nula, por várias razões. O país que contrai a dívida possui um regime do tipo despótico, militar. É o caso do Brasil, onde houve o regime de ditadura militar entre 1964 e 1985. Em outros países, as ditaduras militares prolongaram­‑se até aos anos 1990, como a Indonésia, onde a ditadura durou de 1965 a 1998, o Congo, de 1965 a 1995, ou o regime do Apartaid, na África, dos anos 1940 até 1994. Grande parte da dívida dos países ditadores em desenvolvimento é uma dívida na sua maioria odiosa, e as novas dívidas que foram contratadas depois da queda das ditaduras servem para pagar as antigas dívidas contraídas pela ditadura. Então, continuar a exigir o pagamento da dívida externa, para mim, é de certa forma um crime. Uma exigência que não tem base nem ética, nem moral, nem é economicamente aceitável.

Não há um resquício de fundamento moral da dívida externa?

Se uma dívida tivesse sido contratada por um regime democrático, com um projecto que tivesse verdadeiramente permitido ajudar o país, e em boas condições económicas, com taxas de juros normais, por exemplo, poderíamos dizer que tal dívida moralmente tem o compromisso da parte de um dos dois lados para reembolsá-la. Mas, como respondi na pergunta anterior, a maioria das dívidas actuais não responde a esses critérios, portanto é imoral exigir o pagamento desse tipo de dívida, e também me parece imoral um governo do sul continuar a pagar tal dívida odiosa.

Quais são as principais mentiras ou distorções no que diz respeito à dívida externa?

A principal mentira refere­‑se a algo que é absolutamente fundamental, e que está, em parte, na origem do problema: os grandes órgãos financeiros internacionais, sejam eles públicos, como o Fundo Monetário Internacional, ou sejam eles privados, como os grandes bancos privados, assim como os governos do norte, afirmam há décadas que os países em vias de desenvolvimento precisam de ter dívidas se quiserem desenvolver­‑se. Explico-me: a teoria económica dominante nas universidades afirma que os países em desenvolvimento encontram um obstáculo na sua via de desenvolvimento, porque a sua conta poupança anterior é insuficiente. Então, diz­‑se que a poupança local é insuficiente. Falta capital no país. Logo, o país em desenvolvimento, se quiser desenvolver-se, deve procurar capital no exterior, endividando­‑se, contratando empréstimos junto dos órgãos estrangeiros, sejam eles privados ou públicos.

A FUGA DO CAPITAL

Diz-se também, e é a corrente actual, que os países em vias de desenvolvimento devem atrair o capital estrangeiro. Para mim, isso é uma grande mentira. Pois, na verdade, o problema dos países em desenvolvimento não é uma insuficiência de poupança local. O problema dos países em desenvolvimento é que os capitais que existem nesses países, em geral, deixam o país. Há uma fuga de capital e, em segundo lugar, quando eles investem no país, fazem­‑no de uma maneira improdutiva. Eles investem, por exemplo, em investimentos rentáveis, principalmente nos empréstimos. Se olharmos hoje, no Brasil, há muitos capitais, mas eles são emprestados pelos bancos brasileiros privados ou por instituições públicas no contexto da dívida pública e do endividamento público dos poderes públicos, o que serve para pagar a dívida pública.

O SUL EM CÍRCULO VICIOSO

Quero dizer que há um círculo vicioso. Os capitais do sul não são utilizados no investimento produtivo. Eles são, na maioria das vezes, emprestados para o pagamento da dívida pública. Aí é que está o problema. É que nos países do sul há uma má utilização da poupança interna e dos capitais. Principalmente pelas classes ricas, a classe que dispõe de capital e que não o utiliza suficientemente para um investimento produtivo. E há uma má utilização de capitais pelo poder público, que não investe suficientemente na criação de empregos, nas despesas sociais para aumentar a qualidade de vida, nas despesas de infra­‑estrutura para aumentar o potencial económico do país. O poder público dos países do sul, e principalmente o poder público do Brasil, destina mais da metade do orçamento do Estado ao pagamento da dívida pública interna e externa. Então, o problema, em resumo, dos países do sul, não é uma insuficiência de capitais, mas a sua má utilização no quadro do sistema capitalista globalizado e da hierarquia que existe na economia mundial.

Na sua opinião, o que é verdadeiramente a dívida externa?

