Entrevista a Tariq Ali
O paquistanês radicado na Grã-Bretanha, Tariq Ali, falou sobre conflitos no Oriente Médio, sobre Lula e sobre literatura durante a Festa Literária Internacional de Parati.
Romancista, biógrafo, historiador, dramaturgo, activista político, cineasta e editor de longa data da publicação académica New Left Review, o paquistanês Tariq Ali, de 63 anos, é considerado um dos principais intelectuais de esquerda da Grã-Bretanha. Como ensaísta, escreveu Confronto de fundamentalismos (2002) e Bush na Babilónia (2003). O seu trabalho como romancista inclui o “Quinteto Islâmico”, ainda inacabado, que compreende As sombras da romãzeira (1992), O livro de Saladino (1998), A mulher de pedra (2000) e Um sultão em Palermo (2006) [em Portugal, O sultão e o cartógrafo]. O seu livro mais recente é Rough music (2006), uma denúncia enérgica contra o primeiro‑ministro britânico Tony Blair. A nova face do império e Um sultão em Palermo foram lançados no Brasil, durante a Festa Literária Internacional de Parati, entre 9 e 13 de Agosto, ocasião em que conversámos com o autor.
– Há 35 ou 40 anos, quando seu amigo John Lennon telefonou para saber sua opinião sobre sua música Imagine, que falava de um mundo sem guerra e sem fronteiras, já havia o conflito árabe-israelense, já havia os EUA querendo fincar as suas garras imperialistas na Ásia... O que mudou de lá para cá?
Para não alongar a história, a grande diferença é que os EUA são a única potência imperial do mundo, situação bem diferente da bipolaridade dos anos 60. Quando os EUA intervieram no Vietname, nenhum país europeu mandou tropas. No entanto, quando intervieram no Iraque, muitas nações europeias mandaram tropas. Isso gera uma ideologia global dominante que está cada vez mais difícil de desafiar. Esta situação, que é conhecida como o consenso de Washington, tem dois aspectos essenciais: o primeiro é que as únicas políticas económicas permitidas são as neoliberais. O segundo é a constatação de que as soberanias nacionais não importam mais; se for necessário, na visão deles, os EUA passarão por cima das soberanias nacionais em nome da assim chamada intervenção humanitária. O efeito disso é tirar do mundo as bases da democracia, isolando e afastando muitas pessoas das instituições democráticas.
– O que isso gera no cenário internacional?
Um problema à escala global. Os países estão assustados, mas não se levantam contra o poder dominante, pois os países que denunciam o imperialismo são taxados de terroristas, de populistas ou o que quer que seja. Um outro ponto é que este sistema faz com que países se tornem muito dependentes das instituições globais e muito sujeitos ao que é mostrado pelos meios de comunicação de massa, como a televisão. Esta é uma outra grande diferença em relação aos anos 70, retomando a sua pergunta. Nos 70, um jornalista americano experiente filmou os fuzileiros navais americanos a queimar uma casa, o que foi mostrado na mesma noite na televisão nacional americana. Se compararmos este exemplo com a cobertura que está a ser dada ao que ocorre no Líbano hoje em dia, nenhuma das emissoras de TV americanas mostrou casos de morte de civis libaneses. Quando há uma situação em que as notícias são deliberadamente escondidas do público americano, não podemos esperar que eles saibam o que está a acontecer.
– Não há resistência, então?
É um mundo dominado, e há pequenos bolsões de resistência de pessoas a tentar lutar contra isso.
– O senhor falou em bolsões de resistência. Sabemos que o senhor participa directamente de um deles: o Fórum Social Mundial. Como este movimento é visto pelo mundo ou, ao menos, nos lugares aonde o senhor tem ido? Ele realmente é representativo à escala global ou existe uma ilusão de grandeza dos brasileiros, pelo facto de o Fórum ter nascido aqui e ter tido várias edições que reuniram centenas de milhares de manifestantes em Porto Alegre?
O Fórum Social Mundial começou no Brasil e isso foi muito importante. Mas, agora, acontece em todos os continentes. No começo do ano, houve um Fórum Social Mundial no Paquistão, na África e na Venezuela, nos três continentes simultaneamente. Na verdade, o Fórum Social Mundial está a crescer. Tenho que ser muito sincero sobre isso. Participei de muitos destes fóruns que, de facto, estão a crescer, mas precisamos saber quais são os seus limites. Porque, no momento, está a virar uma festa. E o mundo precisa de mais do que uma festa! E não só de pessoas a gritar que “outro mundo é possível”. Já estamos a gritar isso há muitos anos. Está a ficar monótono. O importante é entender como e onde estão a acontecer mudanças e o que podemos aprender com isso.
