Se se quiser compreender o que os palestinianos fizeram no dia da eleição, deve‑se ver o filme O paraíso, agora!, que foi nomeado para o Oscar de melhor filme estrangeiro [1], após ter recebido vários prémios internacionais prestigiosos. Explica-o melhor que um milhão de palavras.
Os seus autores – o realizador‑guionista, Hani Abu-Asad, de Nazareth, e os actores, são palestinianos. (Amir Harel, um dos produtores, é um israelense judeu.)
Os dois personagens principais, Said e Khaled, são bombistas‑suicidas. O filme procura responder a uma questão que preocupa todos em Israel, e talvez mesmo no mundo inteiro: Porque o fazem? O que faz com que uma pessoa se levante de manhã e decida fazer-se explodir no meio de uma multidão em Jerusalém ou em Telavive? E algumas pessoas também perguntam: Quem são eles? Qual é a sua história de vida? Como chegaram a ser assim?
Hoje, muito tempo depois de ter sido realizado, o filme também responde a outra questão: Porque é que a grande maioria dos palestinianos elegeu o mesmo grupo que enviou estas pessoas para se fazerem explodir?
O filme responde a estas questões. Não com palavras de ordem, não com discursos de propaganda, nem com um relatório académico. Não prega, louva ou se zanga. Conta uma história. A história diz tudo. E como muitos israelenses o vão ver, permito-me fazer o que geralmente não se faz: contar a história do filme até quase ao fim.
A cena de abertura cria a atmosfera: Suha, uma bonita jovem palestiniana de boa família, crescida em França, aproxima‑se de um posto de controle, uma das inúmeras barragens rodoviárias que pontilham a paisagem da Cisjordânia. Ela enfrenta um soldado intimidante, um rosto com bigode sob um capacete de aço, com um colete à prova de bala. Os seus olhos encontram-se. Ele não fala. Mede‑a de cima a baixo, de baixo para cima. Revista o seu saco, lentamente, lentamente. Os olhos dele não deixam os dela.
Quando termina, devolve-lhe os documentos – quase. Quando ela tenta pegar‑lhes, ele levanta a mão. Que faça um esforço. No fim, sem uma palavra, ordena‑lhe com um movimento de cabeça para seguir.
Só uns minutos – minutos nos quais a humilhação total, o medo mútuo e o ódio fluem conjuntamente. O espectador sente que a mulher está prestes a fazer-se explodir. Mas nada se passa. Ela prossegue.
...Dois jovens, com pouco mais de vinte de anos, em Nablus, a cidade central da Cisjordânia setentrional. Praticamente desempregados, como quase todos os jovens de Nablus. Não têm futuro. Nem esperança. Nem sequer sonhos. Não podem fazer nada para ajudar as suas famílias sem recursos. Vivem no fundo, numa mistura de aborrecimento, de frustração, de desespero. Até a chávena de chá que um rapaz servil mas teimoso lhes vende por 20 cêntimos está fria.
São barbudos, mas não fanáticos. Religiosos como todos, não mais. Nasceram sob a ocupação e vivem sob a ocupação. Nablus está cercado de todos os lados por barragens rodoviárias. Não há trabalho. Não há nada. Apenas abandono e pobreza deprimente. A ocupação é o facto central das suas vidas. Tudo começa com a ocupação, tudo termina com ela.
...Um deles, Said, conhece Suha. Algo faísca entre eles. É então que os dois jovens recebem a mensagem: foram escolhidos. Amanhã levarão a cabo um atentado suicida em Telavive.
...Um edifício abandonado serve como quartel‑general da clandestinidade. Preparações finais: as barbas são cortadas. Os cabelos são cortados. Vestem bons fatos. Tiram a fotografia. Algumas palavras de incentivo, sem pathos, por parte do chefe, uma “pessoa procurada” que é uma lenda viva (ainda a viver). O ataque é uma retaliação pelo “assassinato selectivo” de um camarada.
Os dois olham silenciosamente enquanto são apetrechados com cintos explosivos. São avisados de que estes não podem ser retirados sem explodir. Um momento que arrepia a espinha: os dois vêem a sua fotografia em cartazes que serão exibidos após o feito.
...A caminho. A barreira é cortada. Do outro lado, um jeep do exército aproxima-se de repente. Khaled desliza para trás através da abertura, Said continua o seu caminho para Israel. Chega a uma paragem de autocarro, espera, vê uma mulher a brincar com a sua criança pequena. O autocarro chega. A mulher e a criança entram. No último momento, Said hesita, faz sinal ao motorista para partir – sem ele.