A dívida externa é um mecanismo de transferência de riquezas produzidas pelos assalariados e pelos pequenos e médios produtores dos países em desenvolvimento. É um mecanismo de transferência dessa riqueza, que é produzida pelo trabalhador, para os credores e os financiadores que são as classes mais ricas da sociedade, sejam as classes ricas dos países do sul ou dos países do norte. Então, o mecanismo da dívida é um mecanismo de transferência de riquezas dos pobres aos ricos, dos pobres que trabalham para os ricos que dispõem de capitais. E, em segundo lugar, a dívida é um instrumento político, de dominação política. No momento em que um país está endividado, os seus credores, que são em parte organizações multilaterais, como o Banco Mundial de Acções Monetárias Internacionais, ou um clube multilateral, que é o Clube de Paris, um órgão informal que agrupou os 19 governos dos países mais ricos, exercem uma chantagem sobre os países endividados. Fazem pressão política sobre os países endividados para ditar­‑lhes políticas que correspondem aos interesses das empresas privadas e às grandes estratégias dos países mais ricos. A dívida é transformada num mecanismo de domínio político. Em resumo, a dívida economicamente falando, em primeiro lugar, é um mecanismo de transferência de riquezas e, em segundo lugar, um mecanismo e um instrumento político de dominação.

O Presidente Lula priorizou no seu mandato o pagamento da dívida externa. O que o senhor diz ao presidente e aos brasileiros sobre essa decisão?

Penso que é um erro fundamental. Acredito que o presidente Lula esqueceu de forma voluntária o que ele mesmo dizia, há uma década. Ele próprio afirmava que uma grande parte da dívida pública do Brasil era a dívida inapropriada, pelos argumentos que citei no início desta entrevista. Esses argumentos eram expressos por Luís Inácio Lula da Silva quando ele era dirigente do Partido dos Trabalhadores. Aliás, tive a oportunidade de entrevistá-lo em 1990, 1991, 1992 e 1993. Encontrei-o várias vezes quando ele era presidente do PT. Quando Lula se tornou presidente do Brasil, esqueceu voluntariamente o que ele próprio afirmava.

Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou presidente do Brasil, esqueceu também o que escreveu nos seus livros quando era um dos teóricos da independência. Lula teve o mesmo problema de amnésia voluntária. Penso na decisão de pagar a dívida e ainda de pagá­‑la de uma forma antecipada em décadas, como o Brasil fez no início deste ano, pagando 15 mil milhões de dólares ao Fundo Monetário Internacional. É uma grave decisão, pois, fazendo isso, o Brasil gasta recursos orçamentários absolutamente enormes e estes recursos deveriam antes servir verdadeiramente ao desenvolvimento do Brasil, à aplicação de políticas de reformas estruturais, à aplicação de políticas visando uma melhoria verdadeira das condições de vida da população.

O BOLSA FAMÍLIA

Penso que é totalmente insuficiente conduzir uma política, por exemplo, assistencialista, como o Bolsa Família. Não digo que se deva suprimir esse programa. Digo que o Bolsa Família é totalmente insuficiente. Ele pode ser uma política de curto prazo para melhorar o poder de compra dos mais pobres do Brasil. Mas não é de forma alguma uma política de médio ou longo prazo. As políticas de médio e longo prazo devem consistir em reforços estruturais. É preciso aplicar um outro modelo económico e social no País. O problema do Brasil é que ele reembolsou antecipadamente essa dívida ao Fundo Monetário Internacional, enquanto ele não deveria mais aplicar a mesma disciplina económica e financeira que era imposta pelo FMI. O Brasil, que não é obrigado a fazer isso, por um acordo com o FMI, continua a aplicar o mesmo tipo de política, que corresponde perfeitamente ao Consenso de Washington, que consiste em manter a taxa de juros muito elevada, manter uma liberdade de circulação de capitais total. Logo, ele está a suprimir todo o controle sobre a movimentação de capitais, favorecendo a abertura comercial total, favorecendo os investidores, gastando muito pouco em educação e saúde pública, desenvolvendo muito pouco o sector público a nível industrial e económico, em geral. São políticas perfeitamente conformes ao Consenso de Washington, com os interesses das grandes empresas multinacionais e do grande capital brasileiro, como o sector de agro­‑exportação, que quer uma política agressiva de exportação de produtos agrícolas que nem mesmo são transformados, como a soja que o Brasil exporta no mercado mundial.

O senhor acha que é coerente a função do programa Bolsa Família e o facto do presidente empregar, ao mesmo tempo, essa política submissa ao Consenso de Washington?

