A Vida Cultural Portuguesa
No primeiro terço do século XX, a vida cultural portuguesa exibia sobretudo expressão literária e centrava-se fundamentalmente em torno de algumas revistas. Essa cultura literária seguia três correntes principais – uma tradicionalista, outra cosmopolita e outra, menos visível mas mais perdurável, modernista. A vertente da cultura científica não assumia comparável visibilidade, excepto no caso de alguns cientistas de maior projecção e daqueles que também eram escritores. De entre as disciplinas científicas destacavam-se a Medicina e a Matemática por serem as que registaram maiores progressos e por terem tido mais insignes cultores. Deste grupo, alguns foram também ensaístas e publicistas, incluindo numerosos animadores da Universidade Popular Portuguesa . Bento Jesus Caraça foi um deles. Mas Caraça não foi “apenas” mais um desses dignos publicistas, ele foi um dos seus fundadores e presidiu por largos anos à sua direcção, tendo muito contribuindo para o dinamismo e prestígio dessa instituição. A Universidade Popular Portuguesa foi fundada em 1919 (sendo encerrada em 1944). Universidades populares e universidades livres haviam surgido pouco tempo após a implantação do regime republicano, mas já na sequência da tradição das academias de estudos livres e da associação A Voz do Operário, constituídas no último quartel do século XIX por iniciativa de trabalhadores. Eram esses projectos inspirados por ideais socialistas, dirigidos para a elevação do nível cultural e para a maior intervenção social da classe trabalhadora. Mas a Universidade Popular Portuguesa foi um projecto que beneficiou do entusiasmo da elite cultural, consciente do elevado índice de analfabetismo e preocupada com o elevado isolamento cultural das massas proletárias (sobretudo urbanas), indo ao encontro das aspirações dos trabalhadores e contando com a sua pronta adesão. A participação activa de Caraça nesta Universidade surge como um sinal claro de opção de classe que não viria a ser atraiçoada e ponto de partida para um percurso de intervenção cultural e cívica exemplar. A Vida Política Portuguesa O percurso de intervenção cultural e cívica de Bento de Jesus Caraça (1901-1948) começa a evidenciar-se em 1929, ano em que assume a cátedra de Matemáticas Superiores no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras da Universidade Técnica de Lisboa bem como a presidência da direcção da Universidade Popular Portuguesa . Recordemos alguns acontecimentos da época para situarmos as preocupações que potencialmente afligiam Caraça e os seus contemporâneos. Em 28 de Maio de 1926, um golpe militar havia posto fim ao regime parlamentar da primeira República. A 1 de Junho a Confederação Geral dos Trabalhadores reagira, lançando uma greve geral que conseguiu resistir durante alguns dias. Mas em 1927 a CGT tinha sido dissolvida e o seu órgão, o jornal A Batalha, encerrado. Após 1929, o movimento sindical reorganizara-se em torno da Comissão Inter-Sindical e em 1930 lançara greves e manifestações operárias. O ano de 1933 é o ano em que é plebiscitada uma nova Constituição e é promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional, dois dos pilares da ditadura do Estado Novo. Na sequência dessa promulgação, são encerrados os sindicatos “livres”, criados os sindicatos “nacionais”, os grémios e as corporações oficiais; alguns sindicatos livres, porém, reagem à dissolução e mantêm actividade semi-clandestina, até 1936. Em 1934, a 18 de Janeiro, foi lançado um movimento grevista insurreccional que foi derrotado. Os partidos políticos iam sendo reprimidos, em 1929 o PCP reorganizou-se em função da passagem à acção clandestina, e em 1934 o partido oficial único, a União Nacional, viu todos os seus candidatos eleitos para a Assembleia Nacional. Em 1935, por decreto-lei publicado a 13 de Maio, determinar-se-ia serem «aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos, em caso contrário», os funcionários ou empregados, civis ou militares, que tivessem revelado ou revelassem «espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política» ou não dessem garantias «de cooperar na realização dos fins superiores do Estado». Logo no dia seguinte, uma resolução do Conselho de Ministros demitiu, de uma só vez, 30 altos funcionários do estado, oficiais superiores das forças armadas, professores universitários (Sílvio Lima, Aurélio Quintanilha, Rodrigues Lapa, Álvaro Lapa, Abel Salazar e José Norton de Matos), professores do ensino secundário, professores primários e quadros técnicos. Em 1936 foi “aberto” o campo de concentração do Tarrafal em Cabo Verde. Estava instalada a ditadura do Estado Novo em Portugal. No resto do mundo, recuperava-se da grande recessão e iniciava-se a encenação da Guerra Civil em Espanha e da Segunda Guerra Mundial. Bento de Jesus Caraça na Década de 30 É neste quadro complexo e por vezes sinistro que vamos encontrar Bento de Jesus Caraça no seu lúcido e aparentemente sereno apostolado cultural e cívico. Para ele, a década de 30 (e os primeiros anos da década de 40) foi um período de intensa actividade universitária, cívica e cultural no sentido mais lato do termo, actividade de estudo e reflexão pessoal por um lado, igualmente de comunicação e socialização, por outro. Dedica-se à docência no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras; profere conferências na Universidade Popular Portuguesa e noutros âmbitos; colabora em jornais de combate (como O Diabo, O Sol Nascente, Liberdade e O Globo ) e em revistas de doutrinação ( Seara Nova e Vértice ); publica obras científico-pedagógicas para o ensino das Matemáticas; funda o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicada à Economia (1938); já em 1940 funda, com outros prestigiados Matemáticos, a Gazeta de Matemática e a Sociedade Portuguesa de Matemática. Em 1941 lançará um notável monumento da cultura portuguesa do século XX, a Biblioteca Cosmos, que surgiu como a materialização de um projecto de formação e