– E onde as mudanças estão a acontecer?
Os principais movimentos políticos que estão a ter grande impacto mundial concentram-se na América Latina. Podem ser observados em toda a América Latina. Enquanto estamos aqui reunidos, a Cidade do México é ocupada por mais de um milhão de pessoas, pois o principal partido de esquerda mexicano acredita que a eleição foi fraudada. Isso gerou uma grande ocupação, cuja demanda é muito simples de ser atendida: recontem cada um dos votos. Como alguém pode opor‑se a isto? É uma exigência legítima da democracia. Tivemos eleições na Bolívia, no Peru... independentemente de quem tenha ganhado em cada lugar, observamos a mesma polarização.
– O senhor aponta alguma liderança neste sentido?
Sei que não é uma coisa muito popular de se dizer no Brasil, mas, à escala global, o principal político claramente posicionado à esquerda, é o Hugo Chávez. O discurso que ele fez na ONU, até mesmo os jornais americanos tiveram que admitir, foi o mais interessante de todos [1]. Quando a Aljazeera entrevista o Chávez, ela obtém audiências maiores do que em entrevistas com qualquer outro líder internacional. É uma situação muito interessante na América Latina e uma tragédia que o Brasil não possa fazer parte dela, pois, cada vez mais, as alianças regionais tornam-se cada vez mais importantes para desviar o eixo político de dominação. Até o Kirchner na Argentina está a mostrar‑se mais corajoso do que o Lula. Ele é muito inteligente. Quando Bush disse que ele deveria pagar todas as dívidas que o seu país fizera com o Banco Mundial, ele respondeu que não era possível. Mas ele disse: ”vamos dar‑te alguma coisa, por cada dólar que devemos, vamos pagar um centavo”. Foi uma operação inteligente, pois ele não disse simplesmente que não pagaria nada, e o governo norte‑americano, no final das contas, teve que aceitar. Isso mostra que não é o caso de que nada pode ser feito, como é corrente na visão política dominante no Brasil. As ligações entre dinheiro e poder podem ser rompidas por organizações políticas que tenham coragem e visão. Isso remete‑me novamente para a pergunta sobre a música Imagine, que é uma canção utópica que ele queria que se tornasse verdadeira. Há versos muito interessantes nela, um deles fala de «um mundo sem religião», que é muito interessante de se observar se aplicado ao Médio Oriente e aos EUA.
– O que o senhor tem achado das posições externas tomadas pelo Brasil?
Não acompanho tanto a política brasileira quanto acompanho a americana, mas quando o Brasil mandou tropas para o Haiti, um general cometeu suicídio e outro demitiu‑se. Por que fizeram isso? Porque estavam a pedir‑lhes que matassem pessoas pobres, e os generais tiveram mais carácter e decência por se recusarem do que os políticos que ordenaram ou consentiram a matança.
– Estamos em ano de eleição no Brasil, o senhor tem acompanhado a política interna brasileira?
No mundo todo, à escala global, as pessoas acabam por se perguntar, se há tão pouca diferença entre centro‑esquerda e centro-direita, por que me darei ao trabalho de votar? No Brasil, isso está muito claro. Eu estive no Brasil, numa Feira Literária em Ribeirão Preto, exactamente na época das últimas eleições [2002] e alguém perguntou “se você fosse brasileiro, em quem votaria?”. Respondi que votaria no Lula, mas tinha que confessar uma preocupação: Lula seria eleito pela maioria dos votos do Brasil, mas tinha dúvidas se ele serviria os interesses destas pessoas que votaram nele ou os interesses de quem não votou nele, como os bancos internacionais, o FMI, os EUA... Na época, eu disse “espero que ele sirva os interesses do povo, mas podem acontecer muitas coisas, pois há uma semelhança com a Grã-Bretanha, fazendo um paralelo com Fernando Henrique Cardoso e Margareth Thatcher que, quando sucedidos no poder pelo centro-esquerda, viu-se a continuidade do que se vinha fazendo; aqui Lula continua a lógica de Fernando Henrique Cardoso e, lá, Tony Blair deu continuidade ao governo Thatcher. São diferentes países, circunstâncias diferentes, mas sucessões similares.