Sim. Tudo é coerente. O Consenso de Washington prevê o que se chama uma política direccionada para os mais pobres. É uma política que existe também nos países neoliberais como os EUA e a Grã­‑Bretanha. Pode-se combinar uma política bastante favorável aos grandes capitais e, ao mesmo tempo, em relação aos sectores da população que estão na indigência, fazer alguns programas sociais. Fazer programas sociais assistencialistas não é, em absoluto, romper com o modelo neoliberal. Romper com este modelo é tentar terminar com a pobreza e não reduzi­‑la. Um modelo económico que tenta romper com o modelo neoliberal não consiste em um programa assistencialista direccionado aos pobres, mas em um programa de ruptura integrado, em garantir o direito dos pobres e em fazer com que os pobres não sejam mais pobres. Principalmente criando empregos. Isso exige reforçar o sector público e ter uma política ofensiva de criação de emprego. Não digo que é preciso suprimir o sector privado, digo que é preciso reforçar o sector público. E que é preciso reforçar o sector privado dos pequenos e médios produtores, das cooperativas no sector agrícola, na produção urbana, lutando para transformar o sector informal em sector formal, funcionando com normas salariais, com contratos de trabalho legais. O que implica, principalmente, favorecer um regime de artesãos, de trabalhadores independentes, cooperativas, etc. Então, um modelo alternativo é um modelo que favorece fortemente o emprego no sector público e no sector dos pequenos produtores urbanos e rurais, em diferentes formas de trabalho e de empresas. Isso poderia fornecer milhões de empregos decentes para os brasileiros e isso permitiria combater radicalmente a pobreza.

O que o senhor pensa dos governos actuais na América latina? O senhor acha que há casos de presidentes populistas?

Depende do que chamamos de populismo. Se o populismo consiste em fazer o assistencialismo para ser eleito, para ter uma clientela que vai reeleger o presidente, Lula é populista. Se (é seguidamente a direita quem diz isso), ser populista é tentar redistribuir a riqueza dos ricos para os pobres, então penso que o termo populista, neste caso, não é um termo pejorativo. A direita considera negativo redistribuir a riqueza, favorecendo os pobres, mas, para mim, isso não é nem um pouco pejorativo. Se ser populista é tentar redistribuir a riqueza em favor dos pobres, então desejo que haja muitos populistas. Se você me perguntar se há governos na América Latina, hoje, que tentam fazer transformações sociais e económicas, que vão além da política do governo Lula, diria que, de maneira nuançada, o governo do presidente Evo Morales, na Bolívia, e o governo do presidente Hugo Chávez, na Venezuela, tentam ir além do que Lula faz. Penso que há uma tentativa de realizar, nestes países, transformações estruturais. Penso, principalmente, que pela decisão tomada por Evo Morales de retomar o controle sobre os recursos naturais da Bolívia, principalmente sobre o gás, e de impor às sociedades estrangeiras, como a Petrobrás, renegociações de contratos de maneira que estas empresas estrangeiras redistribuam, de forma que a população boliviana tenha uma parte importante dos benefícios. Parece-me uma medida muito positiva. Não se trata ainda de grandes mudanças estruturais, mas vai ao menos mais longe do que Lula, e vai em boa direcção. É por isso que sou tão crítico em relação a Lula. Apoio com espírito céptico Evo Morales e Hugo Chávez, pois penso que eles tentam, em todo o caso, ir mais longe.

Na sua opinião, qual seria o argumento que os países emergentes poderiam utilizar para renegociar a dívida externa com os países credores do norte? O senhor acha que este é o bom momento para fazer isso?

Sim, penso que a conjuntura actual é muito favorável, pois todos os países em desenvolvimento, ou quase todos, são bastante condicionados. A maioria dos países da América Latina, da Ásia e alguns da África estão em condições financeiras, monetárias, económicas, de conjuntura favorável. O nível das suas reservas, em divisas fortes, aumentou sensivelmente nos três últimos anos, graças a uma situação internacional na qual o preço da matéria-prima aumentou (e os países do sul são exportadores de matéria-prima), bem como os seus rendimentos em divisas fortes, como o dólar, o euro, o yen japonês, a libra esterlina. Os pagamentos em divisas aumentaram. Então, essas são excelentes condições para fazer um fundo de países endividados e exigir uma renegociação completa com vista a obter a redução da dívida. É uma situação favorável, porque se os países do norte podem cessar as represálias, os países do sul têm reservas em moedas estrangeiras que lhes permitem controlarem, importar os produtos dos quais eles têm necessidade para o seu funcionamento econômico. O mais difícil para impor­‑se numa renegociação económica, quando se é um país endividado, é quando se tem pouco dinheiro no cofre, quando se tem pouco dinheiro em reserva.