...Entre os camaradas, o pânico sucede‑se. Onde está Said? Desertou? Traiu‑os? Fugiu? Procuram-no por toda a parte. Said, ainda levando o cinto explosivo, volta secretamente a Nablus, procura Khaled. Depara com Suha. Enquanto se abraçam, Suha diz que é o caminho errado, os civis não devem ser molestados, isso não conseguirá a libertação da ocupação. Mas Said suplica ao chefe para o testar de novo, para lhe dar uma segunda oportunidade. Um detalhe importante surge: o pai de Said tinha sido um colaborador e tinha sido executado. Said quer apagar a terrível mancha, a vergonha que o perseguiu desde a sua infância. «Ele era um homem bom, mas fraco», diz. «Os israelenses exploraram a sua fraqueza. São eles os responsáveis».
...Finalmente, os dois camaradas chegam a Telavive. Para os jovens da pobre e destroçada Nablus, Telavive parece algo de um outro mundo – brilhante, rica, inacessível. Arranha‑céus. Raparigas em biquini. Pessoas que se divertem no litoral.
No último momento, Khaled vacila e tenta convencer Said a desistir da missão. Mas Khaled volta a Nablus sozinho. Said continua para vingar a morte do seu pai.
...Última cena: Said senta‑se no autocarro, cercado de soldados e civis. A câmara foca-se nos seus olhos. Os olhos enchem o ecrã. Ficamos petrificados pelo que se vai passar num momento...
Tudo isto é contado numa linguagem cinematográfica sóbria. Quase não há declarações verbais. Na verdade, uma história banal, mesmo com momentos ligeiros: Khaled está a recitar a sua mensagem de despedida perante a câmara de vídeo, a câmara não funciona bem, ele tem de repetir a mensagem comovente uma e outra vez. Os camaradas esperam em volta, comendo. Olha para eles, para e tem de recomeçar. E outra vez. Um interlúdio cómico.
Estudei o rosto das pessoas à saída da cinemateca de Telavive após a sessão. Estavam silenciosas e pensativas. Pela primeira vez na sua vida, tinham visto os terroristas que nos estão a matar, que se fazem explodir entre crianças, homens e mulheres. Vêem jovens comuns, que se comportam e reagem como pessoas comuns. Vêem a ocupação do outro lado, do lado do ocupado.
Sentei‑me na sala de cinema escura, e encontrei‑me numa situação de completa dissonância: nós, as vítimas visadas, que podiam facilmente ter estado sentadas naquele autocarro, vemos tudo através dos olhos do nosso assassino. Um pensamento atravessa-nos: que a força não ajudará aqui. Se matamos aqueles dois, outros dois tomarão o seu lugar. A barreira reterá alguns, mas não todos. O Serviço de Segurança, com a ajuda de colaboradores, impedirá alguns dos ataques, mas não os pode impedir a todos – e as crianças dos colaboradores virão para se vingarem. Enquanto houver pessoas como aquelas, que crescem naquelas condições, algumas delas sempre atingirão os seus alvos.
O filme não fornece soluções. Nem sequer pretende ser equilibrado. Expõe‑nos à face de uma realidade que não conhecemos, de um ângulo ao qual não estamos habituados – e tortura‑nos com a tensão de uma emoção conflituoso.
E talvez também nos incite a pensar numa solução que leve Said e Khaled a virar‑se num sentido diferente. Uma solução que ponha termo à humilhação, ao espezinhamento da dignidade pessoal e nacional, à privação e ao desespero.
Uns dias mais tarde, vi outro filme que foi nomeado para os Oscars, o muito elogiado filme de Steven Spielberg, Munique. Acontece que o vi na Alemanha, não muito longe da própria Munique.
Ao deixar o cinema, o meu anfitrião alemão quis saber o que pensava dele. Espontaneamente, sem pensar, disse o que tinha sentido incessantemente: «Nojento!»
Só mais tarde tive tempo de pôr em ordem as impressões que tinha acumulado durante este muito longo filme. O que me tinha enojado tanto?
Antes de mais, o estilo Spielberg, uma combinação da mais elevada técnica cinematográfica e do mais baixo conteúdo cultural. Tem pretensões à profundidade, com percepções novas e reveladoras, mas basicamente não é mais do que outro western americano, onde os bons trucidam os maus e o sangue flui como água.
