Maxime Rodinson (1915-2004) foi um grande sábio. Historiador, linguista e orientalista, era um homem de uma cultura prodigiosa. Falava árabe, hebraico, turco, aramaico, gueza (etíope antigo) e muitas outras línguas. São dele obras fundamentais para a compreensão do mundo muçulmano e do Médio Oriente, como por exemplo Islam et capitalisme (1966), L'Islam: politique et croyance , La fascination de l'Islam , Israel, a Colonial-Settler State? . A sua biografia de Maomé (1961) é até hoje considerada a melhor de todas as que já se fizeram. Além de sábio, foi um homem que interveio activamente nas causas progressistas — nomeadamente na defesa do povo palestino. O ensaio aqui publicado já tem 40 anos, mas parece tão actual como na data da sua publicação. A finura da sua análise, que permite compreender as nuances dos aspectos políticos, culturais e psicológicos das várias classes sociais e das relações de poder, são típicos de Rodinson. Poucos autores marxistas conseguem captar e transmitir tais nuances sem perda de rigor.
Descrever a atitude dos árabes face ao problema que o Estado de Israel lhes coloca é um empreendimento demasiado fácil ou demasiado difícil. Demasiado fácil se nos limitarmos às proclamações oficiais que se podem resumir em algumas palavras sem cambiantes: hostilidade total, não reconhecimento absoluto da existência factual desse Estado. Podemos, justamente, citar as recentes declarações mais matizadas do presidente Habib Bourguiba. Ainda assim, ele próprio se apressou a atenuar o impacto das declarações e, oficialmente, em Israel, considerou-se que elas não constituíam senão uma variante sem importância das habituais teses árabes. Mas, por outro lado, se nos propusermos analisar a atitude real dos árabes, nas suas múltiplas variedades, chocamos com uma tarefa que me parece inelutável (porque a posição oficial tem, pelo menos, essa atitude em grande conta e de outro modo não poderia ser) mas também de uma enorme complexidade. Quem são os árabes, afinal? É necessário distinguir países, regiões, tipos de vida, classes sociais. E acima de tudo, dever-se-á tentar discernir os níveis do pensamento e da expressão. Os políticos responsáveis, toda a gente sabe, não falam frequentemente como pensam. Mas os cidadãos irresponsáveis, também eles, se podem deixar levar por estados de exaltação extrema que não correspondem ao seu modo de pensar em tempos de paz e de segurança (particularmente nos países mediterrânicos), eles podem mascarar as suas ideias por razões de medo do poder ou da opinião, de respeito humano, de interesse ou de ambição, eles podem passar de um entusiasmo belicoso a uma depressão resignada e derrotista, e vice-versa. Dever-se-á, igualmente, distinguir o discurso do pensamento íntimo e até subconsciente. E tudo isto evolui de acordo com os tempos e as circunstâncias. É por essa razão que o esboço que eu arrisco aqui recorre obrigatoriamente, a partir daquilo que eu penso conhecer dos humanos e das suas atitudes, a interpretações fundadas na intuição e nessa imaginação sociológica, cujo carácter insubstituível foi demonstrado por C. Wright Mills na abordagem dos problemas humanos. Tomemos como ponto de partida, aquele que é sem dúvida o mais profundo e o mais geral sentimento subjacente, ao qual poucos árabes podem escapar, mesmo quando o sublimam ou o ultrapassam, ou o contradizem: o sentimento de uma imensa humilhação. A razão disso é clara. Em 1948, as armadas árabes do Oriente sofreram uma derrota amarga. Os árabes, não comprometidos imediatamente, estavam solidários com a humilhação dos orientais, e com razão, pois o mundo entendeu o sucedido como um sinal manifesto da incapacidade político-militar dos árabes no seu conjunto. Já não se tratava de uma derrota militar ocasional. A guerra da Palestina não pode ser compreendida senão como o culminar de um processo comprometido há mais de meio século; e para os observadores exteriores, praticamente unânimes, durante toda a extensão do conflito, os árabes não fizeram mais do que coleccionar derrotas políticas até tornarem fatais, digamos assim, a decisão de partilha da ONU em 1947, a guerra subsequente (o recurso a esta guerra é em si uma derrota) e os seus resultados. Sobretudo, esta humilhação é concebida no contexto de uma humilhação mais geral, reforçada por desenvolvimentos que a alimentam. Os árabes vêm sendo humilhados, desde há muito tempo, em todos os planos. Eles pertencem a esse Terceiro Mundo que os europeus consideraram, a partir do século XIX, como retrógrado, e em estado de "colonisabilidade" (" colonisabilité" ), como referiu o argelino Malek Bennabi, e que esses mesmos europeus chegaram a colonizar, efectivamente. Disse-se e redisse-se o quanto essa situação tinha sido particularmente insuportável para um povo herdeiro de uma rica tradição cultural, que havia ele próprio dominado os outros durante tanto tempo, que havia transmitido a ideologia forjada no seu seio, a religião muçulmana, a tantos outros povos, e que, cem vezes mais, possuía um sentimento de superioridade. Os árabes sabem muito bem (pelo menos, os mais lúcidos e os mais corajosos que o proclamam) que a situação presente, juntamente com as disposições agressivas do Ocidente, resulta de fragilidades internas reais [1] . A era colonial não terminou assim há tanto tempo, e a independência reconquistada, em muitos lugares do mundo, não apagou as lembranças de uma época tão próxima, nem tão pouco impediu o ressentimento amargo provocado pela superioridade técnica e económica do Ocidente – facto que suscita obviamente situações de subordinação no Oriente. O Ocidente tem-se mostrado sempre preparado para reconquistar o terreno perdido, seja pela via económica (e eis o tema mais debatido do neocolonialismo), seja pela via militar, quando as circunstâncias o permitem, como parece ter sido o caso do Suez. E por fim, restam os territórios irredentos: a Arábia do Sul e precisamente Israel ao qual chamam oficialmente "a Palestina ocupada". As fragilidades denunciadas subsistem em grande parte e a consciência delas também. Tudo, na maneira de compreender o problema por parte dos não-árabes, contribui para exacerbar esse sentimento de humilhação. Na Europa e na América, geralmente, e muitas vezes também no Terceiro Mundo, os árabes apercebem-se que o ponto de vista israelense é profundamente compreendido e aceite. Entre os temas mais recorrentes da propaganda israelense, se encontramos frequentemente algum cepticismo relacionado com os direitos históricos dos judeus ao território palestino, outros temas já se tornaram, por assim dizer, ideias feitas. Tomemos como exemplo, a ideia de que o sofrimento extremo dos judeus lhes confere o direito irrecusável a um Estado próprio situado onde eles muito bem entenderem. Por todo o lado, os árabes chocam com a admiração pelos feitos do Estado sionista, com a apologia das virtudes civis e militares, políticas e económicas, culturais e sociais dos israelenses. Face a esta conjuntura, os árabes têm a perfeita consciência de que a sua propaganda é inadequada, que as suas explicações e justificações parecem pouco convincentes, que os seus esforços encontram no máximo uma cortesia indulgente. Um palestino constata amargamente o sucesso obtido automaticamente, no seio dos árabes, por uma posição ou por um livro ocidental favorável às teses árabes, ainda que estas sejam insuficientes ou censuráveis. É que "todos os que se preocupam com a questão no Ocidente são partidários do sionismo… Israel está habituado a encontrar partidários entre historiadores e pensadores ocidentais e os árabes estão habituados a encontrarem aí amigos fiéis do sionismo" [2] . Em França, a direita apoia Israel e, entre os campeões da sua causa, contam-se até mesmo anti-semitas dissimulados. A esquerda está atormentada, dividida entre o seu anti-colonialismo, que frequentemente tendeu a ser filo-árabe, e o seu anti-semitismo que lhe parece tornar difícil uma adesão às teses árabes. Os Estados Unidos asseguram formalmente a sua amizade para com os árabes e o seu maná é distribuído pelos diversos Estados árabes. Mas uma parte considerável dos recursos públicos e privados de Israel vem de lá [3] , e nas situações de grande instabilidade, os árabes sabem bem que Israel encontrará na maior potência do mundo um protector eficaz. O anti-sionismo visceral intrínseco aos árabes coincidiu com o anti-sionismo dogmático dos dirigentes soviéticos, decorrente da sua ideologia e das bases da sua política interna. Mas, nunca a URSS se alinhou às posições árabes, nem declarou formalmente o Estado de Israel ilegítimo na sua essência. A URSS tem mantido as suas relações oficiais com Israel e, por vezes, ensaia alguns passos na direcção de uma aproximação mais cordial. E ninguém esquece, apesar de tudo o que se passou depois, que a URSS teve um papel crucial no reconhecimento do Estado judeu, e que aviões checoslovacos contribuíram bastante para a sua vitória. É verdade que a China, passado pouco tempo, expressou o seu apoio total às reivindicações árabes. Todavia, a China é um protector longínquo, pouco eficaz no terreno, e para mais, comprometedor e até perigoso. Deixo de lado países menores em que árabes e Israelenses se entregam a uma luta de influência. Grosso modo, digamos que é raro que esses países apoiem absolutamente as teses árabes. Ninguém sabe o que aconteceria se os árabes adaptassem a doutrina de Hallstein e cortassem as relações com todos os Estados que reconhecem Israel! Os Estados árabes preferem não fazer a experiência e tudo parece dar-lhes razão.