divulgação que vinha prosseguindo desde uma década atrás através da Universidade Popular Portuguesa , a que a sua experiência pessoal e a rede de “cumplicidades” entretanto estabelecida entre a intelectualidade esclarecida conferiram imediato sucesso. Caraça, professor de Matemática, para ensinar Matemática aprofunda os seus fundamentos, pesquisa a sua história e a sua filosofia. O seu posicionamento e a sua actuação são a de um intelectual inteiramente a par das concepções contemporâneas mais esclarecidas, numa época em que os saberes estavam ainda conscientemente compartimentados. Pois que por esse tempo, e por muito tempo então ainda por chegar, os homens das ciências exactas, quando interessados nos antecedentes e fundamentos das respectivas disciplinas, limitavam-se a cultivar as biografias das suas figuras consagradas e a historiar ou construir a memória das suas agremiações científicas. Simultaneamente, os homens das ciências humanas e sociais, os historiadores em particular, debruçados sobre os factos políticos, diplomáticos e militares, excluíam ou subalternizavam no corpo da sua pesquisa o peso histórico dos progressos científicos ou técnicos. Excepção foram os Descobrimentos e a Expansão, movimentos historiados para glorificação da Pátria, mas cristalizados no seu tempo, obra de um punhado de heróis. É por esse tempo – 1926-1933 – que em Portugal os historiadores, prosseguindo as suas pesquisas alheados da influência das demais ciências sociais, ignoram ou rejeitam o modelo de 1929 – Annales d'histoire économique et sociale da dupla francesa de Estrasburgo Marc Bloch e Lucien Fèbvre, a verdadeira revolução historiográfica na Europa de então – preferindo as humanidades cristãs e conservadoras, avessos a mudanças de percurso ou a historiar as transformações, as revoluções, o progresso e a modernidade. “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo”, é o título de uma conferência proferida por Bento de Jesus Caraça na União Cultural Mocidade Livre em 25 de Maio de 1933. Esse é possivelmente o seu mais conhecido texto, cuja actualidade perdura. Em nota explicativa inserta na sua edição como caderno da Seara Nova, em 1939, referindo-se aos jovens promotores dessa conferência e à ocasião em que ela fora proferida, o autor afirma: «....O futuro imediato não correspondeu às aspirações e impaciências desses espíritos juvenis e ardentes. O desenvolver da vida social europeia seguiu por caminhos que haviam de provocar a revisão de muitos optimismos fáceis e, em contrapartida, fazer abrir muitos olhos para realidades cruéis, em suma, proporcionar grandes lições. Tudo isto fez que se amortecessem alguns entusiasmos das primeiras horas. Que importa? É essencial que tenham existido! Mas foram mais algumas ilusões perdidas, dir-se-á. Não. As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra uniforme sobre o pântano estéril da vida sem formas.....». No entanto, liquidados os partidos social-democratas, soçobradas as frentes populares, tinham-se consolidado o nazismo e outros regimes fascistas em vários países europeus; estava-se nas vésperas da conflagração da Segunda Guerra Mundial. “Galileo Galilei – Valor Científico e Valor Moral da Sua Obra”, é o título de uma outra conferência proferida por Bento de Jesus Caraça desta feita na “sua” Universidade Popular Portuguesa em 22 de Junho de 1933. Conferência que seria depois também editada em 1940. «Toda a obra de Galileo, bem como dos filósofos e cientistas dos séculos XVI e XVII, consiste numa revalorização do homem e no desfazer de um curioso paradoxo que a civilização cristã tinha originado. Não se percebe, com efeito, como possam conciliar-se as duas posições que o cristianismo adoptou, uma no campo da ética, outra no da ciência..... Qual a explicação desta contradição, deste paradoxo? Parece-me simples. É que era precisamente essa a doutrina que convinha, para manter em equilíbrio um estado social em que os bens da vida eram logradouro duma ínfima minoria. Para a maioria, esmagadora mas ignara, era preciso, para que ela não tomasse consciência da sua força, mantê-la no culto da sua própria imperfeição e indignidade.» Aqui Caraça interpreta a dinâmica da evolução histórica da sociedade, relevando a importância da superestrutura ideológica. Mais adiante, o conferencista enuncia a sua visão epistemológica, a sua interpretação da construção do conhecimento científico, aliás ilustrada pela descrição histórica que relata: «O que caracteriza o valor científico duma época é qualquer destas duas coisas: ou o nascimento de ideia criadoras, lançadas em seguida em todas as direcções, e cujo rasto luminoso se mede pelas sugestões fecundas que proporcionam, pela agitação que provocam e pelas reacções que suscitam; ou a confluência dessas ideias e seus cortejos que de diferentes pontos do horizonte surgem a congregar-se, a unir-se, preparando uma síntese vasta de todos os conhecimentos até aí adquiridos. Foi da primeira natureza aquele período de encanto que se estende do século VI ao IV AC na Grécia antiga; foi da segunda o constituído pelos séculos XVI e XVII da nossa era......E todo esse prodigioso trabalho veio a conduzir a uma nova confluência de algumas grandes correntes, neste primeiro quartel do século XX. É uma nova grande época da história da ciência, esta a que estamos assistindo, a terceira nos últimos trinta séculos; ....». O autor referia-se assim à teoria da relatividade de Einstein que apresentava enquadrada num processo histórico longo e como resultado de «uma prodigiosa síntese». E todavia estávamos em 1933, quando a recepção dessa teoria ainda suscitava muita incompreensão e pouca aceitação em Portugal. Várias outras personalidades históricas da ciência mereceram o interesse apaixonado de Caraça. Na Gazeta de Matemática , 1.º ano n.