Alguns políticos judeus protestaram contra o filme porque punha ao mesmo nível os “terroristas” e os “vingadores”. E de facto, várias vezes no filme, os “terroristas” puderam pronunciar algumas frases em sua defesa, sobre a injustiça que lhes foi feita pelos Judeus e sobre o seu direito a uma pátria. Mas isso não é mais do que conversa, uma aparência, a fim de dar uma impressão de equilíbrio. Mas, no retrato do ataque de Munique – fragmentos do qual estão dispersos ao longo do filme – os árabes aparecem como criaturas miseráveis, feias, despenteadas, cobardes, o exacto oposto de Avner, o vingador israelense, que é bonito e correcto, corajoso e bem posto – em suma, o irmão mais novo de Ari Ben Canaan, o super‑homem de “Exodus”.
Os Árabes não têm dilemas de consciência, mas os israelense têm escrúpulos em cada intervalo entre assassinatos. Hesitam a todo o tempo quando fazem explodir/disparam/abatem um dos seus “alvos” – o que fazem, evidentemente, só depois de terem assegurado a segurança da esposa e das crianças da vítima. Não são simplesmente assassinos, são assassinos judeus. Como diz um slogan satírico israelense: “Dispara e chora.»
A apresentação do próprio caso é bastante manipulativa. Esconde do espectador alguns factos muito relevantes. Por exemplo:
– Que as autópsias mostraram que nove dos 11 atletas israelenses foram mortos pelas balas de polícias alemães pateticamente mal treinados. (Os relatórios de autópsia são mantidos em segredo até hoje, tanto em Israel como na Alemanha. Mas uma pessoa poderosa como Spielberg deveria ter conhecimento deles.)
- Que foi Golda Meir e os seus colegas alemães – grandes heróis, cada um deles – que selaram o destino dos reféns, quando rejeitaram o pedido dos raptores de levá‑los para um país árabe, onde certamente seriam trocados por prisioneiros palestinianos detidos em Israel.
– Que os Palestinianos, que foram mortos em represálias por Munique, nada tinham a ver com o caso. A Mossad estava à procura de alvos fáceis e escolheu diplomatas da OLP colocados em capitais europeias, que estavam bastante desprotegidos.
Mas sobretudo, fiquei enojado pela vulgaridade spielbergiana que percorre todo o filme, incluindo cenas de sexo explícito que são simultaneamente gratuitas e particularmente inestéticas.
O filme em nada contribui para a compreensão do conflito. É basicamente um banal filme de gangsteres, que Spielberg centrou no conflito israelo‑palestiniano a fim de se pôr em melhor posição para os há muito esperados Oscars que lhe escaparam até agora.
[1] Já depois da publicação deste artigo, o filme recebeu esse prémio (NT).
Uri Avnery http://www.infoalternativa.org/autores/avnery/avnery063.htm
Os seus autores – o realizador‑guionista, Hani Abu-Asad, de Nazareth, e os actores, são palestinianos. (Amir Harel, um dos produtores, é um israelense judeu.)
Os dois personagens principais, Said e Khaled, são bombistas‑suicidas. O filme procura responder a uma questão que preocupa todos em Israel, e talvez mesmo no mundo inteiro: Porque o fazem? O que faz com que uma pessoa se levante de manhã e decida fazer-se explodir no meio de uma multidão em Jerusalém ou em Telavive? E algumas pessoas também perguntam: Quem são eles? Qual é a sua história de vida? Como chegaram a ser assim?
Hoje, muito tempo depois de ter sido realizado, o filme também responde a outra questão: Porque é que a grande maioria dos palestinianos elegeu o mesmo grupo que enviou estas pessoas para se fazerem explodir?
O filme responde a estas questões. Não com palavras de ordem, não com discursos de propaganda, nem com um relatório académico. Não prega, louva ou se zanga. Conta uma história. A história diz tudo. E como muitos israelenses o vão ver, permito-me fazer o que geralmente não se faz: contar a história do filme até quase ao fim.
A cena de abertura cria a atmosfera: Suha, uma bonita jovem palestiniana de boa família, crescida em França, aproxima‑se de um posto de controle, uma das inúmeras barragens rodoviárias que pontilham a paisagem da Cisjordânia. Ela enfrenta um soldado intimidante, um rosto com bigode sob um capacete de aço, com um colete à prova de bala. Os seus olhos encontram-se. Ele não fala. Mede‑a de cima a baixo, de baixo para cima. Revista o seu saco, lentamente, lentamente. Os olhos dele não deixam os dela.
Quando termina, devolve-lhe os documentos – quase. Quando ela tenta pegar‑lhes, ele levanta a mão. Que faça um esforço. No fim, sem uma palavra, ordena‑lhe com um movimento de cabeça para seguir.
Só uns minutos – minutos nos quais a humilhação total, o medo mútuo e o ódio fluem conjuntamente. O espectador sente que a mulher está prestes a fazer-se explodir. Mas nada se passa. Ela prossegue.