– Nos EUA, o apoio ao George Bush caiu sensivelmente. Mesmo as pessoas que não são politicamente sofisticadas parecem ter‑se consciencializado neste sentido. Como o senhor encara isso?
A principal razão para isso é o desastre da intervenção, da invasão, do Iraque. O governo garantiu que entraria, tiraria um homem mau do poder, colocaria outro bom no seu lugar e depois sairia. Eles não previram que haveria tanta resistência no Iraque, o que causou um número cada vez maior de baixas americanas, incluindo pessoas mortas e muitos milhares de soldados americanos gravemente feridos. Esta informação está a disseminar‑se, infiltrando-se por baixo das notícias, pois, em todo o pequeno lugarejo americano, há alguém que morreu ou foi gravemente ferido. Além disso, o público sabe, agora, que o governo lhe mentiu. Mentiram sobre as armas de destruição em massa, o que já foi publicamente admitido. Isso teve um forte impacto na popularidade de Bush e de Blair também. A aprovação do Blair na Grã-Bretanha agora está muito baixa. Muitas pessoas dizem abertamente que querem que ele vá embora.
– Se Bush não fosse o presidente durante o atentado de 11 de Setembro, o mundo seria hoje diferente, seria mais pacífico?
É muito perigoso colocar toda a responsabilidade numa única pessoa, por mais tentador que seja. Especialmente quando o homem em questão não é tão inteligente. No caso dos EUA, discutimos não um só homem, mas um sistema. Eles têm uma história imperial que já remonta há mais de duzentos anos. Eles tiveram presidentes muito diferentes, alguns bons, outros ruins, uns inteligentes, outros burros, mas todos sempre defenderam os interesses do Império Americano. Clinton começou o processo de conduzir os EUA para a guerra. A secretária de estado americana Madeleine Albright defendeu as sanções que mataram mais de um milhão de crianças. O perigo está em tornar o Bush um alvo fácil e descarregar toda a culpa nele. Quando os EUA não estão no controle absoluto da situação, algo muito interessante acontece, olhem, por exemplo, Reagan e George Bush Jr.: as pessoas que dominaram a política internacional no governo de Reagan são as mesmas agora dominando a política externa do governo do Bush Jr.
– Como o senhor vê o futuro do fundamentalismo islâmico?
É preciso perguntar isso ao governo da Casa Branca. O fundamentalismo crescerá na medida em que crescerem os ataques ao mundo islâmico. Se atacarem o Irão, o grupo que mais crescerá lá será o fundamentalista, não tenho dúvidas.
– Como o senhor encara as acusações da revista Veja que o qualificou como um paquistanês perfeitamente idiota?
Eu não li, mas soube que falam do meu posicionamento em relação ao Irão e a todo o Médio Oriente... Esta é uma crítica que também recebo em larga escala nos EUA e que me é muito familiar. São críticas feitas por jornalistas que nunca falaram comigo, mas que têm uma agenda muito bem definida. Quem lê os meus livros de não‑ficção tem uma coisa muito clara a meu respeito: eu sou ateu. Não acredito em religião ou em políticas religiosas. Vivemos num mundo em que há grandes vácuos... quando me perguntam se estou feliz por haver resistência no Iraque, eu respondo que sim, pois se não houvesse, Bush e Blair teriam uma vitória muito triunfante. Quando Israel invade o Líbano, destrói a infra-estrutura e a vida social do país, mata milhares de civis... eu digo que estou muito feliz que haja uma resistência a este crime de guerra. A actual mídia global não se vê mais como um grupo independente de jornalistas e sim como um meio para defender a ordem estabelecida e a posição política da Veja eu conheço muito bem... é equivalente à da Time e à da NewsWeek, mas, na verdade, estas duas americanas são, ao menos, mais críticas do que a Veja. Tenho mais uma coisa a falar sobre isso: existe uma enorme gama de pessoas envolvidas com a ordem política global e dominante que querem eliminar a palavra resistência dos dicionários. Se olharmos para a história dos impérios europeus, percebemos que todos aqueles que resistiram a eles foram chamados de terroristas: os franceses chamavam os argelinos de terroristas, os portugueses fizeram o mesmo com Moçambique, Angola e Guiné Bissau, os americanos chamavam os vietnamitas de terroristas comunistas, os britânicos chamavam os quenianos de terroristas, o regime do apartheid na África do Sul chamava Nelson Mandela de terrorista, os israelenses chamam os palestinos removidos da terra de terroristas, então... Pode-se dar o nome que quiser que isso não mudará os fatos.
