Esta análise foi escrita ao décimo dia de guerra, quando os tanques israelitas se concentravam junto à fronteira do Sul do Líbano e Condoleezza Rice anunciava que o cessar‑fogo demoraria o tempo que fosse preciso... As cartas e os planos estão lançados. Mas eles dão por adquirida a derrota das resistências.
Quase um mês após a entrada dos tanques de Israel em Gaza e ao décimo dia de combates no Líbano, contabilizam‑se mortos e feridos. Respectivamente 300 e mil, do lado libanês; 100 e 400, em Gaza; e ainda 28 e uma centena, em Israel. Não há mortes boas. Mas as diferenças falam do preço que cada povo está a pagar e da diferença de meios militares de cada um. Aos mortos e feridos seguem-se os deslocados. Mas também aqui o drama ilude: meio milhão no Líbano e outro tanto em Israel. Mas nenhum em Gaza, porque de Gaza, a prisão, não se sai nem se entra. As imagens televisivas fixam o resto, algo do que não se contabiliza – a dor dos vivos, o medo, a raiva ou o desespero. Registam ainda a destruição – em Israel, algumas casas; no Líbano e na Palestina, a destruição de todos os serviços públicos e principais vias de comunicação. Ao décimo dia de combates, sabe-se que a resistência libanesa ainda se bate. É ela o David que afronta, sem aviões, barcos ou artilharia digna desse nome, um dos mais poderosos exércitos do planeta – e seguramente dos mais eficazes. E ao décimo dia de combates, Gaza e a Cisjordânia, onde tudo começou e onde tudo ainda continua, passaram a notas de rodapé dos serviços noticiosos.
CACOFONIA OCIDENTAL
Ao décimo dia de combates, a confusão grassa na Comunidade Internacional, contrariando o unanimismo dos primeiros dias, onde, a uma só voz, se responsabilizavam Hamas e Hezbollah pela crise. Kofi Annan anuncia um plano de paz, mas este não se ouve entre bombas. Condoleezza Rice refreou de imediato os ímpetos do secretário‑geral das Nações Unidas: «um cessar-fogo é uma falsa promessa se apenas for um regresso ao status quo». Os EUA continuam, assim, a dar tempo para Israel cumprir os seus objectivos no terreno. Na Europa, é o habitual: a presidência finlandesa condena o «excesso de força», os serviços secretos alemães procuram uma solução para os sequestros e comissários voam de cidade em cidade, ajustando o seu tom ao destinatário de ocasião. Neste particular, a excepção foi Javier Solana que, escapando às suas primeiras declarações, declarou em Telavive «não compreender o que a morte de civis e a destruição de infra‑estruturas tem a ver com o combate ao Hezbollah». Mas a excepção apenas confirma a regra. Durante dias e dias, o governo suíço – que não integra a UE – esteve isolado na sua crítica a Israel. Só ao oitavo dia, o governo espanhol decidiu distanciar-se do cinismo dominante, provocando mal disfarçados embaraços em Bruxelas. Quanto a Durão Barroso, explicou em entrevista «que nada se pode fazer do exterior, se as partes beligerantes não tiverem vontade». No início da crise, ainda em Junho, o Quarteto que segue o conflito israelo‑palestiniano (EUA, Rússia, ONU e União Europeia) seguia a marcação de Washington: «Israel tem direito à autodefesa» e ponto. Os palestinianos sufocaram em Gaza, sem qualquer sinal de pressão externa sobre Israel. A unanimidade só se começa a quebrar quando Telavive decide «fazer recuar o Líbano 50 anos», para usar as palavras do primeiro-ministro libanês, de resto subtraídas a declarações guerreiras do chefe do Estado‑maior de Israel. Mas, apesar das mudanças, Washington continuou a determinar os limites de cada palavra oficial. O máximo que a Rússia, anfitriã do G8, conseguiu desse conclave, foi a inclusão de um apelo à «auto‑contenção» na condução da guerra. Na ONU, o veto norte-americano continuou a prevalecer. Washington só vai querer um cessar‑fogo quando o Tsahal for dono e senhor do Sul do Líbano.
DERRUBAR O HAMAS...
Nesta guerra, só por gentileza se pode falar de “uso desproporcionado da força”. Do mesmo modo, não se pode dizer que a Comunidade Internacional seja “impotente” ou “ineficaz”. Isso iliba-a de responsabilidades que, não sendo de hoje, se agravaram extraordinariamente desde o momento em que as eleições palestinianas deram a vitória ao Hamas. À uma, todos os observadores reconheceram que a consulta de Janeiro deste ano foi a mais democrática até hoje realizada no mundo árabe. Contudo, o “prémio” dos EUA para este exemplo foi o bloqueio económico e político a Ramallah. Bruxelas decidiu acompanhar Washington. E o Egipto e a Jordânia atrelaram à Europa. Em consequência, a situação social na Palestina ocupada deteriorou‑se a olhos vistos. De acordo com o Banco Mundial, 67 por cento dos palestinianos sobrevivem abaixo da linha de pobreza. E a OIT estima que 41 por cento da população activa esteja no desemprego. Mas isto são dados anteriores ao bloqueio. No plano político, a conflitualidade entre Hamas e Fatah acentuou-se. Nesse braço de ferro valeu quase tudo, até greves e protestos salariais contra um governo que não tinha meios nem poder para pagar salários. O bloqueio, castigando o voto palestiniano, colocou o país à beira da guerra civil. Este era um dos dois cenários esperados: queda do Hamas ou guerra civil. É este o contexto que leva ainda os EUA, com a cumplicidade de Israel, a apostar na criação de uma guarda palestiniana bem armada na inteira dependência do presidente Abu Mazen. Insuspeito de simpatias políticas com o Hamas, devo reconhecer o seu sangue frio. O movimento islâmico manteve ininterruptamente, durante 16 meses, uma trégua armada sem quebras de disciplina. Nem um dos 600 morteiros Qassam que caíram em Israel desde a retirada unilateral, se lhe podem atribuir. Após as eleições, foi o Hamas quem insistiu num governo de «unidade nacional», que a Fatah rejeitou. E, logo a seguir, aguentou, sem pestanejar, o esvaziamento sistemático de funções de quase todos os ministérios, sob o argumento destes não terem dinheiro. Nesta dura batalha de posições, foi ainda o movimento islâmico que controlou a sua base de apoio quando, por todo o Médio Oriente, as opiniões públicas foram incendiadas pela chamada crise dos cartoons. O novo governo só não aceitou o monopólio da força armada pela Autoridade Palestiniana. Compreende‑se. Esse monopólio dificilmente seria encontrado sem um sangrento ajuste de contas, com Israel a rir-se para lá do muro.