Os governos deveriam ter em conta essa humilhação generalizada entre as populações árabes, pois esse é o grande sentimento, proveniente da situação concreta e subjacente a todas as suas atitudes. No entanto, deverão ter também em atenção, sentimentos igualmente provenientes de situações que vêm contrabalançar essa tendência profunda, e aqueles que a vêm acentuar. O que a contrabalança de forma mais vigorosa é evidentemente o apoliticismo, o "indiferentismo" político. Tal como noutros lugares, muitas pessoas, nos países árabes não se interessam pela política. No entanto, são menos numerosos do que nas sociedades industriais, pois a evolução política além parece mais directamente ligada ao futuro objectivo de cada um (o que me parece coerente). Por outro lado, um apoliticismo habitual pode, em tempo de crise, ser facilmente substituído por uma participação apoiada nos valores preconizados pelo elemento politizado da nação. E depois, os políticos têm frequentemente má consciência. O ambiente geral inspira-lhes o sentimento de que a atitude deles é falsa, inautêntica (exactamente no sentido em que Sartre fala de judeus inautênticos), sentem que deveriam ter uma opinião, e que essa opinião deveria ser a mesma que é professada pela maioria da elite da sua nação. Eles evitam (por essa razão e concerteza também em virtude dos perigos objectivos aos quais eles se exporiam) declarar de modo demasiado público a sua apatia relativamente aos valores exaltados de forma tão recorrente. Deve-se ainda falar, mais ou menos no mesmo sentido, do cepticismo disseminado nestas sociedades no que concerne a política dos governantes e os seus slogans. Durante milénios, estes povos foram habituados a serem governados por pessoas de estatuto altamente superior ao seu, e muitas vezes até por estrangeiros. O Egipto nunca viu, por assim dizer, um verdadeiro egípcio no poder entre a queda do faraó Nectanebo II (341 a.C.) e a revolução de 1952. O governo ( hokoûma ) é para eles uma espécie de mal necessário, do qual se deve duvidar ao máximo e do qual convém estar afastado, tanto quanto possível. Naturalmente, este estado de espírito está em vias de perder a sua influência com o surgimento da vida política moderna, e os seus partidos muitas vezes transbordantes de jovens entusiasmados. Contudo, ele é ainda fortemente divulgado e acentuado. Enquanto discípulo indirecto desses velhos sábios orientais, La Fontaine escrevia: "O nosso inimigo é o nosso mestre – isto digo-vos eu em bom francês". Isto disse-se durante séculos em bom egípcio antigo, em bom aramaico, e em bom árabe. Deste cepticismo resultava uma certa bonomia humana nas relações políticas. Temos pouca consciência disso no Ocidente, em que a atenção está principalmente virada para os excessos das multidões em fúria. Essas são reacções de tempos de crise, para as quais podemos facilmente encontrar equivalentes no Ocidente, e para as quais, já meio século passado, o doutor Gustave Le Bon achava necessário constituir uma teoria geral, a partir dos exemplos ocidentais, que se revelou insustentável. Mas em tempo normal, e em virtude do que tem vindo a ser dito, o homem comum, nos países orientais, estabelece a distinção entre os desígnios dos governantes, as opções políticas das organizações, e a humanidade dos executantes, enviados muitas vezes para fazer um trabalho que os repugna, ou mesmo que o façam com o coração, porque se comprometeram num momento de entusiasmo, de transporte ideológico durável, o seu carácter superficial é conhecido, o seu eu profundo pode, a qualquer momento, aflorar na sequência de uma derrota, que até pode ser pessoal. No Oriente, tanto como no Ocidente impregnado da teoria da responsabilidade colectiva, não se tem um homem por responsável pleno daquilo que os seus dirigentes o mandam fazer, ou até mesmo daquilo que a exaltação o pode levar a fazer. Daí resultam fenómenos que surpreendem o observador ocidental, e que ele pode interpretar mal, como as amizades inesperadas, as simpatias curiosas, os laivos de compreensão fugitiva do outro. Uma outra atitude, mais ou menos dissimulada, mas frequente, é a admiração pelo adversário. Ela coincide com a admiração (amarga, na maioria das vezes) dessa civilização europeia da qual o Estado de Israel é a emanação, a evidência emancipada em terras do Oriente, como Herzl outrora tinha já desejado. Naturalmente, existe, de forma geral, entre os árabes, o reconhecimento de poderes e de capacidades que lhes faltam, e que eles juram que vão adquirir pela via da retaliação. Essa imagem, entre os árabes, do "judeu engenhoso e hábil ao ponto quase do sobre-humano", de Israel dotado "de uma determinação obstinada, de uma energia e de uma habilidade imensas, de uma dedicação unilateral na busca dos seus objectivos" [4] não tornou senão os contactos mais difíceis, devido ao medo constante de serem "enrolados". É fácil de encontrar na literatura francesa do período entre 1872 e 1914, a expressão de sentimentos análogos relativamente ao talento das organizações alemãs, estranhamente permeada por comentários de desprezo (tal como no Oriente árabe) por esse rival e pela própria natureza da sua superioridade. Mas também encontramos muitas vezes, antes de 1948, em todo o caso, uma admiração de outro tipo, uma emulação suscitada pelas conquistas dos colonos judeus na Palestina mandatária, um desejo de seguir as suas doutrinas, que resultava por vezes numa identificação com as suas causas. Encontrei alguns desses admiradores, cujos sentimentos os levaram a uma atitude de "colaboração" com as potências ocidentais, e mais tarde com Israel. Ainda um outro tipo de atitude pode ser ilustrado pela figura espantosa de Abdel Razak Abdel-Kader, descendente do grande emir argelino, casado, salvo erro, com uma judia e trabalhador, durante algum tempo, num kibutz. Abdel-Kader, inspirado pelas suas ideias comunistas, chegou a teorizar sobre uma possível união revolucionária árabe-israelense, e a constituir na Argélia uma curiosa organização de resistência esquerdista, todavia microscópica e sem futuro [5] . A admiração é ainda suscitada pelas obras materiais dos judeus estabelecidos em solo palestino. Muitos invejam, também, as instituições democráticas que a sua estrutura social e a sua origem cultural, de carácter europeu, lhes proporcionaram. Muitos viram aí, como A. Abdel-Kader, um fermento revolucionário para as populações árabes ou, pelo menos, uma fonte de influência benéfica num sentido liberal. A partir destes elementos, muitas vezes se gera alguma confusão. Ninguém nega que a influência e a emulação se verificam, mas que daí decorra uma incitação à fraternidade ou à aliança, isso já é uma visão fantasiada das coisas. Israel continua a ser o inimigo. Nós podemo-nos inspirar no inimigo… mas apenas para o combater melhor. É necessário, também, observar que, naturalmente, as atitudes variam de um país árabe para outro. O Levante árabe sente-se intimamente implicado na crise palestiniana, o que é perfeitamente natural: a Síria, o Líbano, a Jordânia e, em menor grau, o Iraque formam juntamente com a Palestina árabe uma espécie de unidade que só foi quebrada pelos regulamentos resultantes da guerra de 1914-1918. A história destas antigas províncias do Império otomano é, em boa medida, uma história comum, mesmo após a sua separação política. Foi aí que se forjou a ideologia do nacionalismo árabe. O Egipto, praticamente separado do Império Otomano há mais de um século e meio, está mais distante, possui um sentimento de originalidade bastante claro, e foi atingido tardiamente pela vaga do arabismo. Os povos dos outros países árabes, ainda mais distantes, sentem-se menos envolvidos, excepto quando são tocados, em virtude do sentimento de solidariedade árabe, de modo desigual, mais ou menos profundamente, dependendo dos lugares e das camadas sociais, pelos sentimentos que eu descrevi. Conseguimos ter alguma noção dessas variações, pelo menos, no que toca ao Oriente. Os inquéritos conduzidos pelos sociólogos da Columbia University, em 1950-1951, mostraram que 4% dos egípcios citava como principal dificuldade, a ser enfrentada pela nação, o problema palestino, contra 2,7% dos libaneses, 21% dos sírios, e 51% dos jordanos (entre estes 65% dos refugiados originários do território do Estado de Israel e 43% dos outros) [6] . O orientalista germano-americano, Ilse Lichtenstadter, passou cinco meses numa aldeia egípcia no Sudoeste do Cairo em 1951, e ao interrogar os habitantes (todos eles muito atentos à política internacional, como acontece, aliás, a maior parte do tempo neste país) sobre a sua atitude perante a guerra da Palestina, constatou que: "nenhum dos numerosos homens com quem falou mostrou qualquer tipo de entusiasmo por essa guerra; alguns puseram mesmo em dúvida o bom senso da participação egípcia. Eles eram partidários da paz e da cooperação entre Israel e o seu país. Apesar de também serem árabes, não se sentiam solidários com os outros árabes nessa questão, contudo tinham alguma simpatia para com os refugiados. Esta atitude mostra claramente que eles são egípcios pela sua lealdade nacional, e árabes apenas pela sua tradição cultural" [7] . Raramente encontraríamos a expressão de tais atitudes na Síria, no Iraque e na Jordânia. Para mais, os acontecimentos políticos subsequentes trouxeram modificações mais ou menos importantes que se ficaram a dever a uma educação política mais estimulada das populações, na opinião de alguns, ou aos efeitos nefastos da propaganda oficial, segundo outros. Em todo o caso, o que é certo é que elas variam, em contexto idêntico, conforme a conjuntura política.