– Qual a diferença significativa entre os seus textos jornalísticos e os literários? O senhor tem um projecto na ficção?
Quando é ficção, precisamos criar pela imaginação, por todas as vias, a civilização que queremos mostrar. Por exemplo, quando dizemos aos italianos que a Sicília foi, por muitos anos, uma ilha árabe, eles dizem que não sabiam disso! Durante as ditaduras políticas na Espanha e em Portugal, praticamente nada se ensinava sobre a história daqueles países. Durante a época do Franco, quinhentos anos de História árabe na Península Ibérica foram representados oficialmente por um único parágrafo nos livros didácticos. O regime de Salazar em Portugal era igualmente ruim. Ambos negaram um período importante para a cultura europeia, no qual, tecnicamente, o cristianismo estava no poder, mas a cultura árabe era dominante em muitas partes. A língua dominante, escrita e falada, era a árabe; as escolas médicas eram árabes... eles simplesmente não podiam viver sem esta cultura árabe. O meu projecto ficcional é a reconstrução desta história perdida. O trabalho de não‑ficção é mais voltado para o período actual: o choque dos fundamentalismos, Bush na Babilónia, etc.
– Por que encontramos tão pouco da literatura árabe nas prateleiras das livrarias? Ela não está a ser produzida ou não chega até nós?
Diversos países árabes têm escritores admiráveis, mas uma parcela muito pequena é traduzida. Só aparecem nas luzes dos holofotes da mídia e do mercado editorial quando ganham o Nobel, como foi o caso do egípcio Nagib Mahfuz. Mas o facto é que as grandes corporações que dominam a mídia e as editoras é que decidem o que será ou não será traduzido e lançado no mercado.
[1] Hugo Chávez Frias, «Propomos que a sede das Nações Unidas saia de um país que não é respeitoso com as resoluções da Assembleia». Discurso do presidente venezuelano na Sexagésima Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 15/09/2005.
Eduardo Carvalho
http://www.infoalternativa.org/cultura/cultura023.htm
O paquistanês radicado na Grã-Bretanha, Tariq Ali, falou sobre conflitos no Oriente Médio, sobre Lula e sobre literatura durante a Festa Literária Internacional de Parati.
Romancista, biógrafo, historiador, dramaturgo, activista político, cineasta e editor de longa data da publicação académica New Left Review, o paquistanês Tariq Ali, de 63 anos, é considerado um dos principais intelectuais de esquerda da Grã-Bretanha. Como ensaísta, escreveu Confronto de fundamentalismos (2002) e Bush na Babilónia (2003). O seu trabalho como romancista inclui o “Quinteto Islâmico”, ainda inacabado, que compreende As sombras da romãzeira (1992), O livro de Saladino (1998), A mulher de pedra (2000) e Um sultão em Palermo (2006) [em Portugal, O sultão e o cartógrafo]. O seu livro mais recente é Rough music (2006), uma denúncia enérgica contra o primeiro‑ministro britânico Tony Blair. A nova face do império e Um sultão em Palermo foram lançados no Brasil, durante a Festa Literária Internacional de Parati, entre 9 e 13 de Agosto, ocasião em que conversámos com o autor.
– Há 35 ou 40 anos, quando seu amigo John Lennon telefonou para saber sua opinião sobre sua música Imagine, que falava de um mundo sem guerra e sem fronteiras, já havia o conflito árabe-israelense, já havia os EUA querendo fincar as suas garras imperialistas na Ásia... O que mudou de lá para cá?
Para não alongar a história, a grande diferença é que os EUA são a única potência imperial do mundo, situação bem diferente da bipolaridade dos anos 60. Quando os EUA intervieram no Vietname, nenhum país europeu mandou tropas. No entanto, quando intervieram no Iraque, muitas nações europeias mandaram tropas. Isso gera uma ideologia global dominante que está cada vez mais difícil de desafiar. Esta situação, que é conhecida como o consenso de Washington, tem dois aspectos essenciais: o primeiro é que as únicas políticas económicas permitidas são as neoliberais. O segundo é a constatação de que as soberanias nacionais não importam mais; se for necessário, na visão deles, os EUA passarão por cima das soberanias nacionais em nome da assim chamada intervenção humanitária. O efeito disso é tirar do mundo as bases da democracia, isolando e afastando muitas pessoas das instituições democráticas.