AGORA É O MOMENTO

Temo, infelizmente, que os governos do sul não utilizem a conjuntura actual favorável. Temo que a conjuntura mude progressivamente nos próximos anos. E isso pode ser bem rápido, pois o preço da matéria­‑prima corre o risco de baixar fortemente. O preço das matérias­‑primas está elevado. O que conduz normalmente a um grande investimento nesse sector. Então, aumenta-se fortemente a oferta de matéria­‑prima no mercado mundial. Isso vai provocar a queda no seu preço. Não falo do petróleo, que é um caso diferente. Mas no sector de minerais há uma grande produção actual e o preço corre o risco de cair. Em segundo lugar, os EUA e a Europa, e até mesmo o Japão actualmente tentam aumentar muito a taxa de comissão nos seus países. A comissão era bastante baixa nos países do norte, muito mais baixa que no Brasil, por exemplo. E os países do norte aumentam a taxa de comissão para atrair os capitais que se encontram nos países do sul. Principalmente nas bolsas do sul, como a Bovespa, ou a bolsa de valores na Índia, na Tailândia, no México. Então, o que está a acontecer e que se vai reforçar nos próximos meses e anos é que há novamente uma fuga de capitais, do sul em direcção ao norte. E, talvez, a mais ou menos curto prazo, haverá uma queda do preço da matéria-prima. Isso vai tornar a situação dos países em desenvolvimento muito mais difícil. Isso vai certamente forçar os governos a repensar a negociação da dívida em condições muito mais desfavoráveis do que hoje.

Na sua opinião, quais são os países que administram bem a questão do pagamento da dívida externa?

Infelizmente penso que nenhum governo hoje administra correctamente a questão da dívida. A maioria dos governos, e é o caso mesmo do governo de Hugo Chávez, continua a pagar regularmente a dívida pública enquanto que uma boa política consistiria em organizar, enquanto governo, uma auditoria da dívida pública externa e interna. Seria também necessário inspirar-se no governo do presidente Rodriguez Saá, na Argentina, em Dezembro de 2001, e depois no presidente Kirchner, que durante 3 anos pararam de pagar a dívida externa pública aos credores privados. Isso durou todo o ano de 2002, 2003 e 2004. Eles negociaram com os credores privados e obtiveram uma redução da dívida externa, da ordem de 60%. Isso demonstra que é possível, por atitude firme, o não pagamento da dívida. É possível obter­‑se uma redução desta. Mas penso que a Argentina deveria ter ido mais longe e teria obtido uma maior redução. Mas, pelo menos, a Argentina demonstra que com certa firmeza podem-se obter resultados interessantes.

O que pode acontecer no caso dos países em desenvolvimento não aproveitarem a conjuntura actual para renegociar o pagamento da dívida?

Vão continuar a fazer depósitos extremamente grandes para pagarem a dívida externa e, para poderem fazer esses pagamentos, vão aumentar ainda mais as suas dívidas. Pois é preciso saber que, para pagar, os países contratam novas dívidas. Então, Lula anunciou que estava a pagar antecipadamente ao FMI 15 mil milhões de dólares. Mas, para poder fazer isso, o Brasil fez duas coisas: desfez-se das suas reservas e contraiu novas dívidas junto a organismos privados. Para reembolsar o FMI, que é um órgão público, ele contraiu novas dívidas junto a órgãos privados. Então como esses países actualmente não fazem auditoria e não constituem um grupo de países endividados, para não pagarem? Como esses países continuam a pagar, aumentam as suas dívidas externas e internas? O Brasil aumenta muito a dívida interna. E isso produz um círculo vicioso como falei antes. Acredito que isso vai terminar provocando protestos populares importantes. Como, talvez, o que vimos em Dezembro de 2001 na Argentina, quando o povo se manifestou contra o presidente De La Rua. Talvez isso aconteça em caso de degradação da situação económica internacional. Talvez isso vá provocar grandes mobilizações populares e aí os governos estarão com a mesma pressão de De La Rua, obrigados a mudar de política.