RECIPROCIDADE E UNILATERALISMO
A principal condição para o fim do bloqueio era o reconhecimento de Israel pelo Hamas. A alegada “objecção de consciência” dos islamitas é uma das histórias mais mal contadas desta crise. É verdade que o Hamas, como muitos outros movimentos palestinianos, nunca “engoliu” a criação de Israel. Os ecos dessa posição encontram‑se nos documentos fundadores do movimento e em múltiplas declarações dos seus dirigentes. Mas o que Israel, os EUA e a UE não dizem é que o caminho para esse reconhecimento foi cuidadosamente iniciado, há anos, pelo próprio chefe histórico do Hamas, o xeque Yasim. As principais declarações dos dirigentes do Hamas começaram, desde então, a ir nesse sentido. Numa entrevista ao Washington Post, de 26 de Fevereiro deste ano, o primeiro-ministro palestiniano clarifica, sem ambiguidade, a política actual do movimento islâmico:
– que género de acordo está disposto a aceitar?
– O que garanta a criação de um Estado Palestiniano tendo por capital Jerusalém e no interior das fronteiras de 67.
– Reconhece Israel?
– Se Israel declarar que dará um Estado aos palestinianos e que lhes restituirá todos os seus direitos, então estaremos prontos a reconhecê‑lo.
Neste breve diálogo, Ismail Haniyyeh aceita um Estado Palestiniano nas fronteiras anteriores à guerra de 1967 – e dispõe-se a reconhecer Israel para lá dessa linha de fogo. Sucede que Israel nunca admitiu a fixação dessa fronteira. O que separa o Hamas dos partidos laicos não é o direito à existência de Israel, mas uma exigência de reciprocidade no reconhecimento. Convenhamos que não escasseiam argumentos em favor desta posição. Desde os acordos de Oslo que os dirigentes palestinianos são assolados por uma tragédia – fazem sempre mais e mais concessões em troca de nada. Sobra ainda o problema da boa fé negocial entre as partes. Em Maio deste ano, o primeiro-ministro Ehud Olmert abriu o seu coração aos congressistas norte‑americanos: «sempre pensei, e ainda hoje disso estou convencido, que o nosso povo tem o direito eterno e histórico a possuir a totalidade deste país». Olmert referia-se explicitamente às terras conquistadas na guerra de 67. Ou seja, às terras demarcadas pelo muro e aos 300 colonatos instalados na Cisjordânia. O que os media não relataram durante a operação de retirada de Gaza é que, enquanto ela decorria, Ariel Sharom dava luz verde a novos colonatos na Cisjordânia...
Entenda-se agora a difícil posição de Abu Mazen. Por um lado, ele encontra-se emparedado entre a vitória do Hamas e o bloqueio externo. Por outro lado, dois factores de ordem económica passaram a condicionar o dia a dia da Palestina ocupada: os fundos internacionais passaram a chegar a conta gotas, condicionados a usos precisos; e o dinheiro dos impostos colectados na Palestina por Israel – que, por acordo, lhe são devidos – deixaram de ser entregues. É este o contexto em que Abu Mazen exige do Hamas a subscrição do “documento dos prisioneiros”, sob pena de realização de um referendo. O “documento dos prisioneiros” reconhece implicitamente Israel e auto‑limita a luta armada aos territórios ocupados. Esta iniciativa do mais popular dirigente da Fatah, Marwan Barghouti, foi assinada pelos principais dirigentes prisionais do Hamas, da Jihad Islâmica, e ainda da FPLP e da FDLP. O texto tinha a autoridade dos heróis e amplo apoio popular entre uma população esgotada pelo bloqueio e cansada do caos em que se estava a transformar a luta política palestiniana. O presidente, consciente deste facto, “esticou a corda”, esperando forçar o Hamas a abandonar a sua táctica de reciprocidade face a Israel e, em consequência, retirar à Europa o seu argumento formal para o bloqueio. Em fins de Junho, a jogada surtiu efeito. O Hamas cede, obtendo em troca da Fatah a sua disponibilidade para a participação no governo. É aqui – e não no rapto do soldado Gilad Shavit – que se encontra a verdadeira causa da reentrada em Gaza. Os resultados esperados do bloqueio não se concretizavam e o Quarteto ficava sem argumentos para manter a Palestina de quarentena.