Se certos sentimentos difundidos vêm atenuar ou contrabalançar o intenso sentimento subjacente de humilhação, outros, pelo contrário, vêm reforçá-lo, exacerbá-lo. Existem as sequelas da judeofobia medieval das comunidades muçulmana e cristã – um tema que não é novo, e que tem sido desenvolvido diversas vezes. É, com efeito, um factor que deve ser cuidadosamente avaliado: não se deve sobrestimá-lo, nem subestimá-lo. Naturalmente, as teses podem ser alimentadas nas fontes dogmáticas, tais como: a crucificação de Jesus, no caso dos cristãos, e até de alguns muçulmanos; a oposição dos judeus de Medina ao Profeta, com todas as acusações corânicas que daí decorrem, no caso dos muçulmanos. Mas, a sua força vem da situação medieval em que se encontrava, ainda há pouco tempo, a sociedade oriental. As comunidades religiosas, fechadas sobre si mesmas, assemelhavam-se quase a pequenas nações: a devoção, a lealdade, a subordinação eram dirigidas a elas e nunca ao Estado. Estas comunidades gozavam de uma grande autonomia, regulavam elas mesmas a sua vida interna e as suas instituições. O Estado apenas exigia delas o imposto e o tributo. Poderíamos ainda compará-las com o sistema otomano dos millet, que tem antecedentes distantes e que ainda se conserva em larga medida no Líbano, e de certo modo, também um pouco em Israel. Entre estes grupos confessionais estabeleciam-se, naturalmente, relações de competição com as habituais consequências: desconfiança, hostilidade mais ou menos acentuada conforme as circunstâncias, por vezes, ódio e desprezo. A comunidade privilegiada era certamente aquela que dispunha do Estado; a comunidade muçulmana aceitava os outros e não procurava afastá-los de modo nenhum, contudo acordava-lhes um estatuto inferior. Desta situação resultava, logicamente, uma atitude de superioridade desprezível à qual as comunidades inferiorizadas respondiam com um ódio calculado. Esta situação foi-se transformando, em certa medida, ao longo de todo o século XIX e princípios do século XX, principalmente no Próximo Oriente otomano, no Egipto e na Tunísia (enquanto que em Marrocos, por exemplo, se conservava um carácter marcadamente medieval, na Argélia estabeleciam-se relações muito particulares, em consequência da profundidade da colonização e da aplicação do decreto de Crémieux). Era agora a vez destes países percorrerem o caminho que a Europa tinha seguido um século ou dois antes, na direcção de um Estado unificado, em que a religião se tornou tendencialmente um assunto privado, em que a igualdade perante a lei era proclamada. As comunidades cristãs e judaicas começavam a perder as suas especificidades e as proclamações teóricas do laicismo e da igualdade iam entrando lentamente nas suas práticas. Um judeu egípcio, Jacques Sanua, teve um papel importante no movimento nacionalista dos anos 1880-1910 [8] . No jovem Parlamento turco de 1908, dois deputados judeus foram eleitos. Naturalmente, as sequelas da situação anterior subsistiram, mas apenas a título de vestígios em vias de extinção. Todavia, durante esta fase, as particularidades remanescentes do sistema oriental medieval transformaram-se em vantagens. As comunidades conservavam esse estatuto de entidade colectiva (negada na Europa devido ao espírito rousseauniano da Revolução francesa) que se ia tornando agora igualitário. Os chefes de todas as comunidades tinham autoridade reconhecida. Apenas para mencionar um detalhe, as regras de vida de cada comunidade eram admitidas como sendo igualmente legítimas, e as grandes festas de cada uma delas eram igualmente festejadas em vários Estados. Esta situação veio a ser transformada, em parte, pela declaração de Balfour e a sua promessa de um "home" nacional judeu na Palestina, que os árabes entenderam como uma orientação que levaria inevitavelmente à alienação e à usurpação desse território, apesar das negações oficiais a esse respeito. Tudo se agravou, naturalmente, quando se aperceberam que os seus receios se confirmavam na elaboração do programa de Biltmore (1942) pelos próprios sionistas, na proclamação do Estado de Israel (1948), e nos conflitos militares que se seguiram. A partir daqui, o estado de guerra passou a dominar e os armistícios de 1949 não lhe puseram um fim, como se sabe. Houve em toda a parte um extravasar deste fenómeno a que eu chamei de racismo de guerra, e do qual praticamente nenhum conflito internacional está isento. O inimigo israelense era identificado com os judeus do mundo inteiro, o que não é de estranhar, porque efectivamente os sionistas apresentavam-se como a avant-garde da totalidade do "povo judeu", tentavam mobilizar judeus em toda a parte para defenderem a sua causa, e em parte conseguiam-no, não cessavam de se gabar do apoio do "judaísmo" ou da "judaícidade" (" judaïcité ") mundial. Por outro lado, era fácil fundar estes sentimentos novos sobre as sequelas da situação medieval de que falámos há pouco. Por fim, é preciso ter em conta que, durante o período compreendido sensivelmente entre 1933-1943, a propaganda alemã tinha difundido os seus temas anti-britânicos e denunciado a "plutodemocracia" ocidental servindo-se da hostilidade árabe relativamente ao sionismo e disseminando a tese da conspiração judia universal [9] – explicação tentadora dos acontecimentos. No entanto, os judeus dos países árabes só começaram a sofrer seriamente as repercussões do conflito depois da guerra de 1948 [10] . A tudo isto juntavam-se ainda ressentimentos de ordem social e nacional, sendo as comunidades judaicas vistas muitas vezes no Oriente (à semelhança das comunidades cristãs em larga medida) como representantes da elite da fortuna, apreciadora, em certa medida, do modo de vida ocidental, ligada frequentemente e estreitamente pelos interesses e pela cultura às potências colonizadoras. Deste modo, o conflito palestino teve consequências no sentido do desenvolvimento de uma judeofobia generalizada, à qual se chama tão inexactamente, na Europa, de anti-semitismo. É necessário, todavia, insistir no facto de que esses desenvolvimentos são o subproduto de um conflito limitado no espaço e, previsivelmente, no tempo. Esses desenvolvimentos não foram teorizados, senão raramente, por grupos bastante restritos que elaboraram uma tese geral explicando toda a evolução histórica através da maldade de uma raça maldita, como foi o caso, em larga escala, no Ocidente, a partir de 1880. Os políticos responsáveis, de modo geral, fizeram questão de afirmar que o seu anti-sionismo não significava um antijudaísmo generalizado e tentaram demonstrá-lo através de gestos simbólicos [11] . Apesar de tudo, a judeofobia muçulmana nunca atingiu as formulações excessivas que o R. P. Demann listava ainda há pouco tempo e que ele denunciava nos catecismos cristãos mais utilizados ainda actualmente. Em todo o caso, consequentemente, a atitude árabe não se pode explicar através de um "anti-semitismo" de princípio, teorizado, racial ou religioso, que seria a base dos comportamentos actuais. Do mesmo modo que o anti-semitismo europeu também não tem como fundamento real um mito, mas antes uma situação que engendrou esse mito. Simplesmente essa situação não foi criada pelos judeus, mas contra os judeus. O mito organizava-se unicamente em torno da significação de ofensas imaginárias, ou quando estas tinham algum fundo de verdade, não provinham da vontade livre de grupos judeus, mas da situação social em que eles tinham sido forçosamente colocados (a prática da usura, por exemplo). Em contrapartida, o anti-sionismo árabe desenvolve-se essencialmente a partir de uma ofensa bastante real (mesmo que esta seja desculpada ou justificada), de uma situação criada pela vontade livre de grupos judeus poderosos que se proclamavam representantes do conjunto de todos judeus. Apenas essa ofensa real confere alguma significação aos mitos anti-semitas por vezes avançados para a explicar. Sem ela, esses mitos perdem toda a sua força.