º 2, de Abril de 1940, num artigo intitulado “Abel e Galois” descreve e analisa a personalidade e a obra desses dois grandes matemáticos precoces mas de meteóricas vidas, do princípio do século XIX. E escreve: «Ambos sofrem, mas na maneira de sofrer são díspares – Abel, fraco, de “sensibilidade” infantil, retrai-se, procura um ponto de apoio afectivo e, como todos os fracos, uma vez que entra na luta é para cometer uma injustiça [contra Jacobi]; Galois, personalidade incomparavelmente mais forte, revolta-se, ataca, ataca sempre. Abel, incapaz de ultrapassar os limites do individual, nunca aborda de alto a posição do homem, não relaciona os seus males com os males gerais de que enferma a sociedade do seu tempo, restringe a sua ambição à tranquilidade dum lugar na Universidade; Galois, mais esclarecido, discerne as conexões íntimas do corpo social, vê nos defeitos orgânicos de base a razão profunda de que os casos individuais são reflexo e, logicamente, combate as causas, atira-se para a luta, bate-se na rua, com tal ardor, tal exaltação no dom de si mesmo que chega a dizer “se for preciso um cadáver para que o povo se revolte, dar-lhe-ei o meu!” .... e, pensando nas condições desastrosas da investigação científica, diz [Galois] “Aqui, como em todas as ciências, cada época tem de alguma maneira as suas razões do momento: há questões vivas que fixam ao mesmo tempo os espíritos mais esclarecidos..... Parece muitas vezes que as mesmas ideias aparecem a vários como uma revelação. Se se procura a causa, é fácil encontrá-la nas obras daqueles que nos precedem, nas quais essas ideias estão presentes sem os seus autores darem por isso. A ciência não tirou, até hoje, grande partido desta coincidência tantas vezes observada nas investigações dos sábios. Uma concorrência desgraçada, uma rivalidade degradante têm sido os seus principais frutos. Não é contudo difícil reconhecer neste facto a prova de que os sábios não são, mais que os outros homens, feitos para o isolamento, que eles pertencem também à sua época e que, cedo ou tarde, multiplicarão as suas forças pela associação. Então, quanto tempo será poupado para a Ciência!”...». A linha do texto de Caraça sugere que ele faz seu o discurso de Galois, cerca de um século atrás, que partilha com Galois a visão histórica e social da construção do conhecimento científico. Repare-se como tanto na conferência “Galileo Galilei” como no artigo “Abel e Galois” Caraça faz uma interpretação do progresso científico em que mostra estar a par e ter posição própria face às ideias em História e em Filosofia da Ciência, em exuberante efervescência na Europa do seu tempo. A Filosofia da primeira metade do século XX estava sendo impulsionada por correntes de aproximação aos fenómenos científicos em geral, e à Lógica e à Epistemologia em especial; o positivismo lógico ou neopositivismo tornara-se a doutrina dominante a partir dos anos 30; era, porém, quase ignorada em Portugal. Por outro lado, a partir da década de 30, sob inspiração marxista, emergia e consolidava-se a contextualização e a interpretação social e económica da História da Ciência. Mergulhado na complexa teia de correntes filosóficas e históricas da sua época, Caraça insere-se na corrente marxista da História, incorporando também novos elementos epistemológicos da Filosofia, aproximando-se por antecipação às ideias que, com Thomas Kuhn e Imre Lakatos, encontrariam explícita formulação e ampla aceitação na segunda metade do século XX. Não se tendo assumido como historiador ou filósofo da ciência, a sua curiosidade e rigor intelectual e a sua preocupação em fundamentar a sua acção pedagógica e cultural, teriam sido os estímulos que o levaram a percorrer esses territórios então praticamente ignorados entre nós. Segundo o testemunho privilegiado de J. Sebastião e Silva (in Diário de Lisboa, 25/Junho/1968) Caraça teria sido influenciado pela “Escola Italiana” de matemáticos humanistas, quer directamente quer através de seu mestre A. Mira Fernandes. Aliás, encontramos nos seus textos frequentes referências a Federigo Enriques (1871-1946), um dos matemáticos da referida Escola, matemático que foi também destacado filósofo da ciência, relacionado com os círculos neopositivistas. Caraça entendia a cultura una e universalista. A arte e a literatura teriam de estar também no centro do seu interesse e da sua intervenção. Assim as suas conferências “ A Arte e a Cultura Popular ” (1936), “ Rabindranath Tagore ” (1939) e “ Algumas Reflexões sobre a Arte ” - esta já em 1943, na abertura de uma série de sessões de divulgação musical a cargo da Fernando Lopes Graça - testemunham a intervenção de quem, não se assumindo crítico de arte ou estudioso da estética, era seduzido pelo sentimento do belo e estava fundamentalmente convicto da importância da arte como factor de aperfeiçoamento individual e de comunhão humana no plano social. Na perspectiva de Marx, segundo quem a «....cultura compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem», na conferência « As Universidades Populares e a Cultura » (1931) afirma «....Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais»; e em a ” A Cultura Integral do Indivíduo ” (1933) afirma «...A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico, significa, numa palavra, a conquista da liberdade....». A década de 40 A partir de 1942 a intervenção cultural e cívica de Bento de Jesus Caraça vai intensificar-se na sua vertente mais directamente política. O que não significa quebra de continuidade da sua acção pedagógica e científica. Por um lado assegura com dedicação, e o entusiasmo dos seus alunos, a cátedra no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras; em 1940 funda e dirige a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Gazeta de Matemática (de colaboração com António A. Monteiro, M. Zaluar Nunes, J. Silva Paulo, Ruy Luís Gomes, A. Mira Fernandes); participa em 1942-44-46 como delegado nos Congressos da Associação Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências; prossegue a sua acção como conferencista e publica obras para o ensino e a divulgação da Matemática; dirige a grande Biblioteca Cosmos (1941-48). Mas, por outro lado, empenha-se (ainda nos anos 30) no Socorro Vermelho Internacional, na Liga dos Amigos da URSS, no Comité Mundial Contra a Guerra e o Fascismo (e na sua secção a Liga Portuguesa contra a Guerra e o Fascismo), na Frente Popular Portuguesa, no Bloco Académico Antifascista (todas estruturas de resistência clandestinas). Já durante a Grande Guerra, é elemento central na constituição em 1943 do clandestino MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista) e, logo após o termo da Guerra em 1945, do MUD (Movimento de Unidade Democrática), de que assumiria a vice-presidência e em nome do qual subscreverá representações e manifestos. Era o inicio de um acidentado e recorrente movimento cívico unitário de massas que viria a impulsionar a revolução democrática e nacional que eclodiria em 1974-75. Mas como ficou dito, a actividade científico-pedagógica não esmoreceu. Os famosos “ Conceitos Fundamentais da Matemática ”, primeiro publicados pela Cosmos em 1941-42, seriam depois reeditados numerosas vezes até a actualidade. È uma obra de divulgação cultural de elevada qualidade, rigor e acessibilidade, inovadora até mesmo no plano internacional. O seu interesse é tríplice: nas vertentes matemática, histórica e filosófica. Sobre este livro António Sérgio protagonizou com Caraça, nas páginas da Vértice , uma polémica cuja raiz era a divergência de posições sobre a história e a filosofia da ciência. Sérgio assumia uma posição espiritualista, da procura da verdade pelo pensamento puro no plano das ideias e das formas; Caraça assumia uma posição materialista, próximo do neopositivismo, mas deste se afastando no recurso ao papel da história na compreensão do movimento do pensamento científico. A Biblioteca Cosmos, criada em 1941 sob a direcção de Bento de Jesus Caraça, é um marco da história da cultura em Portugal do século XX. Desde essa data até 1948, à data da morte do seu fundador, foram publicados 114 títulos, 145 volumes, com uma tiragem global de quase 800 mil exemplares. A Biblioteca Cosmos surge como a materialização natural de um projecto de formação e divulgação cultural para as massas populares que lenta e seguramente vinha sendo prosseguido desde há uma década atrás. Caraça propunha-se dar ao maior número de pessoas o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos uma visão geral do mundo físico e social, a sua vida e os seus problemas; divulgar sem abaixar nem deturpar, trazendo ao nível do homem comum o património cultural comum; para o que o autor deveria possuir domínio completo do assunto, inclinação filosófica e capacidade de exprimir com simplicidade sem perder rigor temático. As aspirações populares reprimidas, mas também persistentemente alimentadas, a justeza do objectivo fixado, a experiência e o prestígio pessoais de Caraça, a rede de colaborações entretanto estabelecida entre a intelectualidade sensibilizada para a concretização desse objectivo, todos foram factores que se conjugaram em termos de conferir imediato e extenso sucesso ao projecto. Entre os autores que colaboraram conta-se grande parte da elite intelectual portuguesa de então, alguns já consagrados e outros que o seriam mais tarde. Em 10 de Setembro de 1946 Bento de Jesus Caraça, professor catedrático da Universidade Técnica de Lisboa, recebe uma nota de culpa deduzida pelo instrutor de um processo disciplinar mandado instaurar por ter sido autor do manifesto «O MUD perante a admissão de Portugal na ONU», facto que constituía infracção prevista no “Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civis do Estado”. Idêntico procedimento é iniciado para com Mário de Azevedo Gomes, primeiro subscritor do referido manifesto e também professor da mesma Universidade. Na sua resposta ao articulado da acusação, datada de 18 de Setembro, Caraça escreve «.....o signatário usou de um direito que a Constituição Política da República Portuguesa lhe confere expressamente... Fê-lo ainda obedecendo a um imperativo moral, uma vez que considera como uma das condições necessárias para o exercício da profissão a que tem dedicado toda a sua vida a independência moral e o sentido da responsabilidade no uso dos seus direitos cívicos. E se o uso dessa independência e dessa responsabilidade lhe podem, como agora, acarretar perigos graves em face das reacções dos poderosos do momento, não é isso razão para deixar de as usar, cônscio de que é essa a maior e mais alta lição que pode dar na sua vida de professor e portanto a maneira mais nobre de realizar a sua missão de educador.» O Conselho Permanente da Acção Educativa emite, com data de 7 de Outubro de 1946, parecer que aos arguidos seja aplicada a pena de demissão, a qual na mesma data é decidida por despacho ministerial. Em “ Bento de Jesus Caraça – Militante Integral do ser Humano ”, Campo das Letras 1999, Alberto Vilaça documenta a adesão de Bento Caraça ao Partido Comunista Português, pelo menos desde 1931, então ligado através do efémero Núcleo de Trabalhadores Intelectuais. Essa ligação sofreu perturbações decorrentes do regime de clandestinidade, mas os seus testemunhos e sinais persistiram ao longo dos anos. Essa relação política ajuda a interpretar a natureza e a multiplicidade de iniciativas bem como as vicissitudes e os êxitos dos empreendimentos culturais e cívicos que protagonizou, explicando o frequente envolvimento de Caraça em estruturas clandestinas e esclarecendo a orientação e a coerência ideológica dos textos do autor. Mas só em Bento Jesus Caraça ele mesmo, na sua personalidade de viva inteligência, de generosa comunhão e de tenaz e persuasiva determinação, podemos encontrar a origem, o propósito e o percurso da sua vida. Não terá havido homem mais livre mesmo no mundo encarcerado como foi o do seu tempo. Tese, antítese e síntese de si mesmo ele se construiu. Pela sua palavra e pela sua acção os termos Cultura e Intelectual ganharam aos olhos do povo português o sentido de dignidade humana e de desejo de futuro e de compromisso moral e cívico entre concidadãos.