O PRETEXTO GILAD SHAVIT
O rapto do soldado israelita surge, assim, como uma dádiva dos céus para o novo governo de Telaviv, que não deixa escapar a oportunidade. Pouco importa que Gilad Shavit fosse um soldado e não um civil. Ou que dias antes uma vedeta israelita tivesse assassinado 8 membros de uma família, crianças incluídas, numa praia de Gaza, o que levou o Hamas a interromper as tréguas. Porque cedeu o Hamas à provocação israelita? Pelas mesmas razões porque Arafat e Marwan Barghouti, uns anos antes, acabaram por ter duas políticas face à militarização da segunda Intifada. Eles sabiam que atirar umas morteiradas artesanais para o outro lado não tinha qualquer efeito prático a não ser aumentar a coesão nacional de Israel em redor dos seus chefes militares. E que os homens‑bomba, além de exasperarem a população israelita, aumentavam o isolamento internacional da causa palestiniana. Mas, por outro lado, tinham de responder a um povo – o seu – cansado da ausência de resultados dos acordos com Israel.
Um analista do insuspeito Crisis Group, Monin Rabanni, sintetizava, em Janeiro deste ano, o dilema do Hamas na óptica da Comunidade Internacional e de Israel: «assim como seria naífe tomar as recentes declarações dos dirigentes do Hamas como dinheiro contado, do mesmo modo será uma loucura não os meter à prova». Israel não quis seguir a recomendação e por à prova as intenções de Ismail Haniyyeh. Tem razão o primeiro‑ministro palestiniano quando, em 11 de Julho, denunciava no Washington Post «cinco meses de guerra económica e diplomática» e explicava como «o soldado raptado foi apenas um pretexto para uma acção prevista há meses».
O cortejo de destruição que se seguiu é história conhecida. Em 48 horas, a resposta ao sequestro foi o rapto de 64 dirigentes do Hamas, entre os quais 8 membros do governo e 21 deputados; uma tentativa de assassinato do primeiro-ministro; e a reentrada em Gaza, onde as mortes se elevam a uma centena e a população foi condenada a viver com duas a três horas de água por dia e seis a oito de electricidade. Não é a primeira vez. E Telavive sabe que não será a última porque o real objectivo não é “acabar com o terrorismo”, mas deixar a Palestina sem interlocutor. Israel dispensa interlocutor porque não quer negociar a terra que conquistou pelas armas, nem os colonatos e os pedaços de muro que aí colocou. Israel não abdica de marcar as fronteiras a seu gosto – e é este o fundo do presente conflito.
... E DESARMAR O HEZBOLLAH
Estava Gaza em sufoco quando na fronteira israelo-libanesa o Hezbollah sequestra dois outros soldados israelitas. Na opinião pública árabe, o gesto foi aplaudido. Alguém tinha a coragem de aliviar a pressão sobre a Palestina e colocar noutro patamar a negociação para a troca de prisioneiros. O método tinha resultado antes. 420 libaneses e palestinianos foram, em 2004, trocados por três corpos, um empresário e um coronel. Talvez esta operação permitisse libertar alguns dos dez mil palestinianos e libaneses ainda presos. A Amnistia Internacional tem denunciado a situação destes detidos: e alguns estão atrás das grades desde os anos 70 e 900 encontram-se sem julgamento, entre os quais quase 400 adolescentes...
A imprensa internacional deu por adquirido que o rapto se fizera em Israel. É tão possível como a versão contrária, segundo a qual os confrontos ocorreram em Ait Al Chaab, do lado libanês da “linha azul”. Mas também não é relevante. Ao longo dos 160 Km da fronteira, monitorizada por um Peace Corps de dois mil capacetes azuis, as violações são normais. Desde 2000 – o ano em que Israel, sem honra nem glória, se retirou do Sul do Líbano – cada lado lembra ao outro que existe. Convém perceber: Israel ocupou, na guerra de 67, uma língua de terra – as quintas de Chebaa –, que os libaneses reclamam sua e que as Nações Unidas atribuem à Síria. Em 68, bombardeou pela primeira vez o aeroporto internacional de Beirute. Dez anos mais tarde, entra pelo Sul do Líbano e, em 1982, ocupa metade do país. O seu recuo inicia‑se em 1985, mas só em 2000 Israel sai do país, embora mantendo o controlo das quintas de Chebaa.
Noutras circunstâncias, o episódio do sequestro teria sido apenas mais um. Como passou despercebida a responsabilidade da Mossad no assassinato de dois jihadistas, no passado dia 26 de Maio, comprovada pelo responsável da rede terrorista em questão, entretanto detido pelo exército libanês. Mas desta vez, não. Israel decidiu aproveitar, uma vez mais, a oportunidade.
A retaliação fez-se com inaudita brutalidade. Podem discutir-se as intenções do Hezbollah com a sua acção de comandos. É pouco crível que Teerão e Damasco não tivessem sido previamente informadas de uma acção que, como reconheceu Nasralah, há longo tempo estava a ser preparada. Pode ser que a pressão externa e interna para o seu desarmamento induzisse a uma prova de força. E pode ser ainda que tenha existido um erro de cálculo, como admitia recentemente George Corm numa entrevista ao Público. Seja como for, é a resposta do Tsahal que coloca, essa sim, toda a população libanesa na condição de refém. A destruição sistemática das infra-estruturas públicas e económicas do Líbano, em plena estação estival, encontra-se para lá de qualquer “retaliação” contra o Hezbollah. Os alvos dos primeiros bombardeamentos não deixaram qualquer margem à mediação e forçaram o movimento xiita – fosse ou não essa a sua intenção – à “guerra total”. Quando Nasrallah vai à televisão dizer que «a partir de agora as nossas casas não serão as únicas a serem destruídas e as nossas crianças as únicas a morrer», já o lastro de destruição criara a inevitabilidade do que se seguiria.