É agora possível compreender melhor a atitude não das massas, mas dos políticos. Devemos distinguir de imediato duas categorias. Para começar, a dos políticos não responsáveis: aqueles que dirigem os partidos excluídos do poder, ou a eles aderem. Seguindo as leis bem conhecidas da dinâmica dessas organizações, sabemos que elas têm todo o interesse em insistir ao máximo nos sentimentos incutidos nas massas, em afirmar a sua intransigência relativamente a eles, em tentar mobilizar as massas com o intuito de as capitalizar. Estes são factores permanentes de intransigência extremista. Seria necessário um estudo detalhado, que não pode ser agora aqui desenvolvido por mim, para mostrar como o tema da guerra contra Israel se inseriu, e sob que formas, no programa e na acção desses diversos grupos [12] . De forma breve, digamos simplesmente que os grupos ideológicos de direita, insistindo, como é a sua tendência normal, numa unidade nacional ou religiosa, acabaram por reduzir o conflito a uma pura luta nacional (casualmente com manifestações de teor racista); enquanto que os grupos de esquerda viram nesse conflito a manifestação local de uma luta socionacional internacional, um aspecto do esforço geral do imperialismo-colonialismo ( istî mâr ) [13] para explorar e dominar o Terceiro Mundo. Toda esta conjuntura tem, evidentemente, os seus cambiantes. Por exemplo, numerosos elementos de direita foram tentados, em virtude do seu realismo intrínseco, a negociar com os factos consumados; e o ódio às tendências árabes socializantes foi por vezes mais forte do que o ódio nacionalista, e estranhas colusões se esboçaram na sombra. Mas, a violência dos sentimentos populares subjacentes travaram a marcha nesse sentido. À esquerda, os marxistas sentiam-se frequentemente bastante angustiados pelas diversas reviravoltas da política soviética no que tocava aos comunistas de estrita obediência [14] , pelo seu internacionalismo de princípio e pela prioridade que eles acordavam às lutas sociais. A questão foi um verdadeiro tormento, em particular, para os comunistas israelenses, judeus ou árabes. E não cessou de o ser. No Líbano, por fim, onde a luta inter-confessional está activa, os partidos cristãos ficaram divididos entre o seu arabismo e as suas preocupações com a política interna, situação que os levou a considerar tentadora a constituição de um bastião judeo-cristão do Levante, contra o qual as vagas ameaçadoras do Islão se viriam quebrar. Uma segunda categoria é, então, a dos políticos responsáveis: os que estão no poder. Convém lembrar que muitos deles foram recrutados entre os antigos irresponsáveis. Vimos aqui ser reproduzida a velha dinâmica dos compromissos exigidos entre o programa ideológico e as realidades que o poder revela. Nenhum governo pode menosprezar impunemente as aspirações populares que tentámos descrever acima. A promessa redobrada dos grupos políticos que permaneceram irresponsáveis deve ser tomada em séria consideração. Senão vejamos: as circunstâncias políticas internacionais e a repartição do poder militar travaram essa guerra de retaliação que seria a conclusão lógica dos sentimentos subjacentes das massas, que muitos dos grupos irresponsáveis apaixonadamente reclamam para si. O resultado normal dessas tendências opostas é o imobilismo. Se não se pode fazer a guerra, também é muito difícil fazer-se a paz. A partir de 1948, imediatamente depois da cessação das hostilidades, o secretário-geral da Liga Árabe, Abd ar-Rahman Azzâm, explicava a um jornalista: "Nós possuímos uma arma secreta, da qual nós sabemos servir-nos melhor do que de canhões e de metralhadoras, e essa arma é o tempo. Enquanto não estabelecermos a paz com os sionistas, a guerra não está acabada e enquanto a guerra não estiver acabada não há vencedores nem vencidos" [15] . Assim explica também, abertamente, um professor americano que, por essa altura, desempenhou um papel diplomático: "sem directivas claras provenientes de uma fonte única, porém com o consentimento e a participação de muitos árabes, formou-se a política do não reconhecimento e do boicote. Era uma maneira de manter a guerra com Israel nas frentes em que os árabes ainda tinham recursos. Tal como a recusa americana em reconhecer a China comunista, essa situação exprimia a recusa moral da ideia de levar ajuda e reconforto ao inimigo. Com a recusa do reconhecimento e com a interdição das relações, esperava-se que os árabes pudessem impedir os israelenses de consolidarem o seu Estado e de tomarem o seu lugar no seio da comunidade internacional. Raciocinando a partir de um sentido profundo da história, os árabes encontravam nas colónias dos Cruzados em território árabe muitos paralelismos com Israel. Mesmo que Israel não pudesse ser imediatamente esmagado, poderia chegar o dia em que o apoio que o Ocidente lhe prestava enfraqueceria. E ao falharem na afirmação de uma existência independente, os israelenses, tal como os Cruzados, renunciariam e voltariam para o lugar de onde tinham vindo" [16] . Assim se compreendem as razões profundas dessa "dança de guerra" [17] dançada em torno de Israel. Assim se compreende a ingenuidade da indignação dos israelenses ou dos seus partidários, imaginando os "bons árabes" cada um à sua maneira, e descobrindo depois, subitamente, que aqueles que lhes haviam sido apresentados como "moderados" são, no que toca ao não reconhecimento de Israel e consequentemente, pelo menos teoricamente, no que toca à guerra, a projecção ideal desse não reconhecimento, como consequência aparentemente obrigatória do devir. Pois que o projecto de guerra é com efeito a face "ideológica" do não reconhecimento. Em contrapartida, também os árabes se sentem chocados e indignados ao descobrirem que os israelenses "moderados" ou "compreensivos" não querem pôr em causa a existência independente de Israel nem tão pouco a autonomia de decisão (nomeadamente em matéria militar) da colectividade nacional formada pelos judeus estabelecidos em solo palestino. Mais uma vez, é necessário ter em conta as diferenças ou talvez os cambiantes da situação. Ninguém no Oriente é capaz de identificar os sentimentos populares acima descritos. A promessa redobrada dos governos dos diversos países árabes, representado o programa dos partidos em luta no conjunto da região, reduzem rapidamente à posição mínima comum todos aqueles que parecem manifestar o mais pequeno desejo de se afastarem. O statu quo tem certamente as suas vantagens do ponto de vista da política interna ao favorecer o apelo à União sagrada, ainda que seja falso ver aí, como fazem tendencialmente os israelenses, a única ou mesmo a principal causa da atitude árabe. Mas também têm os seus inconvenientes. Os dirigentes conservadores realistas foram tentados por esquemas de aproximação. Em determinados momentos, o mesmo se passou com os socializantes. O receio de uma revolta do sentimento popular mobilizado pelos rivais políticos impediu-os de irem mais longe nesse sentido. Apenas Bourguiba, que conjugava um poder interior forte e uma opinião menos sensibilizada para um problema que se lhe afigurava já distante, pôde ir um pouco mais longe. Será que o imobilismo vai continuar indefinidamente? Não há certezas. O que é certo é a inflexibilidade das atitudes públicas. Mas a pressão dos factos também é forte. A abertura a negociações requer no mínimo, do lado de Israel, se este não pretender apenas assistir à capitulação do adversário, algumas concessões territoriais ou algumas concessões sobre a organização política do território palestino-jordano. Do lado árabe, ela reclama o reconhecimento do Estado de Israel, ou seja, a aceitação da derrota. Trata-se de dois pré-requisitos inaceitáveis actualmente pela opinião pública do adversário e, consequentemente, pelos dirigentes. E se alguns cambiantes fossem adicionados? Se, de um lado, fosse reconhecido o direito à existência da colectividade nacional israelense, com a satisfação de concessões por parte desta; e se, do outro lado, se admitisse que há um preço a pagar (que não poria em causa a autonomia de decisão, mesmo militar, da nova nação) para ganhar a aceitação dessa no território onde ela se instalou, tal como no passado um preço teve de ser pago aos antigos mestres, os britânicos? Alguns passos tímidos recentes vão nesse sentido. O exemplo da República da Irlanda, que acabou por reconhecer recentemente a existência da Irlanda do Norte – criada em condições análogas às de Israel – é encorajador. Todavia, a evolução nesse sentido exige, pelo menos, um abandono das ilusões. De lado algum, se de deve esperar uma conversão súbita e gratuita do outro perante o olhar daquele que permanece, no momento, o inimigo.
