quinta-feira, setembro 07, 2006

Níger, o mercado da fome

Níger é o país mais pobre do mundo. Melhor, o mais miserável, pois não estamos a falar da sua extensão, nem das suas reservas de urânio, que na verdade são muitíssimas, nem do petróleo que estão a descobrir no norte do país. Esse desértico estado do Sahel africano, terra maldita, ocupa este ano o último lugar (177) na classificação elaborada pelo PNUD [1] de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH –, que se elabora medindo parâmetros como a esperança de vida, a mortalidade infantil, as taxas de escolarização e alfabetização e o PIB por habitante.
O Níger sempre andou pelo fundo dessa dolorosa listagem, como os outros 29 países africanos que tomam lugar entre os 32 mais desgraçados da orbe, mas as consequências da grave crise alimentar acontecida no ano passado, aquela que só nos deixaram ver quando o tsunami asiático perdeu interesse mediático, relegaram o país para esse lugar de onde já não se pode cair, salvo com a extinção da vida.
Um ano antes da fome de 2005 muitas ONG já tinham advertido a ONU do desastre que viria depois de sofrer uma terrível seca e uma praga de gafanhotos que destroçou o reduzido campo nigerino (15% da terra cultivável). Só quando as imagens de centenas de crianças inertes, de cara desorbitada e corpos chupados até ao inimaginável saíram nas televisões do mundo, a comunidade internacional reagiu para contribuir, na forma de débil e cínico gotejo, com os 13 milhões de euros necessários para alimentar urgentemente 3,2 milhões de nigerinos em risco. Foram muito lentos. A um mês do desesperado apelo das agências só tinham chegado ao país 3,8 milhões. E se à desnutrição severa – um em cada quatro menores de 5 anos morre, o que equivale a 160.000 por mês – acrescentamos a indiferença mundial, pois, já sabemos o que se passa.
Milhares de crianças morreram, inclusive nos centros de alimentação, ainda que, tal e como relata o relatório de 2006 [2] da Amnistia Internacional, nunca foram fornecidos dados concretos do desastre, pois Mamadou Karijo, presidente em democracia, sempre se ocupou mais em ocultar as vergonhas do país e a defender a sua gestão do déficit público ante os predadores do FMI do que em alimentar os seus governados.
É verdade que as causas destas crónicas epidemias de fome nos países do Sahel, desde o Níger ao Mali, Mauritânia, Tchad ou Burkina Faso, têm muito de estruturais. O Níger é um país desolado, povoado por milhares de comunidades fundamentalmente nómadas, com pouca educação, inclusive no campo alimentar e sanitário, onde não há electricidade, nem água, nem segurança social e no qual só se encontra um médico por cada 33.000 habitantes. No entanto, não são poucos os que afirmam que o problema não é a falta de comida, mas que a maior parte da população é tão pobre que não tem com que a comprar e, portanto, em momentos de crises a sua capacidade de resposta é nula.
No final sempre chegámos ao mesmo: o mercado, o neoliberalismo. O Níger tem o pior IDH do mundo e gasta mais em pagar a dívida externa do que em educação e saúde. Quando os alimentos se esgotam, as famílias vendem o que têm para os adquirir, inclusive o gado, que pelas leis deste mercado regido pela oferta e a procura e não pelas necessidades da população, hoje não vale nada, enquanto o preço da comida está pelas nuvens. Nesse miserável país a saúde é paga: uma consulta custa 75 cêntimos e um parto seguro 10 euros. E tudo graças às políticas de ajuste estrutural do FMI e do Banco Mundial, segunda as quais há que reduzir seja como for o déficit público para receber ajudas na forma de créditos sangrentos, e que já estão a estudar que os pais paguem aos professores [3] e que impõem a eliminação do controle governamental no preço da gasolina e a privatização dos sistemas de rega no campo, entre outras barbaridades. Outro dado mais: 80% dos deputados são proprietários de terras.
Este ano a colheita no Níger foi melhor, mas as famílias venderam o grão que tinham para pagar as dívidas do ano passado. A Acção Contra a Fome e a UNICEF levam meses avisando de outra catástrofe alimentar para este ano, na qual 3,8 milhões de pessoas – 700.000 meninos e meninas – enfrentam de novo a fome porque não existe um apoio internacional sustentado. A UE contribuiu no mês passado com 10 milhões de euros, mas até então as agências só tinham recebido 51% dos 200 milhões imprescindíveis para salvar a crise deste ano, para que a população sobreviva à chamada “estação da fome”, entre Agosto e Setembro.
Leio que o futebol do Real Madrid pensa pagar cerca de 30 milhões de euros por um tal Mahamadu Diarra. O cúmulo é que o coitadinho é do Mali. Serão as coisas do mercado, mas a mim dão­‑me todos asco.

[1] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Relatório sobre Desenvolvimento Humano 2005 (NT).
[2] Amnistia Internacional, Relatório 2006 (NT).
[3] Ramón Lobo, Níger, infierno en el Sur, El País Semanal, 11/12/2005. Também reproduzido em Rebelión

Manoel Santos
http://www.infoalternativa.org/africa/niger001.htm

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