A CATÁSTROFE ANUNCIADA
A Comunidade Internacional tem pesadas responsabilidades neste trágico desenvolvimento. Estados Unidos e França acordaram, ainda em 2004, na sequência do assassinato do primeiro-ministro do Líbano, Rafiq Hariri, que era chegado o momento de pôr cobro ao protectorado sírio sobre o Líbano. Atribuindo a responsabilidade do acto a Damasco, fazem votar no Conselho de Segurança a resolução 1559 onde, para lá da retirada síria, se exige o desarmamento do Hezbollah. O país dos cedros entra em ebulição. Gigantescas manifestações anti e pró sírias realizam‑se em Março de 2005, antes da inevitável retirada. Mas, ao contrário do que desejariam Israel, os EUA e a França – que ambiciona substituir a Síria – a questão das armas do Hezbollah manteve‑se um assunto interno aos libaneses.
O prestígio interno do Hezbollah e do seu líder ultrapassa largamente a comunidade xiita. Esse prestígio não decorre da obediência a Teerão, mas da autoridade conquistada na luta contra a ocupação e no modo como administra os territórios onde é maioria. Dizer que Nasrallah é um mero instrumento de Teerão é o mesmo que caricaturar Álvaro Cunhal como “agente soviético”. O Hezbollah encontra-se em plena mutação. Fundado sob inspiração da revolução iraniana de 1979, o movimento cresceu fazendo política. Afirmou-se como referência nacional num país onde todos os partidos relevantes apenas tratam de negócios e favores inter‑comunitários à custa do erário público. Tive a oportunidade de visitar as cidades do Sul do Líbano e falar com pessoas de diferentes quadrantes políticos e religiosos. O Hezbollah mantém alianças não apenas com o movimento Amal (também xiita) mas também com maronitas e sunitas. As suas listas incluem mulheres laicas e sem lenço em lugar elegível. A igreja mantém redes sociais e as suas escolas, maioritariamente para muçulmanos, têm turmas mistas. Nelas não se ensina religião, assunto que fica para as igrejas, as madrassas e as mesquitas... Ninguém pode garantir que este seja o futuro modelo de sociedade do Hezbollah. Mas tapar os olhos à realidade só se pode justificar por más razões.
Em 2005, o Hezbollah deu mais um passo – entrou para o governo. Em 2006 assumiu um processo de “diálogo nacional” onde as suas armas constavam da agenda e selou um acordo com o maior partido cristão, o do general Aoun, para garantir que os assuntos libaneses ficassem entre libaneses. Política, portanto.
UM PAÍS SEM EXÉRCITO. MAS RESISTENTE
Estranha-se o facto de um país fortemente armado – Israel – atacar um país sem exército que se veja. O segundo facto tem explicação: o país nunca teve exército digno desse nome e 14 anos de guerra civil, onde todos foram contra todos, liquidou o que dele ainda pudesse existir. Quando a Paz é restabelecida, no fim dos anos oitenta, e os Estados Unidos e a França entregam o Líbano à Síria em troca do seu alinhamento contra Saddam Hussein na guerra do Koweit, a ninguém interessa um exército libanês. Não interessa ao Protectorado, que preferia as suas próprias tropas no país; não interessa a Israel, porque sempre desejou um Líbano fraco; e não interessava aos EUA e à França e a nenhum dos outros países árabes, dado o peso dos xiitas na sociedade libanesa. A convergência externa tinha equivalente interno: os clãs que haviam feito a Paz preferiam os negócios à soberania nacional. O que restava de exército nacional era dirigido pelo general Aoun, homem conservador, mas com uma ideia de Nação. Ele pagou com o exílio a sua resistência a esta extraordinária confluência de interesses.
A inexistência de forças armadas abriu caminho à “resistência nacional”. A solução agradava a Damasco, que podia usar o Hezbollah para guerras de atrito com Israel, sem se comprometer. Mas é evidente que, neste contexto, o desarmamento do movimento xiita é um processo longo e complexo. Boa parte dos seus combatentes são civis armados, não são integráveis no exército. São combatentes por circunstância, não militares por vocação. E as comunidades sunita e cristã nunca aceitariam um exército de base xiita. Um pouco de inteligência e boa vontade ajudaria a resolver este problema: se Israel retirasse das Quintas de Chebaa, cairia o principal argumento que legitima a resistência. Mas, já se percebeu, a boa vontade não grassa por aquelas bandas.
Israel preferiu atacar o país vizinho porque se sente coberta por uma resolução imbecil e criminosa das Nações Unidas. O desarmamento do Hezbollah é o seu objectivo proclamado. Mal adquira uma posição de força no terreno, parará para dar lugar à diplomacia norte‑americana. Esta exigirá das Nações Unidas o envio de uma força “multinacional musculada” com o objectivo de concluir o trabalho iniciado pelo Tsahal. A França estará de acordo – receberá numa bandeja o seu antigo Protectorado. Tudo se combina – até a sua embaixada em Beirute se situa no Palácio onde, em 1920, foi proclamada a independência vigiada do Líbano... Os planos são simples. Bem mais difícil será enraizá‑los num terreno repleto de resistentes.