Notas
Descrever a atitude dos árabes face ao problema que o Estado de Israel lhes coloca é um empreendimento demasiado fácil ou demasiado difícil. Demasiado fácil se nos limitarmos às proclamações oficiais que se podem resumir em algumas palavras sem cambiantes: hostilidade total, não reconhecimento absoluto da existência factual desse Estado. Podemos, justamente, citar as recentes declarações mais matizadas do presidente Habib Bourguiba. Ainda assim, ele próprio se apressou a atenuar o impacto das declarações e, oficialmente, em Israel, considerou-se que elas não constituíam senão uma variante sem importância das habituais teses árabes. Mas, por outro lado, se nos propusermos analisar a atitude real dos árabes, nas suas múltiplas variedades, chocamos com uma tarefa que me parece inelutável (porque a posição oficial tem, pelo menos, essa atitude em grande conta e de outro modo não poderia ser) mas também de uma enorme complexidade. Quem são os árabes, afinal? É necessário distinguir países, regiões, tipos de vida, classes sociais. E acima de tudo, dever-se-á tentar discernir os níveis do pensamento e da expressão. Os políticos responsáveis, toda a gente sabe, não falam frequentemente como pensam. Mas os cidadãos irresponsáveis, também eles, se podem deixar levar por estados de exaltação extrema que não correspondem ao seu modo de pensar em tempos de paz e de segurança (particularmente nos países mediterrânicos), eles podem mascarar as suas ideias por razões de medo do poder ou da opinião, de respeito humano, de interesse ou de ambição, eles podem passar de um entusiasmo belicoso a uma depressão resignada e derrotista, e vice-versa. Dever-se-á, igualmente, distinguir o discurso do pensamento íntimo e até subconsciente. E tudo isto evolui de acordo com os tempos e as circunstâncias. É por essa razão que o esboço que eu arrisco aqui recorre obrigatoriamente, a partir daquilo que eu penso conhecer dos humanos e das suas atitudes, a interpretações fundadas na intuição e nessa imaginação sociológica, cujo carácter insubstituível foi demonstrado por C. Wright Mills na abordagem dos problemas humanos. Tomemos como ponto de partida, aquele que é sem dúvida o mais profundo e o mais geral sentimento subjacente, ao qual poucos árabes podem escapar, mesmo quando o sublimam ou o ultrapassam, ou o contradizem: o sentimento de uma imensa humilhação. A razão disso é clara. Em 1948, as armadas árabes do Oriente sofreram uma derrota amarga. Os árabes, não comprometidos imediatamente, estavam solidários com a humilhação dos orientais, e com razão, pois o mundo entendeu o sucedido como um sinal manifesto da incapacidade político-militar dos árabes no seu conjunto. Já não se tratava de uma derrota militar ocasional. A guerra da Palestina não pode ser compreendida senão como o culminar de um processo comprometido há mais de meio século; e para os observadores exteriores, praticamente unânimes, durante toda a extensão do conflito, os árabes não fizeram mais do que coleccionar derrotas políticas até tornarem fatais, digamos assim, a decisão de partilha da ONU em 1947, a guerra subsequente (o recurso a esta guerra é em si uma derrota) e os seus resultados. Sobretudo, esta humilhação é concebida no contexto de uma humilhação mais geral, reforçada por desenvolvimentos que a alimentam. Os árabes vêm sendo humilhados, desde há muito tempo, em todos os planos. Eles pertencem a esse Terceiro Mundo que os europeus consideraram, a partir do século XIX, como retrógrado, e em estado de "colonisabilidade" (" colonisabilité" ), como referiu o argelino Malek Bennabi, e que esses mesmos europeus chegaram a colonizar, efectivamente. Disse-se e redisse-se o quanto essa situação tinha sido particularmente insuportável para um povo herdeiro de uma rica tradição cultural, que havia ele próprio dominado os outros durante tanto tempo, que havia transmitido a ideologia forjada no seu seio, a religião muçulmana, a tantos outros povos, e que, cem vezes mais, possuía um sentimento de superioridade. Os árabes sabem muito bem (pelo menos, os mais lúcidos e os mais corajosos que o proclamam) que a situação presente, juntamente com as disposições agressivas do Ocidente, resulta de fragilidades internas reais [1] . A era colonial não terminou assim há tanto tempo, e a independência reconquistada, em muitos lugares do mundo, não apagou as lembranças de uma época tão próxima, nem tão pouco impediu o ressentimento amargo provocado pela superioridade técnica e económica do Ocidente – facto que suscita obviamente situações de subordinação no Oriente. O Ocidente tem-se mostrado sempre preparado para reconquistar o terreno perdido, seja pela via económica (e eis o tema mais debatido do neocolonialismo), seja pela via militar, quando as circunstâncias o permitem, como parece ter sido o caso do Suez. E por fim, restam os territórios irredentos: a Arábia do Sul e precisamente Israel ao qual chamam oficialmente "a Palestina ocupada". As fragilidades denunciadas subsistem em grande parte e a consciência delas também. Tudo, na maneira de compreender o problema por parte dos não-árabes, contribui para exacerbar esse sentimento de humilhação. Na Europa e na América, geralmente, e muitas vezes também no Terceiro Mundo, os árabes apercebem-se que o ponto de vista israelense é profundamente compreendido e aceite. Entre os temas mais recorrentes da propaganda israelense, se encontramos frequentemente algum cepticismo relacionado com os direitos históricos dos judeus ao território palestino, outros temas já se tornaram, por assim dizer, ideias feitas. Tomemos como exemplo, a ideia de que o sofrimento extremo dos judeus lhes confere o direito irrecusável a um Estado próprio situado onde eles muito bem entenderem. Por todo o lado, os árabes chocam com a admiração pelos feitos do Estado sionista, com a apologia das virtudes civis e militares, políticas e económicas, culturais e sociais dos israelenses. Face a esta conjuntura, os árabes têm a perfeita consciência de que a sua propaganda é inadequada, que as suas explicações e justificações parecem pouco convincentes, que os seus esforços encontram no máximo uma cortesia indulgente. Um palestino constata amargamente o sucesso obtido automaticamente, no seio dos árabes, por uma posição ou por um livro ocidental favorável às teses árabes, ainda que estas sejam insuficientes ou censuráveis. É que "todos os que se preocupam com a questão no Ocidente são partidários do sionismo… Israel está habituado a encontrar partidários entre historiadores e pensadores ocidentais e os árabes estão habituados a encontrarem aí amigos fiéis do sionismo" [2] . Em França, a direita apoia Israel e, entre os campeões da sua causa, contam-se até mesmo anti-semitas dissimulados. A esquerda está atormentada, dividida entre o seu anti-colonialismo, que frequentemente tendeu a ser filo-árabe, e o seu anti-semitismo que lhe parece tornar difícil uma adesão às teses árabes. Os Estados Unidos asseguram formalmente a sua amizade para com os árabes e o seu maná é distribuído pelos diversos Estados árabes. Mas uma parte considerável dos recursos públicos e privados de Israel vem de lá [3] , e nas situações de grande instabilidade, os árabes sabem bem que Israel encontrará na maior potência do mundo um protector eficaz. O anti-sionismo visceral intrínseco aos árabes coincidiu com o anti-sionismo dogmático dos dirigentes soviéticos, decorrente da sua ideologia e das bases da sua política interna. Mas, nunca a URSS se alinhou às posições árabes, nem declarou formalmente o Estado de Israel ilegítimo na sua essência. A URSS tem mantido as suas relações oficiais com Israel e, por vezes, ensaia alguns passos na direcção de uma aproximação mais cordial. E ninguém esquece, apesar de tudo o que se passou depois, que a URSS teve um papel crucial no reconhecimento do Estado judeu, e que aviões checoslovacos contribuíram bastante para a sua vitória. É verdade que a China, passado pouco tempo, expressou o seu apoio total às reivindicações árabes. Todavia, a China é um protector longínquo, pouco eficaz no terreno, e para mais, comprometedor e até perigoso. Deixo de lado países menores em que árabes e Israelenses se entregam a uma luta de influência. Grosso modo, digamos que é raro que esses países apoiem absolutamente as teses árabes. Ninguém sabe o que aconteceria se os árabes adaptassem a doutrina de Hallstein e cortassem as relações com todos os Estados que reconhecem Israel! Os Estados árabes preferem não fazer a experiência e tudo parece dar-lhes razão.