...Dois jovens, com pouco mais de vinte de anos, em Nablus, a cidade central da Cisjordânia setentrional. Praticamente desempregados, como quase todos os jovens de Nablus. Não têm futuro. Nem esperança. Nem sequer sonhos. Não podem fazer nada para ajudar as suas famílias sem recursos. Vivem no fundo, numa mistura de aborrecimento, de frustração, de desespero. Até a chávena de chá que um rapaz servil mas teimoso lhes vende por 20 cêntimos está fria.
São barbudos, mas não fanáticos. Religiosos como todos, não mais. Nasceram sob a ocupação e vivem sob a ocupação. Nablus está cercado de todos os lados por barragens rodoviárias. Não há trabalho. Não há nada. Apenas abandono e pobreza deprimente. A ocupação é o facto central das suas vidas. Tudo começa com a ocupação, tudo termina com ela.
...Um deles, Said, conhece Suha. Algo faísca entre eles. É então que os dois jovens recebem a mensagem: foram escolhidos. Amanhã levarão a cabo um atentado suicida em Telavive.
...Um edifício abandonado serve como quartel‑general da clandestinidade. Preparações finais: as barbas são cortadas. Os cabelos são cortados. Vestem bons fatos. Tiram a fotografia. Algumas palavras de incentivo, sem pathos, por parte do chefe, uma “pessoa procurada” que é uma lenda viva (ainda a viver). O ataque é uma retaliação pelo “assassinato selectivo” de um camarada.
Os dois olham silenciosamente enquanto são apetrechados com cintos explosivos. São avisados de que estes não podem ser retirados sem explodir. Um momento que arrepia a espinha: os dois vêem a sua fotografia em cartazes que serão exibidos após o feito.
...A caminho. A barreira é cortada. Do outro lado, um jeep do exército aproxima-se de repente. Khaled desliza para trás através da abertura, Said continua o seu caminho para Israel. Chega a uma paragem de autocarro, espera, vê uma mulher a brincar com a sua criança pequena. O autocarro chega. A mulher e a criança entram. No último momento, Said hesita, faz sinal ao motorista para partir – sem ele.
...Entre os camaradas, o pânico sucede‑se. Onde está Said? Desertou? Traiu‑os? Fugiu? Procuram-no por toda a parte. Said, ainda levando o cinto explosivo, volta secretamente a Nablus, procura Khaled. Depara com Suha. Enquanto se abraçam, Suha diz que é o caminho errado, os civis não devem ser molestados, isso não conseguirá a libertação da ocupação. Mas Said suplica ao chefe para o testar de novo, para lhe dar uma segunda oportunidade. Um detalhe importante surge: o pai de Said tinha sido um colaborador e tinha sido executado. Said quer apagar a terrível mancha, a vergonha que o perseguiu desde a sua infância. «Ele era um homem bom, mas fraco», diz. «Os israelenses exploraram a sua fraqueza. São eles os responsáveis».
...Finalmente, os dois camaradas chegam a Telavive. Para os jovens da pobre e destroçada Nablus, Telavive parece algo de um outro mundo – brilhante, rica, inacessível. Arranha‑céus. Raparigas em biquini. Pessoas que se divertem no litoral.
No último momento, Khaled vacila e tenta convencer Said a desistir da missão. Mas Khaled volta a Nablus sozinho. Said continua para vingar a morte do seu pai.
...Última cena: Said senta‑se no autocarro, cercado de soldados e civis. A câmara foca-se nos seus olhos. Os olhos enchem o ecrã. Ficamos petrificados pelo que se vai passar num momento...
Tudo isto é contado numa linguagem cinematográfica sóbria. Quase não há declarações verbais. Na verdade, uma história banal, mesmo com momentos ligeiros: Khaled está a recitar a sua mensagem de despedida perante a câmara de vídeo, a câmara não funciona bem, ele tem de repetir a mensagem comovente uma e outra vez. Os camaradas esperam em volta, comendo. Olha para eles, para e tem de recomeçar. E outra vez. Um interlúdio cómico.
Estudei o rosto das pessoas à saída da cinemateca de Telavive após a sessão. Estavam silenciosas e pensativas. Pela primeira vez na sua vida, tinham visto os terroristas que nos estão a matar, que se fazem explodir entre crianças, homens e mulheres. Vêem jovens comuns, que se comportam e reagem como pessoas comuns. Vêem a ocupação do outro lado, do lado do ocupado.