Miguel Portas
http://infoalternativa.org/moriente/mo067.htm
Quase um mês após a entrada dos tanques de Israel em Gaza e ao décimo dia de combates no Líbano, contabilizam‑se mortos e feridos. Respectivamente 300 e mil, do lado libanês; 100 e 400, em Gaza; e ainda 28 e uma centena, em Israel. Não há mortes boas. Mas as diferenças falam do preço que cada povo está a pagar e da diferença de meios militares de cada um. Aos mortos e feridos seguem-se os deslocados. Mas também aqui o drama ilude: meio milhão no Líbano e outro tanto em Israel. Mas nenhum em Gaza, porque de Gaza, a prisão, não se sai nem se entra. As imagens televisivas fixam o resto, algo do que não se contabiliza – a dor dos vivos, o medo, a raiva ou o desespero. Registam ainda a destruição – em Israel, algumas casas; no Líbano e na Palestina, a destruição de todos os serviços públicos e principais vias de comunicação. Ao décimo dia de combates, sabe-se que a resistência libanesa ainda se bate. É ela o David que afronta, sem aviões, barcos ou artilharia digna desse nome, um dos mais poderosos exércitos do planeta – e seguramente dos mais eficazes. E ao décimo dia de combates, Gaza e a Cisjordânia, onde tudo começou e onde tudo ainda continua, passaram a notas de rodapé dos serviços noticiosos.
CACOFONIA OCIDENTAL
Ao décimo dia de combates, a confusão grassa na Comunidade Internacional, contrariando o unanimismo dos primeiros dias, onde, a uma só voz, se responsabilizavam Hamas e Hezbollah pela crise. Kofi Annan anuncia um plano de paz, mas este não se ouve entre bombas. Condoleezza Rice refreou de imediato os ímpetos do secretário‑geral das Nações Unidas: «um cessar-fogo é uma falsa promessa se apenas for um regresso ao status quo». Os EUA continuam, assim, a dar tempo para Israel cumprir os seus objectivos no terreno. Na Europa, é o habitual: a presidência finlandesa condena o «excesso de força», os serviços secretos alemães procuram uma solução para os sequestros e comissários voam de cidade em cidade, ajustando o seu tom ao destinatário de ocasião. Neste particular, a excepção foi Javier Solana que, escapando às suas primeiras declarações, declarou em Telavive «não compreender o que a morte de civis e a destruição de infra‑estruturas tem a ver com o combate ao Hezbollah». Mas a excepção apenas confirma a regra. Durante dias e dias, o governo suíço – que não integra a UE – esteve isolado na sua crítica a Israel. Só ao oitavo dia, o governo espanhol decidiu distanciar-se do cinismo dominante, provocando mal disfarçados embaraços em Bruxelas. Quanto a Durão Barroso, explicou em entrevista «que nada se pode fazer do exterior, se as partes beligerantes não tiverem vontade». No início da crise, ainda em Junho, o Quarteto que segue o conflito israelo‑palestiniano (EUA, Rússia, ONU e União Europeia) seguia a marcação de Washington: «Israel tem direito à autodefesa» e ponto. Os palestinianos sufocaram em Gaza, sem qualquer sinal de pressão externa sobre Israel. A unanimidade só se começa a quebrar quando Telavive decide «fazer recuar o Líbano 50 anos», para usar as palavras do primeiro-ministro libanês, de resto subtraídas a declarações guerreiras do chefe do Estado‑maior de Israel. Mas, apesar das mudanças, Washington continuou a determinar os limites de cada palavra oficial. O máximo que a Rússia, anfitriã do G8, conseguiu desse conclave, foi a inclusão de um apelo à «auto‑contenção» na condução da guerra. Na ONU, o veto norte-americano continuou a prevalecer. Washington só vai querer um cessar‑fogo quando o Tsahal for dono e senhor do Sul do Líbano.
DERRUBAR O HAMAS...
Nesta guerra, só por gentileza se pode falar de “uso desproporcionado da força”. Do mesmo modo, não se pode dizer que a Comunidade Internacional seja “impotente” ou “ineficaz”. Isso iliba-a de responsabilidades que, não sendo de hoje, se agravaram extraordinariamente desde o momento em que as eleições palestinianas deram a vitória ao Hamas. À uma, todos os observadores reconheceram que a consulta de Janeiro deste ano foi a mais democrática até hoje realizada no mundo árabe. Contudo, o “prémio” dos EUA para este exemplo foi o bloqueio económico e político a Ramallah. Bruxelas decidiu acompanhar Washington. E o Egipto e a Jordânia atrelaram à Europa. Em consequência, a situação social na Palestina ocupada deteriorou‑se a olhos vistos. De acordo com o Banco Mundial, 67 por cento dos palestinianos sobrevivem abaixo da linha de pobreza. E a OIT estima que 41 por cento da população activa esteja no desemprego. Mas isto são dados anteriores ao bloqueio. No plano político, a conflitualidade entre Hamas e Fatah acentuou-se. Nesse braço de ferro valeu quase tudo, até greves e protestos salariais contra um governo que não tinha meios nem poder para pagar salários. O bloqueio, castigando o voto palestiniano, colocou o país à beira da guerra civil. Este era um dos dois cenários esperados: queda do Hamas ou guerra civil. É este o contexto que leva ainda os EUA, com a cumplicidade de Israel, a apostar na criação de uma guarda palestiniana bem armada na inteira dependência do presidente Abu Mazen. Insuspeito de simpatias políticas com o Hamas, devo reconhecer o seu sangue frio. O movimento islâmico manteve ininterruptamente, durante 16 meses, uma trégua armada sem quebras de disciplina. Nem um dos 600 morteiros Qassam que caíram em Israel desde a retirada unilateral, se lhe podem atribuir. Após as eleições, foi o Hamas quem insistiu num governo de «unidade nacional», que a Fatah rejeitou. E, logo a seguir, aguentou, sem pestanejar, o esvaziamento sistemático de funções de quase todos os ministérios, sob o argumento destes não terem dinheiro. Nesta dura batalha de posições, foi ainda o movimento islâmico que controlou a sua base de apoio quando, por todo o Médio Oriente, as opiniões públicas foram incendiadas pela chamada crise dos cartoons. O novo governo só não aceitou o monopólio da força armada pela Autoridade Palestiniana. Compreende‑se. Esse monopólio dificilmente seria encontrado sem um sangrento ajuste de contas, com Israel a rir-se para lá do muro.
