sexta-feira, setembro 22, 2006

Pôr palavras na boca de Ahmadinejad

Será que o Presidente iraniano é mesmo um fascista islâmico, um anti-semita que nega a existência do Holocausto e que ameaça "varrer Israel do mapa"?
Perante esta terrível confusão no Médio Oriente, convém esclarecer uma coisa: O Irão não está a ameaçar destruir Israel. O presidente iraniano não anunciou qualquer acção contra Israel. Ouvimos repetidas vezes que o Irão está fortemente "empenhado em aniquilar Israel", porque o seu presidente Ahmadinejad, "louco" ou "inconsciente" ou "ortodoxo", ameaçou repetidamente destruir Israel. Mas cada alegada citação, cada suposta afirmação, está errada. A citação mais infame – "Israel deve ser varrida do mapa" – é a mais ostensivamente falsa. No discurso proferido em Outubro de 2005, o sr. Ahmadinejad nunca usou a palavra "mapa", nem o termo "varrer". Segundo especialistas da língua farsi, como Juan Cole, e mesmo serviços conotados com a direita como o MEMRI, o que ele disse na realidade foi que "este regime que ocupa Jerusalém deve desaparecer dos anais do tempo". O que significa isso? Nesse discurso numa conferência anual anti-sionista, o Sr. Ahmadinejad estava ser profético, mas não intimidador. Ele citava o Imã Khomeini, que proferiu esta afirmação nos anos 80 (num período em que Israel, efectivamente, vendia armas ao Irão, o que, na altura, não era encarado com tanto desagrado). Ele acabara de relembrar ao público que o regime do Xá, a União Soviética e o Saddam Hussein que pareciam imensamente poderosos e imutáveis e, no entanto, os dois primeiros praticamente desapareceram sem deixar rasto e o terceiro agoniza na prisão. Da mesma forma, também o "regime ocupante" em Jerusalém haveria de desaparecer um dia. A sua mensagem era, no fundo, a de que "também isto passará" Mas, então, e as outras "ameaças" a Israel? O mundo dos mexericos aproveitou-se bem do alegado comentário feito posteriormente, durante esse mesmo discurso: "Não há dúvida: a nova onda de agressões na Palestina vai apagar o estigma da face do mundo islâmico". "Estigma" foi interpretado como sendo "Israel" e "onda de agressões" tinha um tom assustador. Mas, na realidade o que ele disse foi: "Eu não duvido que o novo movimento na nossa querida Palestina é uma onda de moralidade que se alastra por todo o mundo islâmico e que, em breve, irá limpar esta nódoa de vergonha do mundo islâmico". "Onda de moralidade" não é a mesma coisa que "onda de agressões". A afirmação anterior esclarecia que a "nódoa de vergonha" era o fracasso do mundo islâmico em eliminar o "regime ocupante". Durante meses, académicos como Cole e jornalistas como Jonathan Steele do jornal londrino The Guardian têm denunciado estes erros de tradução, enquanto muitos mais vão aparecendo, como, por exemplo, os comentários do Sr. Ahmadinejad num encontro da Organização dos Países Islâmicos a 23 de Agosto de 2006. Segundo a Rádio Free Europe (Europa Livre) ele afirmou "que a "cura principal" para a crise no Médio Oriente é a eliminação de Israel". "Eliminação de Israel" implica destruição física: bombas, ataques aéreos, terrorismo ou atirar judeus ao mar. Tony Blair classificou a declaração traduzida como "chocante". Porém. O Sr. Ahmadinejad nunca disse tal coisa. Segundo a versão da al-Jazeera, o que ele realmente afirmou foi que "a cura verdadeira para o conflito é a eliminação do regime sionista, mas primeiro deve haver um cessar-fogo imediato". São evidentes as intenções infames em traduzir constantemente "eliminação do regime ocupante" por "destruição de Israel". Por "regime" entenda-se o governo e não as populações ou cidades. O "regime sionista" é o governo israelense e o seu sistema legislativo que anexaram território palestiniano e mantêm milhões de cidadãos palestinianos sob ocupação militar. Muitos activistas dos Direitos Humanos da linha predominante acreditam que o "regime" israelense deve ser efectivamente alterado, embora discordem da forma como deve ser feito. Alguns esperam que Israel se redima por uma mudança de filosofia e governo (regime) que permitiria a solução dos dois Estados. Outros acreditam que o Estado judeu é intrinsecamente injusto, uma vez que incorpora, no Governo da