Qual país representa actualmente a liderança na América Latina?

Do ponto de vista das iniciativas latino-americanas mais importantes, incontestavelmente é a Venezuela. Enquanto que teria sido perfeitamente normal que fosse Lula, que foi eleito em Outubro de 2002 com excelente resultado eleitoral. Teria sido legítimo que o Brasil do presidente Lula, a partir de 2003, desempenhasse um papel de completa liderança, reforçando iniciativas para o conjunto da América Latina. Ora, constatamos que Lula, mesmo quando faz propostas internacionais, são propostas que se parecem muito com as propostas feitas por presidentes de direita como Jacques Chirac, na França, ou do primeiro­‑ministro social­‑democrata da Espanha, Zapatero, ou ainda de Tony Blair, na Grã-Bretanha. E no plano latino-americano, Lula não tem nenhuma iniciativa. É Chávez quem tem iniciativa, propondo um banco do sul, uma universidade do sul, uma moeda do sul. Propondo ao Brasil adoptar grandes projectos de comunicação e de infra-estrutura. E Lula, em certos casos, aceita as propostas de Hugo Chávez tentando moderá­‑lo. Quando Chávez consegue tomar iniciativas, é seguido por Evo Morales, pois a Bolívia é um pequeno país e não tem o tamanho e o peso económico da Argentina. Então, as muito boas propostas de Chávez e Morales são atenuadas no momento em que negoceiam com os seus colegas Lula, Kirchner e Tabaré Vasquez. Foi o caso principalmente das discussões que ocorreram no Fórum do Mercosul, há algumas semanas, em Córdoba. Chegou-se a compromissos, mas as questões novas que foram abordadas sob o impulso de Chávez foram muito moderadas. Principalmente sobre a criação de um banco do sul. O que é um sinal positivo, mas insuficiente. Seria necessário, antes de manter o Mercosul no seu quadro actual, reformar profundamente o Mercosul e fazer um projecto continental e não somente um projecto económico que estaria no contexto neoliberal. Seria necessário um projecto que visasse uma transformação social.

Qual é a definição da política económica do governo Lula e quais seriam as consequências dessa política para o país?

A definição é muito simples. É um modelo de desenvolvimento económico neoliberal, submetido ao domínio do mercado mundial. O Brasil é algumas vezes economicamente ofensivo no sector da agro­‑exportação, mas num contexto totalmente neoliberal. Ou seja, o Brasil apoia grandes empresas brasileiras exportadoras, principalmente de soja, que é, aliás, uma soja transgénica. Nesse caso, Lula é ofensivo, pois exige da parte dos EUA e da União Europeia que abram os seus mercados. Então, é um modelo neoliberal de trocas livres que é aplicado por Lula. E essa política, se houver uma degradação da situação de políticas económicas nos próximos anos com, principalmente, uma fuga de capitais do sul em direcção ao norte, um aumento das comissões no plano internacional e uma queda nos preços das matérias-primas, isso vai causar no Brasil uma degradação da sua situação no mercado mundial e uma estagnação económica. E talvez, infelizmente, uma degradação das condições de vida da população. Corremos o risco de constatar em 2 ou 3 anos um aumento bastante importante do endividamento público interno e externo e da obrigação do Brasil em receber grandes cortes no seu orçamento público para continuar a pagar uma dívida que, no entanto, já foi paga diversas vezes.

Como a mobilização pela anulação da dívida externa é vista nos países ricos?

Nos países do norte há importantes comissões que se estabeleceram. O grupo de sindicatos e das organizações não governamentais, movimentos religiosos progressistas, organizações cidadãs, conduzem campanhas junto à opinião pública, junto aos parlamentares para pedir a anulação da dívida dos países do sul, para pedir uma reforma radical ou a abolição das instituições internacionais que são o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Clube de Paris. Obtivemos um eco importante na opinião pública. Isso constata­‑se em sondagens, observa­‑se quando colectamos assinaturas em petições. Por exemplo, há alguns anos, colectamos até 24 milhões de assinaturas à escala mundial, das quais 10 milhões que foram colectadas em países do norte, pela anulação da dívida dos países pobres. Temos também uma acção junto a parlamentares. Temos grupos de parlamentares de diferentes partidos progressistas que apresentam projectos de lei que exigem que se faça a auditoria da dívida dos países do sul. Obtivemos resultados interessantes.
http://infoalternativa.org/autores/toussaint/toussaint020.htm

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