sábado, setembro 23, 2006

Nenhuma notícia é fria

De como o óbvio se tornou invisível na pauta de notícias dos actuais media que se dizem "de referência". As notícias que não dão primeiras páginas são "notícias frias". Exemplos: a resistência a potências estrangeiras de palestinos, de iraquianos comuns e de afegãos são "notícias frias" ao passo que as mortíferas maquinações de Bush e Blair são "notícias regulares".
Quando comecei a trabalhar como jornalista havia algo chamado "notícias frias" ("slow news"). Quando nada acontecia dizíamos que eram "dias de notícias frias" — excepto vitórias e tragédias nos lugares distantes onde vivia a maior parte da humanidade. Estas raramente eram relatadas, ou as tragédias eram descartadas como actos da natureza, apesar das provas em contrário. O valor das notícias de todas as sociedades era medido pelo seu relacionamento "connosco" no ocidente e o seu grau de acatamento, ou hostilidade, à nossa autoridade. Se elas não se ajustassem, eram notícias frias. Pouco destas concepções foi alterado. Para mantê-las, milhões de pessoas permanecem invisíveis, e descartáveis. No 11 de Setembro de 2001, enquanto o mundo lamentava as mortes de quase 3000 pessoas nos Estados Unidos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) relatava que mais de 36 mil crianças haviam morrido devido aos efeitos da pobreza extrema. Elas foram notícias muito frias. Vamos tomar uns poucos exemplos recentes e comparar cada uma delas com as notícias regulares vistas na BBC e alhures. Manter em mente que os palestinos são cronicamente notícias frias e que os israelenses são notícias regulares. Notícia regular: Charles Clarke, porta-voz de Tony Blair, "revive a batalha de Downing Street" e chama Gordon Brown de "estúpido, estúpido" e um "obcecado pelo controle". Ele desaprovou o modo como Brown sorri. A isto é dada cobertura até à saturação. Notícia fria: "Um genocídio está a verificar-se em Gaza", adverte Ilan Pappe, um dos principais historiadores de Israel. "Esta manhã... outros três cidadãos de Gaza foram mortos e uma família inteira ferida. Isto é a colheita da manhã, antes do fim do dia muitos mais serão massacrados". Notícia regular: Blair visita a Cisjordania e o Líbano como um "pacificador" um "intermediário" entre o primeiro ministro israelense e o "moderado" presidente palestino. Mantendo uma expressão indiferente, ele adverte contra "actuações mediáticas" ("grandstanding") e "distribuir a culpa". Notícia fria: Quando o exército israelense atacou a Cisjordania em 2002, arrasando casas, matando civis e destruindo lares e museus, Blair foi avisado previamente e deu "o sinal verde". Ele também foi advertido acerca dos recentes ataques israelenses a Gaza e ao Líbano. Notícia regular: Blair disse ao Irão para prestar atenção ao Conselho de Segurança da ONU e "não avançar com um programa nuclear". Notícia fria: O ataque israelense ao Líbano fazia parte de uma sequência de operações militares planeadas cuidadosamente, das quais a próxima é o Irão. As forças americanas estão prontas para destruir 10 mil alvos. Os EUA e Israel contemplam a utilização de armas nucleares tácticas contra o Irão, muito embora o programa de armas nucleares do Irão não exista. Notícia regular: "Temos estado a fazer progresso real em áreas onde a insurgência tem sido mais forte", diz um porta-voz americano no Iraque. Notícia fria: Os militares americanos perderam todo o controle sobre a Província al-Anbar, a ocidente de Bagdad, incluindo as cidades de Faluja e Ramadi, as quais agora estão nas mãos da resistência. Isto significa que os EUA perderam o controle de grande parte do Iraque. Notícia regular: "É bastante claro que tem sido feito progresso real [no Afeganistão]", diz o Foreign Office. Notícia fria: a nato mata 13 civis afegãos, incluindo nove crianças, durante um ataque a fim de "proporcionar cobertura" às tropas com base em Musa Kala, na Província Helmand. Notícia regular: Blair é o primeiro-ministro trabalhista com mais êxito, pois venceu três eleições consecutivas de modo esmagador. Notícia fria: Em 1997, Tony Blair recebeu menos votos populares do que os Conservadores de John Major em 1992. Em 2001, Blair recebeu menos votos populares do que os trabalhistas de Neil Kinnock em 1992. Em 2005, Blair recebeu menos votos populares do que os Conservadores em 1997. As últimas duas eleições produziram os mais baixos comparecimentos desde a cidadania. Notícia regular: Na era de Blair "a ideologia rendeu-se inteiramente aos 'valores'... não há vacas sagradas [e] nem limites fossilizados para o terreno sobre o qual a mente pode estender-se na busca de uma melhor Grã-Bretanha", escreveu Hugo Young, The Guardian, 1997. Notícia fria: "Nuremberg declarou que a guerra agressiva é o supremo crime internacional. Eles [Bush e Blair] deveriam ser julgado juntamente com Saddam Hussein", afirma Benjamin Ferencz, promotor chefe dos crimes nazi em Nuremberg.
John Pilger

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