Nação, princípios racistas, e reclamam a sua transformação numa democracia secular (mudança de regime). Nenhuma destas ideias sobre a mudança do regime implica a expulsão dos judeus (em direcção ao mar) ou a devastação das suas vilas e cidades. Todas implicam uma mudança política profunda, necessária para a implantação de uma paz justa. O sr. Ahmadinejad proferiu outras declarações na Organização dos Países Islâmicos que atestam claramente a sua opinião de que o caso de Israel deve abordado no enquadramento do direito internacional. Por exemplo, ele reconheceu a realidade das actuais fronteiras quando afirmou que "qualquer agressor deve retornar à fronteira internacional libanesa". Reconheceu a autoridade de Israel e o papel da diplomacia quando observou que "devem ser preparadas as condições para o regresso dos refugiados e deslocados e os prisioneiros devem ser trocados". Também apelou ao boicote: "Nós propomos que as nações islâmicas cortem de imediato todas as relações políticas e económicas, explícitas ou não, com o regime sionista". Uma grande parte dos principais grupos judeus de defesa da paz, entidades religiosas americanas e bandos de organizações de defesa dos direitos humanos já afirmaram o mesmo. É, ainda, de justiça, uma palavra final sobre a "negação do Holocausto" do sr. Ahmadinejad. A negação do Holocausto é um assunto muito sensível no Ocidente, quando ele notoriamente serve o anti-semitismo. No entanto, em qualquer outro lugar do mundo, as incertezas sobre o Holocausto devem-se a simples desinformação. É um erro pensar que existe muita informação sobre o tema a nível mundial (Sejamos um pouco mauzinhos: os americanos revelam a mesma espantosa estreiteza de horizontes relativamente ao conhecimento geral quando, por exemplo, atingem a meia-idade sem entender que as forças militares americanas mataram, pelo menos, 2 milhões de vietnamitas e acreditam que quem tal afirma é anti-americano. A maioria dos franceses ainda não admitiu que o seu exército dizimou um milhão de árabes na Argélia) O cepticismo acerca da história do Holocausto começou a espalhar-se pelo Médio Oriente, não porque as pessoas odeiem os judeus, mas porque essa história é utilizada como argumento para justificar o direito de Israel à "autodefesa" através do ataque a qualquer país nas suas proximidades. As populações do Médio Oriente estão tão habituadas a falsidades do Ocidente legitimando as ocupações colonialistas ou imperialistas, que muitos se interrogam se o argumento dos 6 milhões de mortos não será mais um mito ou uma história exagerada. É desanimador que o Sr. Ahmadinejad pareça pertencer a este grupo menos culto, mas ele nunca foi conhecido pelo seu elevado nível de qualificação. Ainda assim, o sr. Ahmadinejad não disse aquilo que a Subcomité americano sobre Política de Inteligência declarou: "Eles inventaram o mito do massacre dos judeus e colocam-no acima de Deus, religiões e profetas". Na realidade as suas palavras foram: "Em nome do Holocausto, criaram um mito e consideram-no mais importante do que Deus, a religião e os profetas". Esta linguagem refere-se ao mito do Holocausto não ao Holocausto em si mesmo, ou seja, "mito" no sentido de "místico", ou aquilo que foi feito com o Holocausto. Alguns escritores, entre os quais importantes teólogos judeus, têm criticado o "culto" ou o "fantasma" do Holocausto, sem, no entanto, negarem a sua ocorrência. Em qualquer dos casos, a principal mensagem do sr. Ahmadinejad é a de que, se o Holocausto aconteceu tal como a Europa o descreve, então é a Europa, e não o mundo islâmico, a responsável por ele. Por que razão as palavras do sr. Ahmadinejad são tão sistematicamente mal traduzidas e a sua imagem diabolizada? Será preciso perguntar? Se o mundo acreditar que o Irão se prepara para atacar Israel, então os EUA e Israel podem invocar justificação se atacarem primeiro. Com este intuito, a campanha de desinformação acerca das afirmações do sr. Ahmadinejad tem sido preparada até ao pormenor com uma nova leva de mentiras: promover o (inexistente) programa de armas nucleares. A actual agitação à volta do programa de enriquecimento nuclear iraniano está a ser arquitectada de forma tão semelhante à história das armas de