– O que isso gera no cenário internacional?
Um problema à escala global. Os países estão assustados, mas não se levantam contra o poder dominante, pois os países que denunciam o imperialismo são taxados de terroristas, de populistas ou o que quer que seja. Um outro ponto é que este sistema faz com que países se tornem muito dependentes das instituições globais e muito sujeitos ao que é mostrado pelos meios de comunicação de massa, como a televisão. Esta é uma outra grande diferença em relação aos anos 70, retomando a sua pergunta. Nos 70, um jornalista americano experiente filmou os fuzileiros navais americanos a queimar uma casa, o que foi mostrado na mesma noite na televisão nacional americana. Se compararmos este exemplo com a cobertura que está a ser dada ao que ocorre no Líbano hoje em dia, nenhuma das emissoras de TV americanas mostrou casos de morte de civis libaneses. Quando há uma situação em que as notícias são deliberadamente escondidas do público americano, não podemos esperar que eles saibam o que está a acontecer.
– Não há resistência, então?
É um mundo dominado, e há pequenos bolsões de resistência de pessoas a tentar lutar contra isso.
– O senhor falou em bolsões de resistência. Sabemos que o senhor participa directamente de um deles: o Fórum Social Mundial. Como este movimento é visto pelo mundo ou, ao menos, nos lugares aonde o senhor tem ido? Ele realmente é representativo à escala global ou existe uma ilusão de grandeza dos brasileiros, pelo facto de o Fórum ter nascido aqui e ter tido várias edições que reuniram centenas de milhares de manifestantes em Porto Alegre?
O Fórum Social Mundial começou no Brasil e isso foi muito importante. Mas, agora, acontece em todos os continentes. No começo do ano, houve um Fórum Social Mundial no Paquistão, na África e na Venezuela, nos três continentes simultaneamente. Na verdade, o Fórum Social Mundial está a crescer. Tenho que ser muito sincero sobre isso. Participei de muitos destes fóruns que, de facto, estão a crescer, mas precisamos saber quais são os seus limites. Porque, no momento, está a virar uma festa. E o mundo precisa de mais do que uma festa! E não só de pessoas a gritar que “outro mundo é possível”. Já estamos a gritar isso há muitos anos. Está a ficar monótono. O importante é entender como e onde estão a acontecer mudanças e o que podemos aprender com isso.
– E onde as mudanças estão a acontecer?
Os principais movimentos políticos que estão a ter grande impacto mundial concentram-se na América Latina. Podem ser observados em toda a América Latina. Enquanto estamos aqui reunidos, a Cidade do México é ocupada por mais de um milhão de pessoas, pois o principal partido de esquerda mexicano acredita que a eleição foi fraudada. Isso gerou uma grande ocupação, cuja demanda é muito simples de ser atendida: recontem cada um dos votos. Como alguém pode opor‑se a isto? É uma exigência legítima da democracia. Tivemos eleições na Bolívia, no Peru... independentemente de quem tenha ganhado em cada lugar, observamos a mesma polarização.
– O senhor aponta alguma liderança neste sentido?
Sei que não é uma coisa muito popular de se dizer no Brasil, mas, à escala global, o principal político claramente posicionado à esquerda, é o Hugo Chávez. O discurso que ele fez na ONU, até mesmo os jornais americanos tiveram que admitir, foi o mais interessante de todos [1]. Quando a Aljazeera entrevista o Chávez, ela obtém audiências maiores do que em entrevistas com qualquer outro líder internacional. É uma situação muito interessante na América Latina e uma tragédia que o Brasil não possa fazer parte dela, pois, cada vez mais, as alianças regionais tornam-se cada vez mais importantes para desviar o eixo político de dominação. Até o Kirchner na Argentina está a mostrar‑se mais corajoso do que o Lula. Ele é muito inteligente. Quando Bush disse que ele deveria pagar todas as dívidas que o seu país fizera com o Banco Mundial, ele respondeu que não era possível. Mas ele disse: ”vamos dar‑te alguma coisa, por cada dólar que devemos, vamos pagar um centavo”. Foi uma operação inteligente, pois ele não disse simplesmente que não pagaria nada, e o governo norte‑americano, no final das contas, teve que aceitar. Isso mostra que não é o caso de que nada pode ser feito, como é corrente na visão política dominante no Brasil. As ligações entre dinheiro e poder podem ser rompidas por organizações políticas que tenham coragem e visão. Isso remete‑me novamente para a pergunta sobre a música Imagine, que é uma canção utópica que ele queria que se tornasse verdadeira. Há versos muito interessantes nela, um deles fala de «um mundo sem religião», que é muito interessante de se observar se aplicado ao Médio Oriente e aos EUA.