Sentei‑me na sala de cinema escura, e encontrei‑me numa situação de completa dissonância: nós, as vítimas visadas, que podiam facilmente ter estado sentadas naquele autocarro, vemos tudo através dos olhos do nosso assassino. Um pensamento atravessa-nos: que a força não ajudará aqui. Se matamos aqueles dois, outros dois tomarão o seu lugar. A barreira reterá alguns, mas não todos. O Serviço de Segurança, com a ajuda de colaboradores, impedirá alguns dos ataques, mas não os pode impedir a todos – e as crianças dos colaboradores virão para se vingarem. Enquanto houver pessoas como aquelas, que crescem naquelas condições, algumas delas sempre atingirão os seus alvos.
O filme não fornece soluções. Nem sequer pretende ser equilibrado. Expõe‑nos à face de uma realidade que não conhecemos, de um ângulo ao qual não estamos habituados – e tortura‑nos com a tensão de uma emoção conflituoso.
E talvez também nos incite a pensar numa solução que leve Said e Khaled a virar‑se num sentido diferente. Uma solução que ponha termo à humilhação, ao espezinhamento da dignidade pessoal e nacional, à privação e ao desespero.
Uns dias mais tarde, vi outro filme que foi nomeado para os Oscars, o muito elogiado filme de Steven Spielberg, Munique. Acontece que o vi na Alemanha, não muito longe da própria Munique.
Ao deixar o cinema, o meu anfitrião alemão quis saber o que pensava dele. Espontaneamente, sem pensar, disse o que tinha sentido incessantemente: «Nojento!»
Só mais tarde tive tempo de pôr em ordem as impressões que tinha acumulado durante este muito longo filme. O que me tinha enojado tanto?
Antes de mais, o estilo Spielberg, uma combinação da mais elevada técnica cinematográfica e do mais baixo conteúdo cultural. Tem pretensões à profundidade, com percepções novas e reveladoras, mas basicamente não é mais do que outro western americano, onde os bons trucidam os maus e o sangue flui como água.
Alguns políticos judeus protestaram contra o filme porque punha ao mesmo nível os “terroristas” e os “vingadores”. E de facto, várias vezes no filme, os “terroristas” puderam pronunciar algumas frases em sua defesa, sobre a injustiça que lhes foi feita pelos Judeus e sobre o seu direito a uma pátria. Mas isso não é mais do que conversa, uma aparência, a fim de dar uma impressão de equilíbrio. Mas, no retrato do ataque de Munique – fragmentos do qual estão dispersos ao longo do filme – os árabes aparecem como criaturas miseráveis, feias, despenteadas, cobardes, o exacto oposto de Avner, o vingador israelense, que é bonito e correcto, corajoso e bem posto – em suma, o irmão mais novo de Ari Ben Canaan, o super‑homem de “Exodus”.
Os Árabes não têm dilemas de consciência, mas os israelense têm escrúpulos em cada intervalo entre assassinatos. Hesitam a todo o tempo quando fazem explodir/disparam/abatem um dos seus “alvos” – o que fazem, evidentemente, só depois de terem assegurado a segurança da esposa e das crianças da vítima. Não são simplesmente assassinos, são assassinos judeus. Como diz um slogan satírico israelense: “Dispara e chora.»
A apresentação do próprio caso é bastante manipulativa. Esconde do espectador alguns factos muito relevantes. Por exemplo:
– Que as autópsias mostraram que nove dos 11 atletas israelenses foram mortos pelas balas de polícias alemães pateticamente mal treinados. (Os relatórios de autópsia são mantidos em segredo até hoje, tanto em Israel como na Alemanha. Mas uma pessoa poderosa como Spielberg deveria ter conhecimento deles.)
- Que foi Golda Meir e os seus colegas alemães – grandes heróis, cada um deles – que selaram o destino dos reféns, quando rejeitaram o pedido dos raptores de levá‑los para um país árabe, onde certamente seriam trocados por prisioneiros palestinianos detidos em Israel.
– Que os Palestinianos, que foram mortos em represálias por Munique, nada tinham a ver com o caso. A Mossad estava à procura de alvos fáceis e escolheu diplomatas da OLP colocados em capitais europeias, que estavam bastante desprotegidos.
Mas sobretudo, fiquei enojado pela vulgaridade spielbergiana que percorre todo o filme, incluindo cenas de sexo explícito que são simultaneamente gratuitas e particularmente inestéticas.
O filme em nada contribui para a compreensão do conflito. É basicamente um banal filme de gangsteres, que Spielberg centrou no conflito israelo‑palestiniano a fim de se pôr em melhor posição para os há muito esperados Oscars que lhe escaparam até agora.
[1] Já depois da publicação deste artigo, o filme recebeu esse prémio (NT).
Uri Avnery http://www.infoalternativa.org/autores/avnery/avnery063.htm
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