RECIPROCIDADE E UNILATERALISMO
A principal condição para o fim do bloqueio era o reconhecimento de Israel pelo Hamas. A alegada “objecção de consciência” dos islamitas é uma das histórias mais mal contadas desta crise. É verdade que o Hamas, como muitos outros movimentos palestinianos, nunca “engoliu” a criação de Israel. Os ecos dessa posição encontram‑se nos documentos fundadores do movimento e em múltiplas declarações dos seus dirigentes. Mas o que Israel, os EUA e a UE não dizem é que o caminho para esse reconhecimento foi cuidadosamente iniciado, há anos, pelo próprio chefe histórico do Hamas, o xeque Yasim. As principais declarações dos dirigentes do Hamas começaram, desde então, a ir nesse sentido. Numa entrevista ao Washington Post, de 26 de Fevereiro deste ano, o primeiro-ministro palestiniano clarifica, sem ambiguidade, a política actual do movimento islâmico:
– que género de acordo está disposto a aceitar?
– O que garanta a criação de um Estado Palestiniano tendo por capital Jerusalém e no interior das fronteiras de 67.
– Reconhece Israel?
– Se Israel declarar que dará um Estado aos palestinianos e que lhes restituirá todos os seus direitos, então estaremos prontos a reconhecê‑lo.
Neste breve diálogo, Ismail Haniyyeh aceita um Estado Palestiniano nas fronteiras anteriores à guerra de 1967 – e dispõe-se a reconhecer Israel para lá dessa linha de fogo. Sucede que Israel nunca admitiu a fixação dessa fronteira. O que separa o Hamas dos partidos laicos não é o direito à existência de Israel, mas uma exigência de reciprocidade no reconhecimento. Convenhamos que não escasseiam argumentos em favor desta posição. Desde os acordos de Oslo que os dirigentes palestinianos são assolados por uma tragédia – fazem sempre mais e mais concessões em troca de nada. Sobra ainda o problema da boa fé negocial entre as partes. Em Maio deste ano, o primeiro-ministro Ehud Olmert abriu o seu coração aos congressistas norte‑americanos: «sempre pensei, e ainda hoje disso estou convencido, que o nosso povo tem o direito eterno e histórico a possuir a totalidade deste país». Olmert referia-se explicitamente às terras conquistadas na guerra de 67. Ou seja, às terras demarcadas pelo muro e aos 300 colonatos instalados na Cisjordânia. O que os media não relataram durante a operação de retirada de Gaza é que, enquanto ela decorria, Ariel Sharom dava luz verde a novos colonatos na Cisjordânia...
Entenda-se agora a difícil posição de Abu Mazen. Por um lado, ele encontra-se emparedado entre a vitória do Hamas e o bloqueio externo. Por outro lado, dois factores de ordem económica passaram a condicionar o dia a dia da Palestina ocupada: os fundos internacionais passaram a chegar a conta gotas, condicionados a usos precisos; e o dinheiro dos impostos colectados na Palestina por Israel – que, por acordo, lhe são devidos – deixaram de ser entregues. É este o contexto em que Abu Mazen exige do Hamas a subscrição do “documento dos prisioneiros”, sob pena de realização de um referendo. O “documento dos prisioneiros” reconhece implicitamente Israel e auto‑limita a luta armada aos territórios ocupados. Esta iniciativa do mais popular dirigente da Fatah, Marwan Barghouti, foi assinada pelos principais dirigentes prisionais do Hamas, da Jihad Islâmica, e ainda da FPLP e da FDLP. O texto tinha a autoridade dos heróis e amplo apoio popular entre uma população esgotada pelo bloqueio e cansada do caos em que se estava a transformar a luta política palestiniana. O presidente, consciente deste facto, “esticou a corda”, esperando forçar o Hamas a abandonar a sua táctica de reciprocidade face a Israel e, em consequência, retirar à Europa o seu argumento formal para o bloqueio. Em fins de Junho, a jogada surtiu efeito. O Hamas cede, obtendo em troca da Fatah a sua disponibilidade para a participação no governo. É aqui – e não no rapto do soldado Gilad Shavit – que se encontra a verdadeira causa da reentrada em Gaza. Os resultados esperados do bloqueio não se concretizavam e o Quarteto ficava sem argumentos para manter a Palestina de quarentena.