– O que o senhor tem achado das posições externas tomadas pelo Brasil?
Não acompanho tanto a política brasileira quanto acompanho a americana, mas quando o Brasil mandou tropas para o Haiti, um general cometeu suicídio e outro demitiu‑se. Por que fizeram isso? Porque estavam a pedir‑lhes que matassem pessoas pobres, e os generais tiveram mais carácter e decência por se recusarem do que os políticos que ordenaram ou consentiram a matança.
– Estamos em ano de eleição no Brasil, o senhor tem acompanhado a política interna brasileira?
No mundo todo, à escala global, as pessoas acabam por se perguntar, se há tão pouca diferença entre centro‑esquerda e centro-direita, por que me darei ao trabalho de votar? No Brasil, isso está muito claro. Eu estive no Brasil, numa Feira Literária em Ribeirão Preto, exactamente na época das últimas eleições [2002] e alguém perguntou “se você fosse brasileiro, em quem votaria?”. Respondi que votaria no Lula, mas tinha que confessar uma preocupação: Lula seria eleito pela maioria dos votos do Brasil, mas tinha dúvidas se ele serviria os interesses destas pessoas que votaram nele ou os interesses de quem não votou nele, como os bancos internacionais, o FMI, os EUA... Na época, eu disse “espero que ele sirva os interesses do povo, mas podem acontecer muitas coisas, pois há uma semelhança com a Grã-Bretanha, fazendo um paralelo com Fernando Henrique Cardoso e Margareth Thatcher que, quando sucedidos no poder pelo centro-esquerda, viu-se a continuidade do que se vinha fazendo; aqui Lula continua a lógica de Fernando Henrique Cardoso e, lá, Tony Blair deu continuidade ao governo Thatcher. São diferentes países, circunstâncias diferentes, mas sucessões similares.
– Nos EUA, o apoio ao George Bush caiu sensivelmente. Mesmo as pessoas que não são politicamente sofisticadas parecem ter‑se consciencializado neste sentido. Como o senhor encara isso?
A principal razão para isso é o desastre da intervenção, da invasão, do Iraque. O governo garantiu que entraria, tiraria um homem mau do poder, colocaria outro bom no seu lugar e depois sairia. Eles não previram que haveria tanta resistência no Iraque, o que causou um número cada vez maior de baixas americanas, incluindo pessoas mortas e muitos milhares de soldados americanos gravemente feridos. Esta informação está a disseminar‑se, infiltrando-se por baixo das notícias, pois, em todo o pequeno lugarejo americano, há alguém que morreu ou foi gravemente ferido. Além disso, o público sabe, agora, que o governo lhe mentiu. Mentiram sobre as armas de destruição em massa, o que já foi publicamente admitido. Isso teve um forte impacto na popularidade de Bush e de Blair também. A aprovação do Blair na Grã-Bretanha agora está muito baixa. Muitas pessoas dizem abertamente que querem que ele vá embora.
– Se Bush não fosse o presidente durante o atentado de 11 de Setembro, o mundo seria hoje diferente, seria mais pacífico?
É muito perigoso colocar toda a responsabilidade numa única pessoa, por mais tentador que seja. Especialmente quando o homem em questão não é tão inteligente. No caso dos EUA, discutimos não um só homem, mas um sistema. Eles têm uma história imperial que já remonta há mais de duzentos anos. Eles tiveram presidentes muito diferentes, alguns bons, outros ruins, uns inteligentes, outros burros, mas todos sempre defenderam os interesses do Império Americano. Clinton começou o processo de conduzir os EUA para a guerra. A secretária de estado americana Madeleine Albright defendeu as sanções que mataram mais de um milhão de crianças. O perigo está em tornar o Bush um alvo fácil e descarregar toda a culpa nele. Quando os EUA não estão no controle absoluto da situação, algo muito interessante acontece, olhem, por exemplo, Reagan e George Bush Jr.: as pessoas que dominaram a política internacional no governo de Reagan são as mesmas agora dominando a política externa do governo do Bush Jr.