Rui Namorado Rosa
http://resistir.info/
No primeiro terço do século XX, a vida cultural portuguesa exibia sobretudo expressão literária e centrava-se fundamentalmente em torno de algumas revistas. Essa cultura literária seguia três correntes principais – uma tradicionalista, outra cosmopolita e outra, menos visível mas mais perdurável, modernista. A vertente da cultura científica não assumia comparável visibilidade, excepto no caso de alguns cientistas de maior projecção e daqueles que também eram escritores. De entre as disciplinas científicas destacavam-se a Medicina e a Matemática por serem as que registaram maiores progressos e por terem tido mais insignes cultores. Deste grupo, alguns foram também ensaístas e publicistas, incluindo numerosos animadores da Universidade Popular Portuguesa . Bento Jesus Caraça foi um deles. Mas Caraça não foi “apenas” mais um desses dignos publicistas, ele foi um dos seus fundadores e presidiu por largos anos à sua direcção, tendo muito contribuindo para o dinamismo e prestígio dessa instituição. A Universidade Popular Portuguesa foi fundada em 1919 (sendo encerrada em 1944). Universidades populares e universidades livres haviam surgido pouco tempo após a implantação do regime republicano, mas já na sequência da tradição das academias de estudos livres e da associação A Voz do Operário, constituídas no último quartel do século XIX por iniciativa de trabalhadores. Eram esses projectos inspirados por ideais socialistas, dirigidos para a elevação do nível cultural e para a maior intervenção social da classe trabalhadora. Mas a Universidade Popular Portuguesa foi um projecto que beneficiou do entusiasmo da elite cultural, consciente do elevado índice de analfabetismo e preocupada com o elevado isolamento cultural das massas proletárias (sobretudo urbanas), indo ao encontro das aspirações dos trabalhadores e contando com a sua pronta adesão. A participação activa de Caraça nesta Universidade surge como um sinal claro de opção de classe que não viria a ser atraiçoada e ponto de partida para um percurso de intervenção cultural e cívica exemplar. A Vida Política Portuguesa O percurso de intervenção cultural e cívica de Bento de Jesus Caraça (1901-1948) começa a evidenciar-se em 1929, ano em que assume a cátedra de Matemáticas Superiores no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras da Universidade Técnica de Lisboa bem como a presidência da direcção da Universidade Popular Portuguesa . Recordemos alguns acontecimentos da época para situarmos as preocupações que potencialmente afligiam Caraça e os seus contemporâneos. Em 28 de Maio de 1926, um golpe militar havia posto fim ao regime parlamentar da primeira República. A 1 de Junho a Confederação Geral dos Trabalhadores reagira, lançando uma greve geral que conseguiu resistir durante alguns dias. Mas em 1927 a CGT tinha sido dissolvida e o seu órgão, o jornal A Batalha, encerrado. Após 1929, o movimento sindical reorganizara-se em torno da Comissão Inter-Sindical e em 1930 lançara greves e manifestações operárias. O ano de 1933 é o ano em que é plebiscitada uma nova Constituição e é promulgado o Estatuto do Trabalho Nacional, dois dos pilares da ditadura do Estado Novo. Na sequência dessa promulgação, são encerrados os sindicatos “livres”, criados os sindicatos “nacionais”, os grémios e as corporações oficiais; alguns sindicatos livres, porém, reagem à dissolução e mantêm actividade semi-clandestina, até 1936. Em 1934, a 18 de Janeiro, foi lançado um movimento grevista insurreccional que foi derrotado. Os partidos políticos iam sendo reprimidos, em 1929 o PCP reorganizou-se em função da passagem à acção clandestina, e em 1934 o partido oficial único, a União Nacional, viu todos os seus candidatos eleitos para a Assembleia Nacional. Em 1935, por decreto-lei publicado a 13 de Maio, determinar-se-ia serem «aposentados ou reformados, se a isso tiverem direito, ou demitidos, em caso contrário», os funcionários ou empregados, civis ou militares, que tivessem revelado ou revelassem «espírito de oposição aos princípios fundamentais da Constituição Política» ou não dessem garantias «de cooperar na realização dos fins superiores do Estado». Logo no dia seguinte, uma resolução do Conselho de Ministros demitiu, de uma só vez, 30 altos funcionários do estado, oficiais superiores das forças armadas, professores universitários (Sílvio Lima, Aurélio Quintanilha, Rodrigues Lapa, Álvaro Lapa, Abel Salazar e José Norton de Matos), professores do ensino secundário, professores primários e quadros técnicos. Em 1936 foi “aberto” o campo de concentração do Tarrafal em Cabo Verde. Estava instalada a ditadura do Estado Novo em Portugal. No resto do mundo, recuperava-se da grande recessão e iniciava-se a encenação da Guerra Civil em Espanha e da Segunda Guerra Mundial. Bento de Jesus Caraça na Década de 30 É neste quadro complexo e por vezes sinistro que vamos encontrar Bento de Jesus Caraça no seu lúcido e aparentemente sereno apostolado cultural e cívico. Para ele, a década de 30 (e os primeiros anos da década de 40) foi um período de intensa actividade universitária, cívica e cultural no sentido mais lato do termo, actividade de estudo e reflexão pessoal por um lado, igualmente de comunicação e socialização, por outro. Dedica-se à docência no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras; profere conferências na Universidade Popular Portuguesa e noutros âmbitos; colabora em jornais de combate (como O Diabo, O Sol Nascente, Liberdade e O Globo ) e em revistas de doutrinação ( Seara Nova e Vértice ); publica obras científico-pedagógicas para o ensino das Matemáticas; funda o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicada à Economia (1938); já em 1940 funda, com outros prestigiados Matemáticos, a Gazeta de Matemática e a Sociedade Portuguesa de Matemática. Em 1941 lançará um notável monumento da cultura portuguesa do século XX, a Biblioteca Cosmos, que surgiu como a materialização de um projecto de formação e divulgação que vinha prosseguindo desde uma década atrás através da Universidade Popular Portuguesa , a que a sua experiência pessoal e a rede de “cumplicidades” entretanto estabelecida