segunda-feira, outubro 02, 2006

Insultos papais: uma provocação bávara

A mais recente provocação de Bento XVI foi acidental ou deliberada? O bávaro é um fino clérigo reaccionário. Um homem que organiza a sua própria sucessão ao Papado com uma purga brutal de potenciais dissidentes e que supervisiona a selecção de cardeais com grande cuidado não deixa nada ao acaso.

Penso que ele sabia o que dizia e porquê.

A escolha de uma citação de Manuel II Paleólogo, que não é o mais inteligente dos governantes bizantinos, não foi ingénua, especialmente na véspera da visita à Turquia. Ele poderia ter descoberto citações mais efectivas e próximas de casa. Talvez tenha sido a sua homenagem especial a Oriana Fallaci.

Talvez.

O mundo muçulmano, com dois dos seus países – o Iraque e o Afeganistão – directamente ocupados por tropas ocidentais, não precisa de ser relembrado da linguagem das Cruzadas. Num mundo neoliberal que sofre de degradação ambiental, pobreza, fome, repressão, um «planeta de periferias» (na frase gráfica de Mike Davis), o Papa opta por insultar o fundador de uma fé rival.

A reacção no mundo muçulmano era previsível, mas depressivamente insuficiente. A civilização islâmica não pode ser reduzida ao poder da espada. Foi a ponte vital entre o mundo Antigo e o Renascimento Europeu. Foi a Igreja Católica que declarou guerra ao Islão na Península Ibérica e na Sicília. Expulsões em massa, matanças, conversões forçadas e uma Inquisição criminosa para policiar a Europa purgada e o inimigo protestante reformista.

A fúria contra os “heréticos” levou ao incêndio das cidades cátares no Sul da França. Tanto aos judeus como aos protestantes era garantido refúgio pelo Império Otomano, um refúgio que teria sido negado se Istambul tivesse permanecido Constantinopla. «Escravos, obedeçam aos vossos senhores humanos. Pois Cristo é o verdadeiro senhor a quem servis», disse Paulo (Epístola aos Colossenses 3: 22-24) ao estabelecer uma tradição colaboracionista que caiu de joelhos perante a riqueza e o poder e que atingiu o seu apogeu durante a Segunda Guerra Mundial, na qual a liderança da Igreja colaborou com o fascismo e não falou contra o judeucídio nem contra a carnificina da Frente Leste. O Islão não precisa de lições pacifistas desta Igreja.

A violência não foi nem é prerrogativa de nenhuma religião, tal como a contínua ocupação israelita da Palestina demonstra. Durante a Guerra Fria, o Vaticano, com raras excepções, apoiou as guerras imperiais. Ambos os lados foram abençoados durante a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais; o cardeal estadunidense Spellman era um líder guerreiro nas batalhas pela destruição do comunismo durante as guerras da Coreia e do Vietname. O Vaticano mais tarde puniu os teólogos da libertação e os padres-camponeses na América Latina. Alguns foram excomungados.

Nem todos os cristãos se juntaram às Cruzadas velhas ou novas. Quando o Papa Urbano lançou as Cruzadas, o rei normando da Sicília recusou enviar tropas nas quais os muçulmanos sicilianos seriam compelidos a lutar contra muçulmanos no Leste. O seu filho, Rogério II, recusou apoiar a Segunda Cruzada. Ao fazê-lo mostraram mais coragem que os líderes da Itália contemporânea, os quais estão simplesmente demasiado dispostos a juntar-se à Cruzada Imperial contra o mundo muçulmano.

«Para ter a certeza de estarmos correctos em todas as coisas», disse o fundador dos jesuítas, Inácio de Loyola, «devemos sempre observar o princípio que diz que devemos acreditar que o branco que vemos é preto se assim o ordenar a hierarquia da Igreja».

Hoje, a maioria dos prelados no Ocidente (incluindo o bávaro no Vaticano) e os políticos do centro­‑esquerda/direita adoram o verdadeiro Papa que vive na Casa Branca e lhes diz quando o preto é branco.

Amém.
Tariq Ali
http://www.infoalternativa.org/mundo/mundo173.htm

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