destruição maciça no Iraque que devemo-nos interrogar por que razão não obtém da parte da comunidade internacional apenas uma gargalhada sonora. Com tantos temas respeitantes ao Irão – petróleo, hegemonia americana, fantasias neo-conservadoras de "um novo Médio Oriente" – a administração de Bush criou um receio internacional profundo acerca do programa de enriquecimento nuclear iraniano (ver Ray Close, Porque o Bush optará pela guerra contra o Irão). Mas os inspectores da Agência Internacional de Energia Atómica, depois de examinar as instalações e relatórios do Irão, não encontraram provas de um programa de armas. E a comunidade dos serviços secretos americanaos também não. Todos os especialistas concordam que, mesmo que tal programa exista, só daqui a cinco ou dez anos o Irão teria urânio enriquecido em quantidade suficiente para uma arma que fosse, como tal uma acção militar preventiva neste momento não se justificaria. Até mesmo o relatório recente da subcomité sobre Política de Inteligência, dominadp pelos Republicanos, que indica que o governo americano não tem a informação necessária sobre o programa iraniano de armamento para o impedir, confirma claramente que a alegada "inteligência" é dispersa e inadequada. A distracção casual da administração Bush em relação ao programa nuclear da Coreia do Norte indica que a questão central não é, de facto, as armas nucleares. As intenções dos neo-conservadores é mudar o regime no Irão e, por isso, puseram os seus propagandistas a postos para difundir o medo das "armas nucleares" tal como o tinham feito sobre as armas de destruição maciça no Iraque. Comentadores de retórica republicana e da ala direita já se alinharam, repetindo obedientemente afirmações infundadas que o Irão tem um "programa de armas nucleares", que ameaça o mundo, em especial Israel, com o seu "programa de armas nucleares" e que devem ser impedidos de completar o seu "programa de armas nucleares". Aqueles que, nervosamente, chamam a atenção para a falta de provas claras sobre qualquer "programa de armas nucleares" do Irão são apelidados de ingénuos e fantoches. Pior ainda, a administração Bush levou esta farsa até às Nações Unidas, intimidou o Conselho de Segurança a emitir uma resolução (SC 1696) exigindo que o Irão cesse o enriquecimento de urânio até 31 de Agosto e ameaçando com sanções caso não o fizesse. A par da actuação desastrosa a respeito do ataque de Israel ao Líbano, o Conselho de Segurança esboroou-se numa incompetência submissa e humilhante perante este assunto. Tal como todos os fantasmas, a alegação das armas nucleares é difícil de contrariar porque não pode ser completamente refutada. Pode ser que alguns cientistas iranianos estejam algures, em alguma instalação subterrânea, a trabalhar em tecnologia de armas nucleares. Se calhar alguns prospectores para a Coreia do Norte já exploraram as possibilidades de arranjar componentes extras. É possível que, em algum momento, uma nave espacial extraterrestre tenha embatido no deserto do Nevada. Normalmente, só porque uma coisa não pode ser contestada não a converte em verdade. Mas no universo dos neo-conservadores as possibilidades são realidades e uma certa imprensa cobarde apresenta-se pronta para bater a continência e trombetear em alta voz parangonas alarmistas. Não é preciso muito para que, através da repetição constante da expressão "eventual programa de armas nucleares", a palavra "eventual" se desvaneça silenciosamente. Em qualquer dos casos, a prova é apenas um detalhe para a administração Bush cujo anseio pelas armas nucleares é motivo suficiente para justificar um ataque antecipativo. Nos Estados Unidos, em debates que antecederam a invasão do Iraque, as pessoas insistiam, por vezes, que era grave a falta de provas sobre a existência de armas de destruição maciça. Nessa altura, a Casa Branca argumentava que, uma vez que Saddam Hussein "desejava" tais armas, o mais provável seria que ele viesse a tê-las no futuro. Por conseguinte, crimes de pensamento, mesmo imaginários, eram agora puníveis com invasão militar. Será que os EUA vão mesmo atacar o Irão? Generais americanos estão justamente preocupados que o bombardeamento das instalações nucleares do Irão despoletaria