terça-feira, setembro 19, 2006

O regresso do poder popular

Aqui no ocidente temos muito a aprender com movimentos de resistência em lugares perigosos e as suas tácticas de acção directa esclarecida.

Ao investigar para um novo filme, estive a ver arquivos de documentários da década de 1980, a era de Ronald Reagan e da sua “guerra secreta” contra a América Central. O que é impressionante é a mentira implacável. Um departamento da mentira foi montado sob Reagan com o nome de código “gabinete de diplomacia pública”. A sua finalidade era distribuir propaganda “branca” e “negra” — mentiras — e difamar jornalistas que contavam a verdade. Quase tudo o que o próprio Reagan dizia sobre o assunto era falso. Repetidas vezes ele advertiu os americanos de uma “ameaça iminente” da parte de pequenos e empobrecidos países que ocupam o istmo entre os dois continentes do hemisfério ocidental. «A América Central é demasiado próxima e as suas apostas estratégicas são demasiado elevadas para ignorarmos o perigo de governos a tomarem o poder com ligações militares à União Soviética», disse ele. A Nicarágua era «uma base soviética» e «o comunismo está prestes a tomar todo o Caribe». Os Estados Unidos, disse o presidente, «estão empenhados numa guerra ao terrorismo, uma guerra pela liberdade».

Quão familiar soa tudo isto. Substitua simplesmente União Soviética e comunismo por al-Qaeda, e estará actualizado. E era tudo fantasia. A União Soviética não tinha bases ou intenções na América Central; pelo contrário, os soviéticos eram firmes em recusar apelos pela sua ajuda. As bandas desenhadas de “depósitos de mísseis” que oficiais americanos apresentaram às Nações Unidas foram precursoras das mentiras contadas por Collin Powell na sua infame promoção das não existentes armas de destruição maciça no Iraque perante o Conselho de Segurança em 2003.

Enquanto as mentiras de Powell prepararam o caminho para a invasão do Iraque e a morte violenta de pelo menos 100 mil pessoas, as mentiras de Reagan disfarçaram os seus ataques à Nicarágua, a El Salvador e à Guatemala. No fim dos seus dois mandatos, 300.000 pessoas estavam mortas. Na Guatemala, os seus apaniguados — armados e tutelados na tortura pela CIA — foram descritos pela ONU como perpetradores de genocídio. Há uma grande diferença hoje. Esta é o nível de consciência entre os povos de todo o mundo acerca dos verdadeiros propósitos da “guerra ao terror” de Bush e Blair, e a escala e diversidade da resistência popular a ela. Nos dias de Reagan, a noção de que presidentes e primeiros-ministros mentiam como actos deliberados e calculados era considerada exótica; As mentiras do Watergate de Nixon foram consideradas chocantes porque presidentes não mentiam abertamente.

Quase mais ninguém acredita nisso. Na Grã-Bretanha, graças a Blair, verificou-se uma transformação geral nas atitudes públicas. Não menos de 80 por cento encaram-no como um mentiroso; 82 por cento acredita que a sua instigação à guerra foi a principal causa dos atentados de Londres; 72 por cento acredita que ele tornou este país um alvo. Nenhum moderno primeiro-ministro tem sido objecto de tal opróbrio esclarecido. Além disso, a maioria permanece céptica acerca da veracidade de uma “conspiração” para explodir aviões que voassem a partir de Heathrow. A recente auto-promoção agressiva do ministro do Interior John Reid é rejeitada por uma maioria clara, bem como a promoção dos media do ministro do Tesouro, Gordon Brown, como sendo o homem que trouxe prosperidade económica à Grã-Bretanha enquanto actuava como tesoureiro de várias aventuras imperiais. Mais de três quartos da população acredita que Brown e Blair simplesmente tornaram os ricos mais ricos (YouGov e Guardian/ICM).

Segundo a minha experiência, esta inteligência crítica do público e o seu senso moral sempre estiveram à frente daqueles que afirmam falar para o público. O que Vandana Shiva chama uma «insurreição do conhecimento subjugado» está a ascender na Grã-Bretanha e por todo o mundo, talvez como nunca antes, graças a um internacionalismo revitalizado ajudado pelas novas tecnologias. Enquanto Reagan pôde escapar impune com muitas das suas mentiras, Bush e Blair não podem. As pessoas sabem demasiado. E há a presença da história; nenhuma potência imperial foi capaz de sustentar três guerras coloniais simultâneas por tempo indefinido. Isto já é verdadeiro em relação aos Estados Unidos e à Grã-Bretanha no Afeganistão, onde o regime “democrático” fantoche está em apuro previsível e o assediado exército britânico está a ter de chamar bombeiros americanos, os quais, em 26 de Agosto, mataram 13 civis em fuga, incluindo nove crianças, uma atrocidade comum.