O PRETEXTO GILAD SHAVIT
O rapto do soldado israelita surge, assim, como uma dádiva dos céus para o novo governo de Telaviv, que não deixa escapar a oportunidade. Pouco importa que Gilad Shavit fosse um soldado e não um civil. Ou que dias antes uma vedeta israelita tivesse assassinado 8 membros de uma família, crianças incluídas, numa praia de Gaza, o que levou o Hamas a interromper as tréguas. Porque cedeu o Hamas à provocação israelita? Pelas mesmas razões porque Arafat e Marwan Barghouti, uns anos antes, acabaram por ter duas políticas face à militarização da segunda Intifada. Eles sabiam que atirar umas morteiradas artesanais para o outro lado não tinha qualquer efeito prático a não ser aumentar a coesão nacional de Israel em redor dos seus chefes militares. E que os homens‑bomba, além de exasperarem a população israelita, aumentavam o isolamento internacional da causa palestiniana. Mas, por outro lado, tinham de responder a um povo – o seu – cansado da ausência de resultados dos acordos com Israel.
Um analista do insuspeito Crisis Group, Monin Rabanni, sintetizava, em Janeiro deste ano, o dilema do Hamas na óptica da Comunidade Internacional e de Israel: «assim como seria naífe tomar as recentes declarações dos dirigentes do Hamas como dinheiro contado, do mesmo modo será uma loucura não os meter à prova». Israel não quis seguir a recomendação e por à prova as intenções de Ismail Haniyyeh. Tem razão o primeiro‑ministro palestiniano quando, em 11 de Julho, denunciava no Washington Post «cinco meses de guerra económica e diplomática» e explicava como «o soldado raptado foi apenas um pretexto para uma acção prevista há meses».
O cortejo de destruição que se seguiu é história conhecida. Em 48 horas, a resposta ao sequestro foi o rapto de 64 dirigentes do Hamas, entre os quais 8 membros do governo e 21 deputados; uma tentativa de assassinato do primeiro-ministro; e a reentrada em Gaza, onde as mortes se elevam a uma centena e a população foi condenada a viver com duas a três horas de água por dia e seis a oito de electricidade. Não é a primeira vez. E Telavive sabe que não será a última porque o real objectivo não é “acabar com o terrorismo”, mas deixar a Palestina sem interlocutor. Israel dispensa interlocutor porque não quer negociar a terra que conquistou pelas armas, nem os colonatos e os pedaços de muro que aí colocou. Israel não abdica de marcar as fronteiras a seu gosto – e é este o fundo do presente conflito.
... E DESARMAR O HEZBOLLAH
Estava Gaza em sufoco quando na fronteira israelo-libanesa o Hezbollah sequestra dois outros soldados israelitas. Na opinião pública árabe, o gesto foi aplaudido. Alguém tinha a coragem de aliviar a pressão sobre a Palestina e colocar noutro patamar a negociação para a troca de prisioneiros. O método tinha resultado antes. 420 libaneses e palestinianos foram, em 2004, trocados por três corpos, um empresário e um coronel. Talvez esta operação permitisse libertar alguns dos dez mil palestinianos e libaneses ainda presos. A Amnistia Internacional tem denunciado a situação destes detidos: e alguns estão atrás das grades desde os anos 70 e 900 encontram-se sem julgamento, entre os quais quase 400 adolescentes...
A imprensa internacional deu por adquirido que o rapto se fizera em Israel. É tão possível como a versão contrária, segundo a qual os confrontos ocorreram em Ait Al Chaab, do lado libanês da “linha azul”. Mas também não é relevante. Ao longo dos 160 Km da fronteira, monitorizada por um Peace Corps de dois mil capacetes azuis, as violações são normais. Desde 2000 – o ano em que Israel, sem honra nem glória, se retirou do Sul do Líbano – cada lado lembra ao outro que existe. Convém perceber: Israel ocupou, na guerra de 67, uma língua de terra – as quintas de Chebaa –, que os libaneses reclamam sua e que as Nações Unidas atribuem à Síria. Em 68, bombardeou pela primeira vez o aeroporto internacional de Beirute. Dez anos mais tarde, entra pelo Sul do Líbano e, em 1982, ocupa metade do país. O seu recuo inicia‑se em 1985, mas só em 2000 Israel sai do país, embora mantendo o controlo das quintas de Chebaa.
Noutras circunstâncias, o episódio do sequestro teria sido apenas mais um. Como passou despercebida a responsabilidade da Mossad no assassinato de dois jihadistas, no passado dia 26 de Maio, comprovada pelo responsável da rede terrorista em questão, entretanto detido pelo exército libanês. Mas desta vez, não. Israel decidiu aproveitar, uma vez mais, a oportunidade.
A retaliação fez-se com inaudita brutalidade. Podem discutir-se as intenções do Hezbollah com a sua acção de comandos. É pouco crível que Teerão e Damasco não tivessem sido previamente informadas de uma acção que, como reconheceu Nasralah, há longo tempo estava a ser preparada. Pode ser que a pressão externa e interna para o seu desarmamento induzisse a uma prova de força. E pode ser ainda que tenha existido um erro de cálculo, como admitia recentemente George Corm numa entrevista ao Público. Seja como for, é a resposta do Tsahal que coloca, essa sim, toda a população libanesa na condição de refém. A destruição sistemática das infra-estruturas públicas e económicas do Líbano, em plena estação estival, encontra-se para lá de qualquer “retaliação” contra o Hezbollah. Os alvos dos primeiros bombardeamentos não deixaram qualquer margem à mediação e forçaram o movimento xiita – fosse ou não essa a sua intenção – à “guerra total”. Quando Nasrallah vai à televisão dizer que «a partir de agora as nossas casas não serão as únicas a serem destruídas e as nossas crianças as únicas a morrer», já o lastro de destruição criara a inevitabilidade do que se seguiria.