Os governos deveriam ter em conta essa humilhação generalizada entre as populações árabes, pois esse é o grande sentimento, proveniente da situação concreta e subjacente a todas as suas atitudes. No entanto, deverão ter também em atenção, sentimentos igualmente provenientes de situações que vêm contrabalançar essa tendência profunda, e aqueles que a vêm acentuar. O que a contrabalança de forma mais vigorosa é evidentemente o apoliticismo, o "indiferentismo" político. Tal como noutros lugares, muitas pessoas, nos países árabes não se interessam pela política. No entanto, são menos numerosos do que nas sociedades industriais, pois a evolução política além parece mais directamente ligada ao futuro objectivo de cada um (o que me parece coerente). Por outro lado, um apoliticismo habitual pode, em tempo de crise, ser facilmente substituído por uma participação apoiada nos valores preconizados pelo elemento politizado da nação. E depois, os políticos têm frequentemente má consciência. O ambiente geral inspira-lhes o sentimento de que a atitude deles é falsa, inautêntica (exactamente no sentido em que Sartre fala de judeus inautênticos), sentem que deveriam ter uma opinião, e que essa opinião deveria ser a mesma que é professada pela maioria da elite da sua nação. Eles evitam (por essa razão e concerteza também em virtude dos perigos objectivos aos quais eles se exporiam) declarar de modo demasiado público a sua apatia relativamente aos valores exaltados de forma tão recorrente. Deve-se ainda falar, mais ou menos no mesmo sentido, do cepticismo disseminado nestas sociedades no que concerne a política dos governantes e os seus slogans. Durante milénios, estes povos foram habituados a serem governados por pessoas de estatuto altamente superior ao seu, e muitas vezes até por estrangeiros. O Egipto nunca viu, por assim dizer, um verdadeiro egípcio no poder entre a queda do faraó Nectanebo II (341 a.C.) e a revolução de 1952. O governo ( hokoûma ) é para eles uma espécie de mal necessário, do qual se deve duvidar ao máximo e do qual convém estar afastado, tanto quanto possível. Naturalmente, este estado de espírito está em vias de perder a sua influência com o surgimento da vida política moderna, e os seus partidos muitas vezes transbordantes de jovens entusiasmados. Contudo, ele é ainda fortemente divulgado e acentuado. Enquanto discípulo indirecto desses velhos sábios orientais, La Fontaine escrevia: "O nosso inimigo é o nosso mestre – isto digo-vos eu em bom francês". Isto disse-se durante séculos em bom egípcio antigo, em bom aramaico, e em bom árabe. Deste cepticismo resultava uma certa bonomia humana nas relações políticas. Temos pouca consciência disso no Ocidente, em que a atenção está principalmente virada para os excessos das multidões em fúria. Essas são reacções de tempos de crise, para as quais podemos facilmente encontrar equivalentes no Ocidente, e para as quais, já meio século passado, o doutor Gustave Le Bon achava necessário constituir uma teoria geral, a partir dos exemplos ocidentais, que se revelou insustentável. Mas em tempo normal, e em virtude do que tem vindo a ser dito, o homem comum, nos países orientais, estabelece a distinção entre os desígnios dos governantes, as opções políticas das organizações, e a humanidade dos executantes, enviados muitas vezes para fazer um trabalho que os repugna, ou mesmo que o façam com o coração, porque se comprometeram num momento de entusiasmo, de transporte ideológico durável, o seu carácter superficial é conhecido, o seu eu profundo pode, a qualquer momento, aflorar na sequência de uma derrota, que até pode ser pessoal. No Oriente, tanto como no Ocidente impregnado da teoria da responsabilidade colectiva, não se tem um homem por responsável pleno daquilo que os seus dirigentes o mandam fazer, ou até mesmo daquilo que a exaltação o pode levar a fazer. Daí resultam fenómenos que surpreendem o observador ocidental, e que ele pode interpretar mal, como as amizades inesperadas, as simpatias curiosas, os laivos de compreensão fugitiva do outro. Uma outra atitude, mais ou menos dissimulada, mas frequente, é a admiração pelo adversário. Ela coincide com a admiração (amarga, na maioria das vezes) dessa civilização europeia da qual o Estado de Israel é a emanação, a evidência emancipada em terras do Oriente, como Herzl outrora tinha já desejado. Naturalmente, existe, de forma geral, entre os árabes, o reconhecimento de poderes e de capacidades que lhes faltam, e que eles juram que vão adquirir pela via da retaliação. Essa imagem, entre os árabes, do "judeu engenhoso e hábil ao ponto quase do sobre-humano", de Israel dotado "de uma determinação obstinada, de uma energia e de uma habilidade imensas, de uma dedicação unilateral na busca dos seus objectivos" [4] não tornou senão os contactos mais difíceis, devido ao medo constante de serem "enrolados". É fácil de encontrar na literatura francesa do período entre 1872 e 1914, a expressão de sentimentos análogos relativamente ao talento das organizações alemãs, estranhamente permeada por comentários de desprezo (tal como no Oriente árabe) por esse rival e pela própria natureza da sua superioridade. Mas também encontramos muitas vezes, antes de 1948, em todo o caso, uma admiração de outro tipo, uma emulação suscitada pelas conquistas dos colonos judeus na Palestina mandatária, um desejo de seguir as suas doutrinas, que resultava por vezes numa identificação com as suas causas. Encontrei alguns desses admiradores, cujos sentimentos os levaram a uma atitude de "colaboração" com as potências ocidentais, e mais tarde com Israel. Ainda um outro tipo de atitude pode ser ilustrado pela figura espantosa de Abdel Razak Abdel-Kader, descendente do grande emir argelino, casado, salvo erro, com uma judia e trabalhador, durante algum tempo, num kibutz. Abdel-Kader, inspirado pelas suas ideias comunistas, chegou a teorizar sobre uma possível união revolucionária árabe-israelense, e a constituir na Argélia uma curiosa organização de resistência esquerdista, todavia microscópica e sem futuro [5] . A admiração é ainda suscitada pelas obras materiais dos judeus estabelecidos em solo palestino. Muitos invejam, também, as instituições democráticas que a sua estrutura social e a sua origem cultural, de carácter europeu, lhes proporcionaram. Muitos viram aí, como A. Abdel-Kader, um fermento revolucionário para as populações árabes ou, pelo menos, uma fonte de influência benéfica num sentido liberal. A partir destes elementos, muitas vezes se gera alguma confusão. Ninguém nega que a influência e a emulação se verificam, mas que daí decorra uma incitação à fraternidade ou à aliança, isso já é uma visão fantasiada das coisas. Israel continua a ser o inimigo. Nós podemo-nos inspirar no inimigo… mas apenas para o combater melhor. É necessário, também, observar que, naturalmente, as atitudes variam de um país árabe para outro. O Levante árabe sente-se intimamente implicado na crise palestiniana, o que é perfeitamente natural: a Síria, o Líbano, a Jordânia e, em menor grau, o Iraque formam juntamente com a Palestina árabe uma espécie de unidade que só foi quebrada pelos regulamentos resultantes da guerra de 1914-1918. A história destas antigas províncias do Império otomano é, em boa medida, uma história comum, mesmo após a sua separação política. Foi aí que se forjou a ideologia do nacionalismo árabe. O Egipto, praticamente separado do Império Otomano há mais de um século e meio, está mais distante, possui um sentimento de originalidade bastante claro, e foi atingido tardiamente pela vaga do arabismo. Os povos dos outros países árabes, ainda mais distantes, sentem-se menos envolvidos, excepto quando são tocados, em virtude do sentimento de solidariedade árabe, de modo desigual, mais ou menos profundamente, dependendo dos lugares e das camadas sociais, pelos sentimentos que eu descrevi. Conseguimos ter alguma noção dessas variações, pelo menos, no que toca ao Oriente. Os inquéritos conduzidos pelos sociólogos da Columbia University, em 1950-1951, mostraram que 4% dos egípcios citava como principal dificuldade, a ser enfrentada pela nação, o problema palestino, contra 2,7% dos libaneses, 21% dos sírios, e 51% dos jordanos (entre estes 65% dos refugiados originários do território do Estado de Israel e 43% dos outros) [6] . O orientalista germano-americano, Ilse Lichtenstadter, passou cinco meses numa aldeia egípcia no Sudoeste do Cairo em 1951, e ao interrogar os habitantes (todos eles muito atentos à política internacional, como acontece, aliás, a maior parte do tempo neste país) sobre a sua atitude perante a guerra da Palestina, constatou que: "nenhum dos numerosos homens com quem falou mostrou qualquer tipo de entusiasmo por essa guerra; alguns puseram mesmo em dúvida o bom senso da participação egípcia. Eles eram partidários da paz e da cooperação entre Israel e o seu país. Apesar de também serem árabes, não se sentiam solidários com os outros árabes nessa questão, contudo tinham alguma simpatia para com os refugiados. Esta atitude mostra claramente que eles são egípcios pela sua lealdade nacional, e árabes apenas pela sua tradição cultural" [7] . Raramente encontraríamos a expressão de tais atitudes na Síria, no Iraque e na Jordânia. Para mais, os acontecimentos políticos subsequentes trouxeram modificações mais ou menos importantes que se ficaram a dever a uma educação política mais estimulada das populações, na opinião de alguns, ou aos efeitos nefastos da propaganda oficial, segundo outros. Em todo o caso, o que é certo é que elas variam, em contexto idêntico, conforme a conjuntura política.