entre a intelectualidade esclarecida conferiram imediato sucesso. Caraça, professor de Matemática, para ensinar Matemática aprofunda os seus fundamentos, pesquisa a sua história e a sua filosofia. O seu posicionamento e a sua actuação são a de um intelectual inteiramente a par das concepções contemporâneas mais esclarecidas, numa época em que os saberes estavam ainda conscientemente compartimentados. Pois que por esse tempo, e por muito tempo então ainda por chegar, os homens das ciências exactas, quando interessados nos antecedentes e fundamentos das respectivas disciplinas, limitavam-se a cultivar as biografias das suas figuras consagradas e a historiar ou construir a memória das suas agremiações científicas. Simultaneamente, os homens das ciências humanas e sociais, os historiadores em particular, debruçados sobre os factos políticos, diplomáticos e militares, excluíam ou subalternizavam no corpo da sua pesquisa o peso histórico dos progressos científicos ou técnicos. Excepção foram os Descobrimentos e a Expansão, movimentos historiados para glorificação da Pátria, mas cristalizados no seu tempo, obra de um punhado de heróis. É por esse tempo – 1926-1933 – que em Portugal os historiadores, prosseguindo as suas pesquisas alheados da influência das demais ciências sociais, ignoram ou rejeitam o modelo de 1929 – Annales d'histoire économique et sociale da dupla francesa de Estrasburgo Marc Bloch e Lucien Fèbvre, a verdadeira revolução historiográfica na Europa de então – preferindo as humanidades cristãs e conservadoras, avessos a mudanças de percurso ou a historiar as transformações, as revoluções, o progresso e a modernidade. “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo”, é o título de uma conferência proferida por Bento de Jesus Caraça na União Cultural Mocidade Livre em 25 de Maio de 1933. Esse é possivelmente o seu mais conhecido texto, cuja actualidade perdura. Em nota explicativa inserta na sua edição como caderno da Seara Nova, em 1939, referindo-se aos jovens promotores dessa conferência e à ocasião em que ela fora proferida, o autor afirma: «....O futuro imediato não correspondeu às aspirações e impaciências desses espíritos juvenis e ardentes. O desenvolver da vida social europeia seguiu por caminhos que haviam de provocar a revisão de muitos optimismos fáceis e, em contrapartida, fazer abrir muitos olhos para realidades cruéis, em suma, proporcionar grandes lições. Tudo isto fez que se amortecessem alguns entusiasmos das primeiras horas. Que importa? É essencial que tenham existido! Mas foram mais algumas ilusões perdidas, dir-se-á. Não. As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir; perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra uniforme sobre o pântano estéril da vida sem formas.....». No entanto, liquidados os partidos social-democratas, soçobradas as frentes populares, tinham-se consolidado o nazismo e outros regimes fascistas em vários países europeus; estava-se nas vésperas da conflagração da Segunda Guerra Mundial. “Galileo Galilei – Valor Científico e Valor Moral da Sua Obra”, é o título de uma outra conferência proferida por Bento de Jesus Caraça desta feita na “sua” Universidade Popular Portuguesa em 22 de Junho de 1933. Conferência que seria depois também editada em 1940. «Toda a obra de Galileo, bem como dos filósofos e cientistas dos séculos XVI e XVII, consiste numa revalorização do homem e no desfazer de um curioso paradoxo que a civilização cristã tinha originado. Não se percebe, com efeito, como possam conciliar-se as duas posições que o cristianismo adoptou, uma no campo da ética, outra no da ciência..... Qual a explicação desta contradição, deste paradoxo? Parece-me simples. É que era precisamente essa a doutrina que convinha, para manter em equilíbrio um estado social em que os bens da vida eram logradouro duma ínfima minoria. Para a maioria, esmagadora mas ignara, era preciso, para que ela não tomasse consciência da sua força, mantê-la no culto da sua própria imperfeição e indignidade.» Aqui Caraça interpreta a dinâmica da evolução histórica da sociedade, relevando a importância da superestrutura ideológica. Mais adiante, o conferencista enuncia a sua visão epistemológica, a sua interpretação da construção do conhecimento científico, aliás ilustrada pela descrição histórica que relata: «O que caracteriza o valor científico duma época é qualquer destas duas coisas: ou o nascimento de ideia criadoras, lançadas em seguida em todas as direcções, e cujo rasto luminoso se mede pelas sugestões fecundas que proporcionam, pela agitação que provocam e pelas reacções que suscitam; ou a confluência dessas ideias e seus cortejos que de diferentes pontos do horizonte surgem a congregar-se, a unir-se, preparando uma síntese vasta de todos os conhecimentos até aí adquiridos. Foi da primeira natureza aquele período de encanto que se estende do século VI ao IV AC na Grécia antiga; foi da segunda o constituído pelos séculos XVI e XVII da nossa era......E todo esse prodigioso trabalho veio a conduzir a uma nova confluência de algumas grandes correntes, neste primeiro quartel do século XX. É uma nova grande época da história da ciência, esta a que estamos assistindo, a terceira nos últimos trinta séculos; ....». O autor referia-se assim à teoria da relatividade de Einstein que apresentava enquadrada num processo histórico longo e como resultado de «uma prodigiosa síntese». E todavia estávamos em 1933, quando a recepção dessa teoria ainda suscitava muita incompreensão e pouca aceitação em Portugal. Várias outras personalidades históricas da ciência mereceram o interesse apaixonado de Caraça. Na Gazeta de Matemática , 1.º ano n.