No Iraque, em contraste com a mentira dos jornalistas incorporados de que as matanças são agora quase inteiramente sectárias, 70 por cento da 1.666 bombas explodidas pela resistência em Julho foram dirigidas contra os ocupantes americanos e 20 por cento contra a força de polícia fantoche. As baixas civis equivaleram a 10 por cento. Por outras palavras, ao contrário das punições colectivas repartidas pelos EUA, tais como a matança de vários milhares de pessoas em Faluja, a resistência está a combater basicamente uma guerra militar, e está a vencer. Essa verdade é suprimida, tal como foi no Vietname.

No Líbano, o padrão continua. Uma resistência armada de uns poucos milhares humilhou o quinto mais poderoso exército do mundo, o qual é abastecido e apoiado pela superpotência. Tudo isto sabemos. O que não sabemos é o extraordinário e decisivo papel desempenhado pelo povo desarmado do sul do Líbano. Relatado como um rasto de vítimas, o espectáculo de pessoas a retornar aos seus lares foi um acto épico de desafio e resistência. Em 13 de Agosto, quando o exército israelense avançou no sul do Líbano, ele advertiu o povo para não retornar às suas casas. Isto foi desafiado por quase cada homem, mulher e criança, que abandonaram os centros de refúgio e puseram-se em marcha para o sul, congestionando as estradas e exibindo sinais de vitória.

Uma testemunha ocular, Simon Assaf, descreveu «grupos de homens locais ao longo da estrada [a] abrir caminhos pela remoção de pilhas de cabos eléctricos, entulho e metal retorcido que obstruíam a rodovia. Um novo fluxo de carros formava-se rapidamente em cada brecha no entulho. Não havia exército ou polícia... eram os locais que dirigiam o tráfego, guiavam os carros que passavam crateras perigosas e empurravam autocarros por trilhos enlameados em torno de pontes destruídas. Quando se aproximavam das suas casas, os refugiados formavam grandes procissões. Cidade após cidade, aldeia após aldeia foi recuperada. Impotentes para enfrentar esta onda humana, os israelenses abandonaram as suas posições e começaram a fugir para a fronteira. Esta inundação de pessoas emergiu de um movimento de massas sem precedentes que cresceu por todo o país enquanto choviam as bombas».

A resistência libanesa, armada e desarmada, vem do mesmo manancial dos outros movimentos por todo o mundo. Cada um deles aprendeu a pôr de lado as suas diferenças sectárias em face de um inimigo comum — o império desenfreado e os seus comparsas. Na Bolívia, o país mais pobre da América Latina, o primeiro governo do povo indígena desde a sua escravização pela Espanha foi eleito este ano por uma margem esmagadora, após centenas de milhares de camponeses desarmados e antigos mineiros enfrentarem as armas de um exército enviado pelo ditador da oligarquia, Gonzalo Sánchez de Lozada. Marchando sobre La Paz, a capital, eles forçaram-no a fugir para os Estados Unidos, para onde ele havia enviado os seus milhões. Isto seguiu­‑se a uma resistência de massa à privatização do abastecimento de água de Cochabamba, a segunda cidade da Bolívia, e à sua tomada de posse por um consórcio dominado pela poderosa companhia Bechtel. Agora, também a Bechtel foi forçada a fugir.

Por toda a América Latina os movimentos de resistência em massa crescem tão rapidamente que agora ensombram os partidos tradicionais. Na Venezuela, proporcionaram o apoio popular para as reformas de Hugo Chávez. Tendo emergido espontaneamente em 1989 durante o Caracazo, uma erupção de cólera política contra a subserviência da Venezuela às exigências de livre mercado do FMI e do Banco Mundial, eles proporcionaram a imaginação e o dinamismo com os quais o governo Chávez está a atacar o flagelo do pobreza.

Aqui no ocidente, quando as pessoas abandonam os partidos políticos que outrora pensaram serem seus, há muito a aprender de movimentos de resistência em lugares perigosos e com as suas tácticas de acção directa esclarecida. Temos os nossos próprios exemplos na Grã-Bretanha, tais como os feitos da crescente resistência à privatização do Serviço Nacional de Saúde de Blair e Brown. Um gigante americano, a United Health Europe, foi impedida de tomar o controle dos serviços de clínica geral em Derbyshire, depois de a comunidade não ter sido consultada e ter ripostado. Pat Smith, uma pensionista, levou o caso a tribunal e venceu. «Isto mostra o que o povo pode fazer», afirmou ela, como que a falar por milhões.

Não há diferença em princípio entre a campanha de resistência de Pat Smith e aquela do povo de Cochabamba que se recusou a pagar quase metade do seu rendimento a uma companhia americana pela sua água. Não há diferença em princípio entre o movimento do povo que despachou os invasores israelenses e a movimentação do povo por toda a parte à medida que se torna consciente do significado real das ambições e da hipocrisia de Bush e dos seus vassalos, que querem que estejamos sempre temerosos e intimidados pelo “terrorismo” quando, na verdade, os maiores terroristas são eles próprios.


John Pilger
http://www.infoalternativa.org/autores/pilger/pilger053.htm

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