Se certos sentimentos difundidos vêm atenuar ou contrabalançar o intenso sentimento subjacente de humilhação, outros, pelo contrário, vêm reforçá-lo, exacerbá-lo. Existem as sequelas da judeofobia medieval das comunidades muçulmana e cristã – um tema que não é novo, e que tem sido desenvolvido diversas vezes. É, com efeito, um factor que deve ser cuidadosamente avaliado: não se deve sobrestimá-lo, nem subestimá-lo. Naturalmente, as teses podem ser alimentadas nas fontes dogmáticas, tais como: a crucificação de Jesus, no caso dos cristãos, e até de alguns muçulmanos; a oposição dos judeus de Medina ao Profeta, com todas as acusações corânicas que daí decorrem, no caso dos muçulmanos. Mas, a sua força vem da situação medieval em que se encontrava, ainda há pouco tempo, a sociedade oriental. As comunidades religiosas, fechadas sobre si mesmas, assemelhavam-se quase a pequenas nações: a devoção, a lealdade, a subordinação eram dirigidas a elas e nunca ao Estado. Estas comunidades gozavam de uma grande autonomia, regulavam elas mesmas a sua vida interna e as suas instituições. O Estado apenas exigia delas o imposto e o tributo. Poderíamos ainda compará-las com o sistema otomano dos millet, que tem antecedentes distantes e que ainda se conserva em larga medida no Líbano, e de certo modo, também um pouco em Israel. Entre estes grupos confessionais estabeleciam-se, naturalmente, relações de competição com as habituais consequências: desconfiança, hostilidade mais ou menos acentuada conforme as circunstâncias, por vezes, ódio e desprezo. A comunidade privilegiada era certamente aquela que dispunha do Estado; a comunidade muçulmana aceitava os outros e não procurava afastá-los de modo nenhum, contudo acordava-lhes um estatuto inferior. Desta situação resultava, logicamente, uma atitude de superioridade desprezível à qual as comunidades inferiorizadas respondiam com um ódio calculado. Esta situação foi-se transformando, em certa medida, ao longo de todo o século XIX e princípios do século XX, principalmente no Próximo Oriente otomano, no Egipto e na Tunísia (enquanto que em Marrocos, por exemplo, se conservava um carácter marcadamente medieval, na Argélia estabeleciam-se relações muito particulares, em consequência da profundidade da colonização e da aplicação do decreto de Crémieux). Era agora a vez destes países percorrerem o caminho que a Europa tinha seguido um século ou dois antes, na direcção de um Estado unificado, em que a religião se tornou tendencialmente um assunto privado, em que a igualdade perante a lei era proclamada. As comunidades cristãs e judaicas começavam a perder as suas especificidades e as proclamações teóricas do laicismo e da igualdade iam entrando lentamente nas suas práticas. Um judeu egípcio, Jacques Sanua, teve um papel importante no movimento nacionalista dos anos 1880-1910 [8] . No jovem Parlamento turco de 1908, dois deputados judeus foram eleitos. Naturalmente, as sequelas da situação anterior subsistiram, mas apenas a título de vestígios em vias de extinção. Todavia, durante esta fase, as particularidades remanescentes do sistema oriental medieval transformaram-se em vantagens. As comunidades conservavam esse estatuto de entidade colectiva (negada na Europa devido ao espírito rousseauniano da Revolução francesa) que se ia tornando agora igualitário. Os chefes de todas as comunidades tinham autoridade reconhecida. Apenas para mencionar um detalhe, as regras de vida de cada comunidade eram admitidas como sendo igualmente legítimas, e as grandes festas de cada uma delas eram igualmente festejadas em vários Estados. Esta situação veio a ser transformada, em parte, pela declaração de Balfour e a sua promessa de um "home" nacional judeu na Palestina, que os árabes entenderam como uma orientação que levaria inevitavelmente à alienação e à usurpação desse território, apesar das negações oficiais a esse respeito. Tudo se agravou, naturalmente, quando se aperceberam que os seus receios se confirmavam na elaboração do programa de Biltmore (1942) pelos próprios sionistas, na proclamação do Estado de Israel (1948), e nos conflitos militares que se seguiram. A partir daqui, o estado de guerra passou a dominar e os armistícios de 1949 não lhe puseram um fim, como se sabe. Houve em toda a parte um extravasar deste fenómeno a que eu chamei de racismo de guerra, e do qual praticamente nenhum conflito internacional está isento. O inimigo israelense era identificado com os judeus do mundo inteiro, o que não é de estranhar, porque efectivamente os sionistas apresentavam-se como a avant-garde da totalidade do "povo judeu", tentavam mobilizar judeus em toda a parte para defenderem a sua causa, e em parte conseguiam-no, não cessavam de se gabar do apoio do "judaísmo" ou da "judaícidade" (" judaïcité ") mundial. Por outro lado, era fácil fundar estes sentimentos novos sobre as sequelas da situação medieval de que falámos há pouco. Por fim, é preciso ter em conta que, durante o período compreendido sensivelmente entre 1933-1943, a propaganda alemã tinha difundido os seus temas anti-britânicos e denunciado a "plutodemocracia" ocidental servindo-se da hostilidade árabe relativamente ao sionismo e disseminando a tese da conspiração judia universal [9] – explicação tentadora dos acontecimentos. No entanto, os judeus dos países árabes só começaram a sofrer seriamente as repercussões do conflito depois da guerra de 1948 [10] . A tudo isto juntavam-se ainda ressentimentos de ordem social e nacional, sendo as comunidades judaicas vistas muitas vezes no Oriente (à semelhança das comunidades cristãs em larga medida) como representantes da elite da fortuna, apreciadora, em certa medida, do modo de vida ocidental, ligada frequentemente e estreitamente pelos interesses e pela cultura às potências colonizadoras. Deste modo, o conflito palestino teve consequências no sentido do desenvolvimento de uma judeofobia generalizada, à qual se chama tão inexactamente, na Europa, de anti-semitismo. É necessário, todavia, insistir no facto de que esses desenvolvimentos são o subproduto de um conflito limitado no espaço e, previsivelmente, no tempo. Esses desenvolvimentos não foram teorizados, senão raramente, por grupos bastante restritos que elaboraram uma tese geral explicando toda a evolução histórica através da maldade de uma raça maldita, como foi o caso, em larga escala, no Ocidente, a partir de 1880. Os políticos responsáveis, de modo geral, fizeram questão de afirmar que o seu anti-sionismo não significava um antijudaísmo generalizado e tentaram demonstrá-lo através de gestos simbólicos [11] . Apesar de tudo, a judeofobia muçulmana nunca atingiu as formulações excessivas que o R. P. Demann listava ainda há pouco tempo e que ele denunciava nos catecismos cristãos mais utilizados ainda actualmente. Em todo o caso, consequentemente, a atitude árabe não se pode explicar através de um "anti-semitismo" de princípio, teorizado, racial ou religioso, que seria a base dos comportamentos actuais. Do mesmo modo que o anti-semitismo europeu também não tem como fundamento real um mito, mas antes uma situação que engendrou esse mito. Simplesmente essa situação não foi criada pelos judeus, mas contra os judeus. O mito organizava-se unicamente em torno da significação de ofensas imaginárias, ou quando estas tinham algum fundo de verdade, não provinham da vontade livre de grupos judeus, mas da situação social em que eles tinham sido forçosamente colocados (a prática da usura, por exemplo). Em contrapartida, o anti-sionismo árabe desenvolve-se essencialmente a partir de uma ofensa bastante real (mesmo que esta seja desculpada ou justificada), de uma situação criada pela vontade livre de grupos judeus poderosos que se proclamavam representantes do conjunto de todos judeus. Apenas essa ofensa real confere alguma significação aos mitos anti-semitas por vezes avançados para a explicar. Sem ela, esses mitos perdem toda a sua força.
É agora possível compreender melhor a atitude não das massas, mas dos políticos. Devemos distinguir de imediato duas categorias. Para começar, a dos políticos não responsáveis: aqueles que dirigem os partidos excluídos do poder, ou a eles aderem. Seguindo as leis bem conhecidas da dinâmica dessas organizações, sabemos que elas têm todo o interesse em insistir ao máximo nos sentimentos incutidos nas massas, em afirmar a sua intransigência relativamente a eles, em tentar mobilizar as massas com o intuito de as capitalizar. Estes são factores permanentes de intransigência extremista. Seria necessário um estudo detalhado, que não pode ser agora aqui desenvolvido por mim, para mostrar como o tema da guerra contra Israel se inseriu, e sob que formas, no programa e na acção desses diversos grupos [12] . De forma breve, digamos simplesmente que os grupos ideológicos de direita, insistindo, como é a sua tendência normal, numa unidade nacional ou religiosa, acabaram por reduzir o conflito a uma pura luta nacional (casualmente com manifestações de teor racista); enquanto que os grupos de esquerda viram nesse conflito a manifestação local de uma luta socionacional internacional, um aspecto do esforço geral do imperialismo-colonialismo ( istî mâr ) [13] para explorar e dominar o Terceiro Mundo. Toda esta conjuntura tem, evidentemente, os seus cambiantes. Por exemplo, numerosos elementos de direita foram tentados, em virtude do seu realismo intrínseco, a negociar com os factos consumados; e o ódio às tendências árabes socializantes foi por vezes mais forte do que o ódio nacionalista, e estranhas colusões se esboçaram na sombra. Mas, a violência dos sentimentos populares subjacentes travaram a marcha nesse sentido. À esquerda, os marxistas sentiam-se frequentemente bastante angustiados pelas diversas reviravoltas da política soviética no que tocava aos comunistas de estrita obediência [14] , pelo seu internacionalismo de princípio e pela prioridade que eles acordavam às lutas sociais. A questão foi um verdadeiro tormento, em particular, para os comunistas israelenses, judeus ou árabes. E não cessou de o ser. No Líbano, por fim, onde