º 2, de Abril de 1940, num artigo intitulado “Abel e Galois” descreve e analisa a personalidade e a obra desses dois grandes matemáticos precoces mas de meteóricas vidas, do princípio do século XIX. E escreve: «Ambos sofrem, mas na maneira de sofrer são díspares – Abel, fraco, de “sensibilidade” infantil, retrai-se, procura um ponto de apoio afectivo e, como todos os fracos, uma vez que entra na luta é para cometer uma injustiça [contra Jacobi]; Galois, personalidade incomparavelmente mais forte, revolta-se, ataca, ataca sempre. Abel, incapaz de ultrapassar os limites do individual, nunca aborda de alto a posição do homem, não relaciona os seus males com os males gerais de que enferma a sociedade do seu tempo, restringe a sua ambição à tranquilidade dum lugar na Universidade; Galois, mais esclarecido, discerne as conexões íntimas do corpo social, vê nos defeitos orgânicos de base a razão profunda de que os casos individuais são reflexo e, logicamente, combate as causas, atira-se para a luta, bate-se na rua, com tal ardor, tal exaltação no dom de si mesmo que chega a dizer “se for preciso um cadáver para que o povo se revolte, dar-lhe-ei o meu!” .... e, pensando nas condições desastrosas da investigação científica, diz [Galois] “Aqui, como em todas as ciências, cada época tem de alguma maneira as suas razões do momento: há questões vivas que fixam ao mesmo tempo os espíritos mais esclarecidos..... Parece muitas vezes que as mesmas ideias aparecem a vários como uma revelação. Se se procura a causa, é fácil encontrá-la nas obras daqueles que nos precedem, nas quais essas ideias estão presentes sem os seus autores darem por isso. A ciência não tirou, até hoje, grande partido desta coincidência tantas vezes observada nas investigações dos sábios. Uma concorrência desgraçada, uma rivalidade degradante têm sido os seus principais frutos. Não é contudo difícil reconhecer neste facto a prova de que os sábios não são, mais que os outros homens, feitos para o isolamento, que eles pertencem também à sua época e que, cedo ou tarde, multiplicarão as suas forças pela associação. Então, quanto tempo será poupado para a Ciência!”...». A linha do texto de Caraça sugere que ele faz seu o discurso de Galois, cerca de um século atrás, que partilha com Galois a visão histórica e social da construção do conhecimento científico. Repare-se como tanto na conferência “Galileo Galilei” como no artigo “Abel e Galois” Caraça faz uma interpretação do progresso científico em que mostra estar a par e ter posição própria face às ideias em História e em Filosofia da Ciência, em exuberante efervescência na Europa do seu tempo. A Filosofia da primeira metade do século XX estava sendo impulsionada por correntes de aproximação aos fenómenos científicos em geral, e à Lógica e à Epistemologia em especial; o positivismo lógico ou neopositivismo tornara-se a doutrina dominante a partir dos anos 30; era, porém, quase ignorada em Portugal. Por outro lado, a partir da década de 30, sob inspiração marxista, emergia e consolidava-se a contextualização e a interpretação social e económica da História da Ciência. Mergulhado na complexa teia de correntes filosóficas e históricas da sua época, Caraça insere-se na corrente marxista da História, incorporando também novos elementos epistemológicos da Filosofia, aproximando-se por antecipação às ideias que, com Thomas Kuhn e Imre Lakatos, encontrariam explícita formulação e ampla aceitação na segunda metade do século XX. Não se tendo assumido como historiador ou filósofo da ciência, a sua curiosidade e rigor intelectual e a sua preocupação em fundamentar a sua acção pedagógica e cultural, teriam sido os estímulos que o levaram a percorrer esses territórios então praticamente ignorados entre nós. Segundo o testemunho privilegiado de J. Sebastião e Silva (in Diário de Lisboa, 25/Junho/1968) Caraça teria sido influenciado pela “Escola Italiana” de matemáticos humanistas, quer directamente quer através de seu mestre A. Mira Fernandes. Aliás, encontramos nos seus textos frequentes referências a Federigo Enriques (1871-1946), um dos matemáticos da referida Escola, matemático que foi também destacado filósofo da ciência, relacionado com os círculos neopositivistas. Caraça entendia a cultura una e universalista. A arte e a literatura teriam de estar também no centro do seu interesse e da sua intervenção. Assim as suas conferências “ A Arte e a Cultura Popular ” (1936), “ Rabindranath Tagore ” (1939) e “ Algumas Reflexões sobre a Arte ” - esta já em 1943, na abertura de uma série de sessões de divulgação musical a cargo da Fernando Lopes Graça - testemunham a intervenção de quem, não se assumindo crítico de arte ou estudioso da estética, era seduzido pelo sentimento do belo e estava fundamentalmente convicto da importância da arte como factor de aperfeiçoamento individual e de comunhão humana no plano social. Na perspectiva de Marx, segundo quem a «....cultura compreende o máximo desenvolvimento das capacidades intelectuais, artísticas e materiais encerradas no homem», na conferência « As Universidades Populares e a Cultura » (1931) afirma «....Eduquemos e cultivemos a consciência humana, acordemo-la quando estiver adormecida, demos a cada um a consciência completa de todos os seus direitos e de todos os seus deveres, da sua dignidade, da sua liberdade. Sejamos homens livres, dentro do mais belo e nobre conceito de liberdade – o reconhecimento a todos do direito ao completo e amplo desenvolvimento das suas capacidades intelectuais, artísticas e materiais»; e em a ” A Cultura Integral do Indivíduo ” (1933) afirma «...A aquisição da cultura significa uma elevação constante, servida por um florescimento do que há de melhor no homem e por um desenvolvimento sempre crescente de todas as suas qualidades potenciais, consideradas do quádruplo ponto de vista físico, intelectual, moral e artístico, significa, numa palavra, a conquista da liberdade....». A década de 40 A partir de 1942 a intervenção cultural e cívica de Bento de Jesus Caraça vai intensificar-se na sua vertente mais directamente política. O que não significa quebra de continuidade da sua acção pedagógica e científica. Por um lado assegura com dedicação, e o entusiasmo dos seus alunos, a cátedra no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras; em 1940 funda e dirige a Sociedade Portuguesa de Matemática e a Gazeta de Matemática (de colaboração com António A. Monteiro, M. Zaluar Nunes, J. Silva Paulo, Ruy Luís Gomes, A. Mira Fernandes); participa em 1942-44-46 como delegado nos Congressos da Associação Luso-Espanhola para o Progresso das Ciências; prossegue a sua acção como conferencista e publica obras para o ensino e