ataques sem precedentes sobre as forças de ocupação americanas quer no Iraque, quer às bases americanas no Golfo. O Irão poderia mesmo bloquear o estreito de Ormuz, por onde passa 40 por cento do petróleo mundial. A difusão da militância terrorista dispararia. Os prejuízos potenciais para a segurança internacional e para a economia mundial seriam incomensuravelmente perigosos. Os neo-conservadores da administração Bush parecem capazes de cometer qualquer loucura, por isso nada disto lhes interessa. Mas mesmo estes senhores devem ter-se acalmado quando Israel fracassou em aniquilar o Hezbollah com recurso a violência idêntica, planeada para o Irão, sob a forma de ataque aéreo. Mas Israel pode atacar o Irão e este pode ser o plano. Em conjunto, os dois países podem compensar-se mutuamente das suas respectivas limitações estratégicas. Os EUA têm contribuído com a sua influência de super potência, preparando o terreno para as sanções, sabendo que o Irão não cederá no seu programa de enriquecimento. Tendo disseminado, internacionalmente, a crença (infundada) que o Irão ameaça com um ataque directo a Israel, o governo israelense pode, assim, reclamar o direito à autodefesa ao enveredar por uma acção preventiva unilateral para destruir a capacidade nuclear de um Estado declarado em ruptura com as directivas das Nações Unidas. Uma retaliação directa do Irão contra Israel está fora de questão porque Israel é uma potência nuclear (contrariamente ao Irão) e porque a capa protectora da segurança americana protegeria Israel. Uma reacção a nível regional contra alvos americanos poderia ser coarctada pela (escassa) confusão sobre a cumplicidade indirecta dos EUA. Nesse caso, aquilo a que estamos a assistir é a criação, por parte dos EUA, do contexto de segurança internacional para o ataque unilateral de Israel e a preparação para cobrir a retaguarda de Israel na sua sequência. É este realmente o plano? Alguns indícios sugerem que esse cenário está em cima da mesa. Nos últimos anos Israel tem comprado novos mísseis destruidores de bunkers ("bunker-busting"), uma frota de caças F-16 e três submarinos alemães Dolphin da mais recente tecnologia (e tem mais dois encomendados), ou seja, o armamento mais adequado para atacar as instalações nucleares iranianas. Em Março de 2005, o Times de Londres noticiou que Israel tinha construído um modelo rudimentar das instalações Natanz no deserto iraniano e estava a efectuar uma série de exercícios de bombardeamento. Nos últimos meses, oficiais israelenses declararem publicamente que, no caso de as Nações Unidas não tomarem medidas, Israel bombardeará o Irão. Mas o Hezbollah, aliado do Irão, ainda é uma ameaça nos flancos de Israel. Assim, atacar o Hezbollah foi mais do que um ensaio para atacar o Irão, como disse Seymor Hersh — era necessário para atacar o Irão. Israel não conseguiu aniquilar o Hezbollah, mas o resultado pode ainda ser melhor, agora que a Resolução 1701 do Conselho de Segurança responsabilizou toda a comunidade internacional pelo desarmamento do Hezbollah. Se a Resolução 1701, patrocinada pelos EUA, tiver êxito, a agressão ao Irão é uma certeza. Enquanto Israel e os EUA tentarem pôr em prática esse plano mal engendrado, iremos continuar a ler em todos os fóruns que o presidente iraniano – esse fascista islâmico, irracional e perigoso, que odeia judeus, nega o Holocausto e ameaça "varrer Israel do mapa" – é suficientemente insano, como se pode comprovar, para cometer um suicídio nacional ao lançar um (inexistente) programa de armas nucleares contra o poderoso arsenal nuclear de Israel. A mensagem tem sido bem martelada: contra este mito criado pelos media, Israel tem mesmo de "se defender".
 Ver também: Carta do presidente do Irão ao presidente dos EUA [*] Professora de ciências políticas, cidadã americana a trabalhar na África do Sul e autora de The One-state Solution: A Breakthrough For Peace In The Israeli-palestinian Deadlock (A solução do Estado único: um passo para a paz no impasse israelo-palestiniano) – University of Michigan Press e Manchester University Press, 2005. O seu contacto é: tilley@hws.edu .
Virginia Tilley

http://resistir.info/

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