a luta inter-confessional está activa, os partidos cristãos ficaram divididos entre o seu arabismo e as suas preocupações com a política interna, situação que os levou a considerar tentadora a constituição de um bastião judeo-cristão do Levante, contra o qual as vagas ameaçadoras do Islão se viriam quebrar. Uma segunda categoria é, então, a dos políticos responsáveis: os que estão no poder. Convém lembrar que muitos deles foram recrutados entre os antigos irresponsáveis. Vimos aqui ser reproduzida a velha dinâmica dos compromissos exigidos entre o programa ideológico e as realidades que o poder revela. Nenhum governo pode menosprezar impunemente as aspirações populares que tentámos descrever acima. A promessa redobrada dos grupos políticos que permaneceram irresponsáveis deve ser tomada em séria consideração. Senão vejamos: as circunstâncias políticas internacionais e a repartição do poder militar travaram essa guerra de retaliação que seria a conclusão lógica dos sentimentos subjacentes das massas, que muitos dos grupos irresponsáveis apaixonadamente reclamam para si. O resultado normal dessas tendências opostas é o imobilismo. Se não se pode fazer a guerra, também é muito difícil fazer-se a paz. A partir de 1948, imediatamente depois da cessação das hostilidades, o secretário-geral da Liga Árabe, Abd ar-Rahman Azzâm, explicava a um jornalista: "Nós possuímos uma arma secreta, da qual nós sabemos servir-nos melhor do que de canhões e de metralhadoras, e essa arma é o tempo. Enquanto não estabelecermos a paz com os sionistas, a guerra não está acabada e enquanto a guerra não estiver acabada não há vencedores nem vencidos" [15] . Assim explica também, abertamente, um professor americano que, por essa altura, desempenhou um papel diplomático: "sem directivas claras provenientes de uma fonte única, porém com o consentimento e a participação de muitos árabes, formou-se a política do não reconhecimento e do boicote. Era uma maneira de manter a guerra com Israel nas frentes em que os árabes ainda tinham recursos. Tal como a recusa americana em reconhecer a China comunista, essa situação exprimia a recusa moral da ideia de levar ajuda e reconforto ao inimigo. Com a recusa do reconhecimento e com a interdição das relações, esperava-se que os árabes pudessem impedir os israelenses de consolidarem o seu Estado e de tomarem o seu lugar no seio da comunidade internacional. Raciocinando a partir de um sentido profundo da história, os árabes encontravam nas colónias dos Cruzados em território árabe muitos paralelismos com Israel. Mesmo que Israel não pudesse ser imediatamente esmagado, poderia chegar o dia em que o apoio que o Ocidente lhe prestava enfraqueceria. E ao falharem na afirmação de uma existência independente, os israelenses, tal como os Cruzados, renunciariam e voltariam para o lugar de onde tinham vindo" [16] . Assim se compreendem as razões profundas dessa "dança de guerra" [17] dançada em torno de Israel. Assim se compreende a ingenuidade da indignação dos israelenses ou dos seus partidários, imaginando os "bons árabes" cada um à sua maneira, e descobrindo depois, subitamente, que aqueles que lhes haviam sido apresentados como "moderados" são, no que toca ao não reconhecimento de Israel e consequentemente, pelo menos teoricamente, no que toca à guerra, a projecção ideal desse não reconhecimento, como consequência aparentemente obrigatória do devir. Pois que o projecto de guerra é com efeito a face "ideológica" do não reconhecimento. Em contrapartida, também os árabes se sentem chocados e indignados ao descobrirem que os israelenses "moderados" ou "compreensivos" não querem pôr em causa a existência independente de Israel nem tão pouco a autonomia de decisão (nomeadamente em matéria militar) da colectividade nacional formada pelos judeus estabelecidos em solo palestino. Mais uma vez, é necessário ter em conta as diferenças ou talvez os cambiantes da situação. Ninguém no Oriente é capaz de identificar os sentimentos populares acima descritos. A promessa redobrada dos governos dos diversos países árabes, representado o programa dos partidos em luta no conjunto da região, reduzem rapidamente à posição mínima comum todos aqueles que parecem manifestar o mais pequeno desejo de se afastarem. O statu quo tem certamente as suas vantagens do ponto de vista da política interna ao favorecer o apelo à União sagrada, ainda que seja falso ver aí, como fazem tendencialmente os israelenses, a única ou mesmo a principal causa da atitude árabe. Mas também têm os seus inconvenientes. Os dirigentes conservadores realistas foram tentados por esquemas de aproximação. Em determinados momentos, o mesmo se passou com os socializantes. O receio de uma revolta do sentimento popular mobilizado pelos rivais políticos impediu-os de irem mais longe nesse sentido. Apenas Bourguiba, que conjugava um poder interior forte e uma opinião menos sensibilizada para um problema que se lhe afigurava já distante, pôde ir um pouco mais longe. Será que o imobilismo vai continuar indefinidamente? Não há certezas. O que é certo é a inflexibilidade das atitudes públicas. Mas a pressão dos factos também é forte. A abertura a negociações requer no mínimo, do lado de Israel, se este não pretender apenas assistir à capitulação do adversário, algumas concessões territoriais ou algumas concessões sobre a organização política do território palestino-jordano. Do lado árabe, ela reclama o reconhecimento do Estado de Israel, ou seja, a aceitação da derrota. Trata-se de dois pré-requisitos inaceitáveis actualmente pela opinião pública do adversário e, consequentemente, pelos dirigentes. E se alguns cambiantes fossem adicionados? Se, de um lado, fosse reconhecido o direito à existência da colectividade nacional israelense, com a satisfação de concessões por parte desta; e se, do outro lado, se admitisse que há um preço a pagar (que não poria em causa a autonomia de decisão, mesmo militar, da nova nação) para ganhar a aceitação dessa no território onde ela se instalou, tal como no passado um preço teve de ser pago aos antigos mestres, os britânicos? Alguns passos tímidos recentes vão nesse sentido. O exemplo da República da Irlanda, que acabou por reconhecer recentemente a existência da Irlanda do Norte – criada em condições análogas às de Israel – é encorajador. Todavia, a evolução nesse sentido exige, pelo menos, um abandono das ilusões. De lado algum, se de deve esperar uma conversão súbita e gratuita do outro perante o olhar daquele que permanece, no momento, o inimigo.
Notas
[1] Este assunto foi particularmente desenvolvido pelo historiador libanês cristão Constantin ZURAYQ, num livro intitulado significativamente Ma'nà na-nakba [A significação do desastre]. [2] NAJÎ' ALLOUSH, Al-marîra ilà Falatîn [Partida para a Palestina], Beyrouth, Dar at-talî'a, 1964, p. 62. [3] Cf. por exemplo SITTON (S.), Israel, immigration et croissance, Paris, Cujas, 1963, pp. 282 sqq. 356-358. [4] CREMEANS (C.D.), Arabs and the world, Nasser's Arab nationalist policy, New York, London, Praeger, 1963, p. 182. Aconselha-se a leitura da notável descrição da "imagem árabe dos Israelenses" (pp. 182-187), seguida da descrição da "imagem israelense dos Árabes" (pp. 187-190) na obra deste professor e diplomata americano. [5] Cf. ABDEL-KADER (A.R.), Le conflit judéo-arabe, Paris, Maspéro, 1961 (Cahiers livres, 20-21). Eu fiz uma crítica longa deste livro em Vérité-Liberté 16-17, févr.-mars 1962, pp. 5-7. O homem é entrevistado, de forma bastante divertida, em La Terre retrouvée du 1er avril 1966, pp. 1-2, e exaltado como "um verdadeiro comunista árabe" (p. 8) por esse órgão, habitualmente, muito pouco inclinado à esquerda. [6] LERNER, (D.), The passing of the traditional society, Modernizing the Middle East, Glencoe (III.), the Free Press, 1958, p. 313. [7] LICHTENSTADTER (I.), "An Arab Egyptian family". Middle East Journal 6 (4), Autumn 1952, pp. 379-399; note-se que essa cidade é povoada por Árabes de raiz, conscientes da sua origem (p. 398). [8] Ver o artigo que lhe é consagrado por J.M. LANDU na Encyclopédie de l'Islam, 2eme éd., Leyde, Brill; Paris, Besson, 1962, cf. t. I: Abû Naddâra [o homem dos óculos verdes], p. 146; a sua alcunha é o título do diário satírico que ele publicou. [9] Sem, contudo, se comprometer a fundo nas promessas aos árabes e guardando durante muito tempo a ideia da complementaridade do objectivo sionista com o seu: limpar a Alemanha de elementos "estrangeiros". Cf. HIRSZOWICZ (L.), "Nazi Germany and the Palestine partition plan", Middle Eastern Studies 1 (1), oct. 1964, pp. 40-65. [10] Cf. por exemplo CHOURAQUI (A.), L' Alliance israélite universelle e la renaissance juive contemporaine (1860-1960), Paris, Presses universitaires de France, 1965, pp. 331 sqq., 380 sqq. [11] Não sem confusões. Cf. as oposições árabes à adopção do esquema sobre os judeus, pelo Concílio, acompanhadas de protestos em que se declaram isentos de anti-semitismo. Todavia, a persistência israelense em identificar a causa de Israel com a da "judaícidade" mundial só encoraja essas confusões. [12] Cf. por exemplo NAJÎ' ALLOUSH, op. cit., pp. 89 sqq. [13] A palavra árabe significa simultaneamente "colonialismo" e "imperialismo", facto que não está isento de consequências. O conceito marxista de imperialismo foi adoptado por todas as tendências. Sobre essa diferença de interpretação entre a direita e a esquerda, cf. os números dos inquéritos sociológicos em LERNER (D.), op. cit., p. 294. [14] O discurso de Gromyko nas Nações Unidas, em 1947, apoiando a solução da partilha da Palestina tendo como corolário a criação de um Estado judeu, solução à qual se opuseram fortemente os partidos comunistas do mundo árabe até ao dia anterior, teve um efeito bastante semelhante ao provocado pelo pacto germano-soviético em 1939 na Europa. [15] BRETHOLZ (Wolfgang), Aufstand der Araber, München, Wien, Basel, Verlag K. Desch, 1960, p. 215. [16] CREMEANS (C.D.), op. cit., p. 193. [17] LERNER (D.), op. cit., p. 9.
Maxime Rodinsonhttp://resistir.info/
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