– Como o senhor vê o futuro do fundamentalismo islâmico?
É preciso perguntar isso ao governo da Casa Branca. O fundamentalismo crescerá na medida em que crescerem os ataques ao mundo islâmico. Se atacarem o Irão, o grupo que mais crescerá lá será o fundamentalista, não tenho dúvidas.
– Como o senhor encara as acusações da revista Veja que o qualificou como um paquistanês perfeitamente idiota?
Eu não li, mas soube que falam do meu posicionamento em relação ao Irão e a todo o Médio Oriente... Esta é uma crítica que também recebo em larga escala nos EUA e que me é muito familiar. São críticas feitas por jornalistas que nunca falaram comigo, mas que têm uma agenda muito bem definida. Quem lê os meus livros de não‑ficção tem uma coisa muito clara a meu respeito: eu sou ateu. Não acredito em religião ou em políticas religiosas. Vivemos num mundo em que há grandes vácuos... quando me perguntam se estou feliz por haver resistência no Iraque, eu respondo que sim, pois se não houvesse, Bush e Blair teriam uma vitória muito triunfante. Quando Israel invade o Líbano, destrói a infra-estrutura e a vida social do país, mata milhares de civis... eu digo que estou muito feliz que haja uma resistência a este crime de guerra. A actual mídia global não se vê mais como um grupo independente de jornalistas e sim como um meio para defender a ordem estabelecida e a posição política da Veja eu conheço muito bem... é equivalente à da Time e à da NewsWeek, mas, na verdade, estas duas americanas são, ao menos, mais críticas do que a Veja. Tenho mais uma coisa a falar sobre isso: existe uma enorme gama de pessoas envolvidas com a ordem política global e dominante que querem eliminar a palavra resistência dos dicionários. Se olharmos para a história dos impérios europeus, percebemos que todos aqueles que resistiram a eles foram chamados de terroristas: os franceses chamavam os argelinos de terroristas, os portugueses fizeram o mesmo com Moçambique, Angola e Guiné Bissau, os americanos chamavam os vietnamitas de terroristas comunistas, os britânicos chamavam os quenianos de terroristas, o regime do apartheid na África do Sul chamava Nelson Mandela de terrorista, os israelenses chamam os palestinos removidos da terra de terroristas, então... Pode-se dar o nome que quiser que isso não mudará os fatos.
– Qual a diferença significativa entre os seus textos jornalísticos e os literários? O senhor tem um projecto na ficção?
Quando é ficção, precisamos criar pela imaginação, por todas as vias, a civilização que queremos mostrar. Por exemplo, quando dizemos aos italianos que a Sicília foi, por muitos anos, uma ilha árabe, eles dizem que não sabiam disso! Durante as ditaduras políticas na Espanha e em Portugal, praticamente nada se ensinava sobre a história daqueles países. Durante a época do Franco, quinhentos anos de História árabe na Península Ibérica foram representados oficialmente por um único parágrafo nos livros didácticos. O regime de Salazar em Portugal era igualmente ruim. Ambos negaram um período importante para a cultura europeia, no qual, tecnicamente, o cristianismo estava no poder, mas a cultura árabe era dominante em muitas partes. A língua dominante, escrita e falada, era a árabe; as escolas médicas eram árabes... eles simplesmente não podiam viver sem esta cultura árabe. O meu projecto ficcional é a reconstrução desta história perdida. O trabalho de não‑ficção é mais voltado para o período actual: o choque dos fundamentalismos, Bush na Babilónia, etc.
– Por que encontramos tão pouco da literatura árabe nas prateleiras das livrarias? Ela não está a ser produzida ou não chega até nós?
Diversos países árabes têm escritores admiráveis, mas uma parcela muito pequena é traduzida. Só aparecem nas luzes dos holofotes da mídia e do mercado editorial quando ganham o Nobel, como foi o caso do egípcio Nagib Mahfuz. Mas o facto é que as grandes corporações que dominam a mídia e as editoras é que decidem o que será ou não será traduzido e lançado no mercado.
[1] Hugo Chávez Frias, «Propomos que a sede das Nações Unidas saia de um país que não é respeitoso com as resoluções da Assembleia». Discurso do presidente venezuelano na Sexagésima Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, 15/09/2005.
Eduardo Carvalho
http://www.infoalternativa.org/cultura/cultura023.htm
Sem comentários:
Enviar um comentário