sexta-feira, outubro 27, 2006

Farto dos lamurientos

“Os miúdos das velas” cresceram e tornaram-se no “movimento de protesto” desta guerra. A juventude confusa que se sentou a chorar com as suas guitarras e as suas velas na praça de Telavive, após o assassinato de Rabin, está actualmente sentada no Jardim das Rosas, em frente ao gabinete do primeiro­‑ministro, não menos confusa, e parecendo protestar contra a guerra – evidentemente, só depois desta ter cessado.

Tal como era impossível saber o que as crianças das velas queriam, é difícil compreender o que querem os reservistas e as suas famílias desoladas. A maior parte das suas queixas deveria ser dirigida contra si mesmos: onde estavam até agora? Se é só a exigência de que alguns responsáveis voltem para casa, é uma perda de tempo deles e nosso. Clones daqueles que são depostos muito rapidamente os substituirão e nada mudará. Olmert, Peretz e Halutz voltarão para casa, e Netanyahu, Mofaz e Barak chegarão ao poder.

Pela primeira vez depois de muitos anos terríveis durante os quais matámos e fomos mortos sem razão, há pontos de interrogação que marcam o discurso público. Essa mudança deveria ser bem-vinda. Mas aqueles que examinam o conteúdo do novo protesto, não deveriam acalentar grandes ilusões. Os argumentos dos manifestantes resumem-se a dois pontos principais, ambos tão estreitos como o mundo dos reservistas: as IDF [Forças de Defesa Israelenses] não estavam preparadas para a guerra, e a guerra foi terminada demasiado depressa.

Sobre o primeiro ponto, muitos são responsáveis, e o segundo ponto não justifica o protesto. Questões bem mais graves e profundas pairam no ar sobre como fomos sequer para esta guerra, como poderia ter sido evitada, porque é que a guerra é a única linguagem que conhecemos, quais são os limites da utilização do poder e para onde vamos agora. O novo movimento de protesto não está a levantar estas questões.

Ainda que esta vaga de protestos seja bem sucedida, que uma comissão de inquérito seja estabelecida e duas ou três pessoas paguem com os seus lugares, nada mudará. Tal como os protestos de 1973 não trouxeram a mudança desejada, excepto para as poucas pessoas afastadas dos lugares, os protestos de 2006 não trarão verdadeira mudança. Lamentar-se após a guerra não é uma agenda nacional, e muito menos se evita a todo o custo as questões principais. Se são apenas os manifestantes “laranja” contra a desconexão [1] disfarçados, até antecipa novos perigos.

Antes de mais, os signatários da petição e os manifestantes que fazem sit­‑in no Jardim das Rosas deveriam perguntar a si mesmos onde estavam até agora. Tirando os “laranjas”, a maior parte deles votou no partido Kadima, talvez no Likud ou no Trabalhista, muitos serviram nas reservas nos territórios ocupados, trataram dos seus assuntos pessoais e mantiveram­‑se calados. Durante anos, tomaram parte directa ou indirecta em programas nacionais inúteis, desde a construção do muro ao empreendimento de colonização e ao aprofundamento da ocupação. Viram com os seus próprios olhos como as IDF foram transformados numa força de polícia de ocupação, bravateando com os fracos mas não treinadas para lidar com os fortes.

Protegeram os colonos, viram o sofrimento causado pela ocupação, foram testemunhas ou participaram no maltrato dos palestinianos. Por conseguinte, a responsabilidade pela falta de preparação das IDF é deles, em parte devido ao que fizeram e em parte devido ao seu silêncio. Não podem pretender agora que ficaram surpresos com o fracasso das IDF em executar: estavam lá quando o exército alterou o seu rosto. Souberam todos estes anos que controlar as identidades nas barreiras rodoviárias, invadir quartos, perseguir crianças nos becos e demolir milhares de casas não é uma preparação para a guerra.

Esperava-se que compreendessem que as actividades de ocupação do exército nos territórios inspiram muito ódio contra nós, que as políticas de recusa de Israel a põem em maior perigo que qualquer outra coisa e que o verdadeiro teste do exército não é nas casbahs. Mesmo a falta de prontidão na frente interna não deveria tê­‑los surpreendido: um país que abusa dos fracos em tempos de calmaria também o fará em tempos de guerra. O que há de tão novo e surpreendente em tudo isto?

O outro ponto, a suspensão dos combates, não justifica certamente o protesto, mas na verdade um cumprimento. Em vez de perguntar porque estoirou a guerra, os manifestantes estão a perguntar porque terminou. Se há algo pelo qual o comando da guerra mereça algum crédito, é pela sua hesitação nas últimas etapas da guerra. É uma vergonha que não tenham hesitado mais cedo. E se tivéssemos continuado a guerra, onde terminaríamos exactamente? Foram a determinação, a arrogância e a pressa do comando da guerra nas primeiras fases os pecados originais contra as quais o protesto deveria apontar.

Acima de tudo, é deprimente verificar que nenhum dos manifestantes está a levantar questões morais. Um movimento de protesto que não diz nada sobre a terrível destruição que infligimos no Líbano, de como matámos centenas de civis inocentes e de como transformámos dezenas de milhares em refugiados empobrecidos, não é, por definição, um movimento moral. Mesmo após ter sido provado que a força excessiva não era eficaz, nenhuma manifestação foi dirigida contra ela. Durante quanto tempo mais vamos continuar a concentrar­‑nos em nós mesmos e na nossa aflição?

É pedir demasiado aos manifestantes, que são supostamente os quadros da vanguarda, que olhem um instante para o que fizemos a outra nação? Porque é que depois dos massacres de Sabra e de Chatila, que nem sequer foram directamente obra nossa, massas de pessoas desceram às ruas e agora ninguém pia sobre a destruição que semeámos no Líbano com as nossas próprias mãos, e para nada?

Com tais movimentos de protesto, Israel não precisa dos cordeiros silenciosos que a caracterizaram nestes últimos anos. Deveríamos estar fartos de tais lamurientos. Talvez sejam soldados corajosos no campo de batalha, mas no terreno do protesto não são nada mais que soldados cobardes.
Gideon Levy

Gideon Levy é jornalista no diário israelense de esquerda Ha’aretz. Muito crítico da ocupação israelense, tem neste jornal uma crónica semanal das violações cometidas contra os palestinianos sob o título de “Twilight Zone”. Ao longo dos anos tornou-se para a direita israelense um ícone do “esquerdismo pró­‑palestiniano” e um álibi­‑contraste para os outros. «Como poderíamos não ser uma democracia? Deixamos escrever Gideon Levy!», costuma dizer o ministro da Defesa, Shaul Moffaz. Gideon Levy é membro da conferência anti­‑imperialista Axis for Peace organizada pela Rede Voltaire (nota retirada da versão francesa em Voltaire).

[1] Os colonos que recusam a desconexão de Gaza adoptaram as cores da “revolução laranja” ucraniana.
http://infoalternativa.org/moriente/mo070.htm

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