A CATÁSTROFE ANUNCIADA
A Comunidade Internacional tem pesadas responsabilidades neste trágico desenvolvimento. Estados Unidos e França acordaram, ainda em 2004, na sequência do assassinato do primeiro-ministro do Líbano, Rafiq Hariri, que era chegado o momento de pôr cobro ao protectorado sírio sobre o Líbano. Atribuindo a responsabilidade do acto a Damasco, fazem votar no Conselho de Segurança a resolução 1559 onde, para lá da retirada síria, se exige o desarmamento do Hezbollah. O país dos cedros entra em ebulição. Gigantescas manifestações anti e pró sírias realizam‑se em Março de 2005, antes da inevitável retirada. Mas, ao contrário do que desejariam Israel, os EUA e a França – que ambiciona substituir a Síria – a questão das armas do Hezbollah manteve‑se um assunto interno aos libaneses.
O prestígio interno do Hezbollah e do seu líder ultrapassa largamente a comunidade xiita. Esse prestígio não decorre da obediência a Teerão, mas da autoridade conquistada na luta contra a ocupação e no modo como administra os territórios onde é maioria. Dizer que Nasrallah é um mero instrumento de Teerão é o mesmo que caricaturar Álvaro Cunhal como “agente soviético”. O Hezbollah encontra-se em plena mutação. Fundado sob inspiração da revolução iraniana de 1979, o movimento cresceu fazendo política. Afirmou-se como referência nacional num país onde todos os partidos relevantes apenas tratam de negócios e favores inter‑comunitários à custa do erário público. Tive a oportunidade de visitar as cidades do Sul do Líbano e falar com pessoas de diferentes quadrantes políticos e religiosos. O Hezbollah mantém alianças não apenas com o movimento Amal (também xiita) mas também com maronitas e sunitas. As suas listas incluem mulheres laicas e sem lenço em lugar elegível. A igreja mantém redes sociais e as suas escolas, maioritariamente para muçulmanos, têm turmas mistas. Nelas não se ensina religião, assunto que fica para as igrejas, as madrassas e as mesquitas... Ninguém pode garantir que este seja o futuro modelo de sociedade do Hezbollah. Mas tapar os olhos à realidade só se pode justificar por más razões.
Em 2005, o Hezbollah deu mais um passo – entrou para o governo. Em 2006 assumiu um processo de “diálogo nacional” onde as suas armas constavam da agenda e selou um acordo com o maior partido cristão, o do general Aoun, para garantir que os assuntos libaneses ficassem entre libaneses. Política, portanto.
UM PAÍS SEM EXÉRCITO. MAS RESISTENTE
Estranha-se o facto de um país fortemente armado – Israel – atacar um país sem exército que se veja. O segundo facto tem explicação: o país nunca teve exército digno desse nome e 14 anos de guerra civil, onde todos foram contra todos, liquidou o que dele ainda pudesse existir. Quando a Paz é restabelecida, no fim dos anos oitenta, e os Estados Unidos e a França entregam o Líbano à Síria em troca do seu alinhamento contra Saddam Hussein na guerra do Koweit, a ninguém interessa um exército libanês. Não interessa ao Protectorado, que preferia as suas próprias tropas no país; não interessa a Israel, porque sempre desejou um Líbano fraco; e não interessava aos EUA e à França e a nenhum dos outros países árabes, dado o peso dos xiitas na sociedade libanesa. A convergência externa tinha equivalente interno: os clãs que haviam feito a Paz preferiam os negócios à soberania nacional. O que restava de exército nacional era dirigido pelo general Aoun, homem conservador, mas com uma ideia de Nação. Ele pagou com o exílio a sua resistência a esta extraordinária confluência de interesses.
A inexistência de forças armadas abriu caminho à “resistência nacional”. A solução agradava a Damasco, que podia usar o Hezbollah para guerras de atrito com Israel, sem se comprometer. Mas é evidente que, neste contexto, o desarmamento do movimento xiita é um processo longo e complexo. Boa parte dos seus combatentes são civis armados, não são integráveis no exército. São combatentes por circunstância, não militares por vocação. E as comunidades sunita e cristã nunca aceitariam um exército de base xiita. Um pouco de inteligência e boa vontade ajudaria a resolver este problema: se Israel retirasse das Quintas de Chebaa, cairia o principal argumento que legitima a resistência. Mas, já se percebeu, a boa vontade não grassa por aquelas bandas.
Israel preferiu atacar o país vizinho porque se sente coberta por uma resolução imbecil e criminosa das Nações Unidas. O desarmamento do Hezbollah é o seu objectivo proclamado. Mal adquira uma posição de força no terreno, parará para dar lugar à diplomacia norte‑americana. Esta exigirá das Nações Unidas o envio de uma força “multinacional musculada” com o objectivo de concluir o trabalho iniciado pelo Tsahal. A França estará de acordo – receberá numa bandeja o seu antigo Protectorado. Tudo se combina – até a sua embaixada em Beirute se situa no Palácio onde, em 1920, foi proclamada a independência vigiada do Líbano... Os planos são simples. Bem mais difícil será enraizá‑los num terreno repleto de resistentes.
Miguel Portas
http://infoalternativa.org/moriente/mo067.htm
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