a divulgação da Matemática; dirige a grande Biblioteca Cosmos (1941-48). Mas, por outro lado, empenha-se (ainda nos anos 30) no Socorro Vermelho Internacional, na Liga dos Amigos da URSS, no Comité Mundial Contra a Guerra e o Fascismo (e na sua secção a Liga Portuguesa contra a Guerra e o Fascismo), na Frente Popular Portuguesa, no Bloco Académico Antifascista (todas estruturas de resistência clandestinas). Já durante a Grande Guerra, é elemento central na constituição em 1943 do clandestino MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Antifascista) e, logo após o termo da Guerra em 1945, do MUD (Movimento de Unidade Democrática), de que assumiria a vice-presidência e em nome do qual subscreverá representações e manifestos. Era o inicio de um acidentado e recorrente movimento cívico unitário de massas que viria a impulsionar a revolução democrática e nacional que eclodiria em 1974-75. Mas como ficou dito, a actividade científico-pedagógica não esmoreceu. Os famosos “ Conceitos Fundamentais da Matemática ”, primeiro publicados pela Cosmos em 1941-42, seriam depois reeditados numerosas vezes até a actualidade. È uma obra de divulgação cultural de elevada qualidade, rigor e acessibilidade, inovadora até mesmo no plano internacional. O seu interesse é tríplice: nas vertentes matemática, histórica e filosófica. Sobre este livro António Sérgio protagonizou com Caraça, nas páginas da Vértice , uma polémica cuja raiz era a divergência de posições sobre a história e a filosofia da ciência. Sérgio assumia uma posição espiritualista, da procura da verdade pelo pensamento puro no plano das ideias e das formas; Caraça assumia uma posição materialista, próximo do neopositivismo, mas deste se afastando no recurso ao papel da história na compreensão do movimento do pensamento científico. A Biblioteca Cosmos, criada em 1941 sob a direcção de Bento de Jesus Caraça, é um marco da história da cultura em Portugal do século XX. Desde essa data até 1948, à data da morte do seu fundador, foram publicados 114 títulos, 145 volumes, com uma tiragem global de quase 800 mil exemplares. A Biblioteca Cosmos surge como a materialização natural de um projecto de formação e divulgação cultural para as massas populares que lenta e seguramente vinha sendo prosseguido desde há uma década atrás. Caraça propunha-se dar ao maior número de pessoas o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos uma visão geral do mundo físico e social, a sua vida e os seus problemas; divulgar sem abaixar nem deturpar, trazendo ao nível do homem comum o património cultural comum; para o que o autor deveria possuir domínio completo do assunto, inclinação filosófica e capacidade de exprimir com simplicidade sem perder rigor temático. As aspirações populares reprimidas, mas também persistentemente alimentadas, a justeza do objectivo fixado, a experiência e o prestígio pessoais de Caraça, a rede de colaborações entretanto estabelecida entre a intelectualidade sensibilizada para a concretização desse objectivo, todos foram factores que se conjugaram em termos de conferir imediato e extenso sucesso ao projecto. Entre os autores que colaboraram conta-se grande parte da elite intelectual portuguesa de então, alguns já consagrados e outros que o seriam mais tarde. Em 10 de Setembro de 1946 Bento de Jesus Caraça, professor catedrático da Universidade Técnica de Lisboa, recebe uma nota de culpa deduzida pelo instrutor de um processo disciplinar mandado instaurar por ter sido autor do manifesto «O MUD perante a admissão de Portugal na ONU», facto que constituía infracção prevista no “Estatuto Disciplinar dos Funcionários Civis do Estado”. Idêntico procedimento é iniciado para com Mário de Azevedo Gomes, primeiro subscritor do referido manifesto e também professor da mesma Universidade. Na sua resposta ao articulado da acusação, datada de 18 de Setembro, Caraça escreve «.....o signatário usou de um direito que a Constituição Política da República Portuguesa lhe confere expressamente... Fê-lo ainda obedecendo a um imperativo moral, uma vez que considera como uma das condições necessárias para o exercício da profissão a que tem dedicado toda a sua vida a independência moral e o sentido da responsabilidade no uso dos seus direitos cívicos. E se o uso dessa independência e dessa responsabilidade lhe podem, como agora, acarretar perigos graves em face das reacções dos poderosos do momento, não é isso razão para deixar de as usar, cônscio de que é essa a maior e mais alta lição que pode dar na sua vida de professor e portanto a maneira mais nobre de realizar a sua missão de educador.» O Conselho Permanente da Acção Educativa emite, com data de 7 de Outubro de 1946, parecer que aos arguidos seja aplicada a pena de demissão, a qual na mesma data é decidida por despacho ministerial. Em “ Bento de Jesus Caraça – Militante Integral do ser Humano ”, Campo das Letras 1999, Alberto Vilaça documenta a adesão de Bento Caraça ao Partido Comunista Português, pelo menos desde 1931, então ligado através do efémero Núcleo de Trabalhadores Intelectuais. Essa ligação sofreu perturbações decorrentes do regime de clandestinidade, mas os seus testemunhos e sinais persistiram ao longo dos anos. Essa relação política ajuda a interpretar a natureza e a multiplicidade de iniciativas bem como as vicissitudes e os êxitos dos empreendimentos culturais e cívicos que protagonizou, explicando o frequente envolvimento de Caraça em estruturas clandestinas e esclarecendo a orientação e a coerência ideológica dos textos do autor. Mas só em Bento Jesus Caraça ele mesmo, na sua personalidade de viva inteligência, de generosa comunhão e de tenaz e persuasiva determinação, podemos encontrar a origem, o propósito e o percurso da sua vida. Não terá havido homem mais livre mesmo no mundo encarcerado como foi o do seu tempo. Tese, antítese e síntese de si mesmo ele se construiu. Pela sua palavra e pela sua acção os termos Cultura e Intelectual ganharam aos olhos do povo português o sentido de dignidade humana e de desejo de futuro e de compromisso moral e cívico entre concidadãos.
Rui Namorado Rosa
http://resistir.info/
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