A Filosofia em si não existe, tal como não existe o Cavalo em si: apenas há filósofos, como apenas há cavalos árabes, percherons, leoneses e anglo- normandos. As filosofias são produzidas pelos filósofos: e a proporção não é tão vã como habitualmente se acredita. Como há trinta e seis mil espécies de filósofos, há outras tantas espécies de filosofias (...).
A Filosofia diz qualquer coisa, não tem uma vocação eterna, nunca é nem nunca foi unívoca, é mesmo o cúmulo da actividade equívoca. A Filosofia em geral é o que resta das diferentes filosofias, quando as esvaziámos de toda a matéria, quando mais nada subsiste que não seja um certo ar de família, como uma atmosfera evasiva de tradições, de conivências e de segredos. É uma entidade do discurso (...).
A filosofia acaba sempre por falar da posição dos homens, obedece sempre ao programa que Platão lhe traçou: “ O objecto da Filosofia é o homem e o que diz respeito à sua essência de sofrer a acção e de agir”.
Mas como não há uma ordem única da posição humana, uma solução estabelecida para a eternidade do destino dos homens, uma única chave para a sua situação, esta Filosofia permanece totalmente equívoca. A primeira tarefa que se apresenta a uma iniciativa crítica é a definição do equívoco presente na palavra Filosofia.
Vivemos num tempo em que os filósofos se abstêm. Vivem num estado de escandalosa ausência. Há um desvio escandaloso, uma distância escandalosa entre o que a Filosofia anuncia e o que acontece aos homens a despeito das suas promessas; no momento em que repete a sua promessa a Filosofia está em fuga. Ela nunca se encontra onde teríamos necessidade dos seus serviços. Está, ou parece estar, demissionária. Temos que falar de abandono de posto, de traição.
Os filósofos parecem ignorar como são feitos os homens, não conhecem o que eles comem, as casas em que vivem, os vestidos que usam, a maneira como morrem, as mulheres que amam, o trabalho que realizam. O modo como passam os seus domingos. O modo como tratam das suas doenças. O seu emprego de tempo. O seu ordenado. Os jornais, os livros que lêem. Os espectáculos dos seus divertimentos, os seus filmes, as suas canções, os seus provérbios. Esta ignorância espantosa não perturba o curso preguiçoso da Filosofia. Os filósofos não se sentem atraídos pela terra, são mais leves do que os anjos, não têm o peso dos vivos que amamos, nunca experimentaram a necessidade de andar entre os homens.
Quando ouvimos dizer que a Filosofia ainda fala de relações, de fenómenos e de realidades, de “élans vitais” e de números, de imanência e de transcendência, de contingência e de liberdade , de almas e de corpos (...) não vemos como esses bacilos do espírito, esses produtos teratológicos da meditação poderiam explicar ao homem vulgar a tuberculose da sua filha, a cólera da sua mulher, o serviço militar e as suas humilhações, o seu trabalho, o desemprego, as suas férias, as guerras, as greves, a podridão dos seus parlamentos e a insolência dos poderes; não vemos com o que rima a Filosofia sem matéria, a Filosofia sem rima nem razão.
É tempo de colocar os filósofos contra a parede. De lhes perguntar o que pensam sobre a guerra, sobre o colonialismo, sobre a racionalização das fábricas, sobre o amor, sobre as diferentes espécies de morte, sobre o desemprego, sobre a política, sobre o suicídio, os polícias, os abortos, sobre todos os elementos que verdadeiramente ocupam a terra. É tempo de lhes perguntar qual é o seu partido.
Certamente que o filósofo dirá que a guerra, a prostituição, o trabalho numa fábrica de produtos químicos, nas minas, não são filosóficos, que as leis da filosofia, infelizmente, não permitem que os abordemos. Mas é preciso obstinarmo-nos. Porque o objecto da filosofia é justamente o objecto perigoso, o objecto sobre o qual os filósofos não se querem decidir.
Paul Nizan - Les Chiens de Garde
A Filosofia diz qualquer coisa, não tem uma vocação eterna, nunca é nem nunca foi unívoca, é mesmo o cúmulo da actividade equívoca. A Filosofia em geral é o que resta das diferentes filosofias, quando as esvaziámos de toda a matéria, quando mais nada subsiste que não seja um certo ar de família, como uma atmosfera evasiva de tradições, de conivências e de segredos. É uma entidade do discurso (...).
A filosofia acaba sempre por falar da posição dos homens, obedece sempre ao programa que Platão lhe traçou: “ O objecto da Filosofia é o homem e o que diz respeito à sua essência de sofrer a acção e de agir”.
Mas como não há uma ordem única da posição humana, uma solução estabelecida para a eternidade do destino dos homens, uma única chave para a sua situação, esta Filosofia permanece totalmente equívoca. A primeira tarefa que se apresenta a uma iniciativa crítica é a definição do equívoco presente na palavra Filosofia.
Vivemos num tempo em que os filósofos se abstêm. Vivem num estado de escandalosa ausência. Há um desvio escandaloso, uma distância escandalosa entre o que a Filosofia anuncia e o que acontece aos homens a despeito das suas promessas; no momento em que repete a sua promessa a Filosofia está em fuga. Ela nunca se encontra onde teríamos necessidade dos seus serviços. Está, ou parece estar, demissionária. Temos que falar de abandono de posto, de traição.
Os filósofos parecem ignorar como são feitos os homens, não conhecem o que eles comem, as casas em que vivem, os vestidos que usam, a maneira como morrem, as mulheres que amam, o trabalho que realizam. O modo como passam os seus domingos. O modo como tratam das suas doenças. O seu emprego de tempo. O seu ordenado. Os jornais, os livros que lêem. Os espectáculos dos seus divertimentos, os seus filmes, as suas canções, os seus provérbios. Esta ignorância espantosa não perturba o curso preguiçoso da Filosofia. Os filósofos não se sentem atraídos pela terra, são mais leves do que os anjos, não têm o peso dos vivos que amamos, nunca experimentaram a necessidade de andar entre os homens.
Quando ouvimos dizer que a Filosofia ainda fala de relações, de fenómenos e de realidades, de “élans vitais” e de números, de imanência e de transcendência, de contingência e de liberdade , de almas e de corpos (...) não vemos como esses bacilos do espírito, esses produtos teratológicos da meditação poderiam explicar ao homem vulgar a tuberculose da sua filha, a cólera da sua mulher, o serviço militar e as suas humilhações, o seu trabalho, o desemprego, as suas férias, as guerras, as greves, a podridão dos seus parlamentos e a insolência dos poderes; não vemos com o que rima a Filosofia sem matéria, a Filosofia sem rima nem razão.
É tempo de colocar os filósofos contra a parede. De lhes perguntar o que pensam sobre a guerra, sobre o colonialismo, sobre a racionalização das fábricas, sobre o amor, sobre as diferentes espécies de morte, sobre o desemprego, sobre a política, sobre o suicídio, os polícias, os abortos, sobre todos os elementos que verdadeiramente ocupam a terra. É tempo de lhes perguntar qual é o seu partido.
Certamente que o filósofo dirá que a guerra, a prostituição, o trabalho numa fábrica de produtos químicos, nas minas, não são filosóficos, que as leis da filosofia, infelizmente, não permitem que os abordemos. Mas é preciso obstinarmo-nos. Porque o objecto da filosofia é justamente o objecto perigoso, o objecto sobre o qual os filósofos não se querem decidir.
Paul Nizan - Les Chiens de Garde
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