Os números sobre a mortalidade no Iraque publicados pela revista médica britânica The Lancet são aterradores. Desde a invasão, morreram, a mais que o normal, 655 mil iraquianos, 91% dos quais de causas violentas. A taxa de mortalidade subiu de 5,5 por mil (antes de Março de 2003) para o valor médio de 13,3 por mil, com a particularidade trágica de, no último ano (Junho de 2005 a Junho de 2006), ter atingido a cifra de 19,9 por mil. Ou seja, em pouco mais de três anos, foram dizimados 2,5% da população iraquiana, à razão de mais de 500 mortos por dia [1].
Os números são, também, insofismáveis. Tanto pelo crédito científico dos autores do estudo (a Escola Bloomberg de Saúde Pública da Universidade Johns Hopkins de Baltimore, EUA, e a Faculdade de Medicina da Universidade al-Mustansiriya, de Bagdade), como pela metodologia empregue (inquérito junto das famílias iraquianas numa amostragem que cobre todo o país), não é possível negar validade aos dados catastróficos revelados. Além disso, este relatório valida os números de um primeiro inquérito semelhante publicado em 2004 que apontava então para 100 mil mortos, confirmando o pior dos cenários previstos nessa altura. Acresce que nenhuma outra instituição com ligação ao Iraque (nem governos, nem ONGs) promoveu nada que se parecesse com a indagação feita por aquelas universidades, pelo que não é sequer possível comparar análises ou números.
Tentar desmentir o que a The Lancet diz só pode, pois, constituir um exercício de contrapropaganda, sem outro propósito que não seja esconder da opinião pública a realidade tenebrosa em que o Iraque mergulhou com a invasão anglo-norte-americana.
Mas foi precisamente este expediente de contrapropaganda que a grande imprensa internacional pôs em marcha quando noticiou os números da catástrofe. Os títulos do Washington Post (Nova Iorque) e do Guardian (Londres), assim como, entre nós, os do Diário de Notícias, ou das cadeias de TV punham à frente dos dados do estudo os desmentidos de Bush e de Blair, no que só pode ser entendido como uma operação orquestrada de propaganda de guerra. A técnica é simples: já que não se pode omitir a difusão dos números, noticiem-se estes com a sombra dos desmentidos “oficiais”; já que faltam provas para negar, desacredite-se o que é trazido a público.
Ninguém, entre estes propagandistas, tratou de questionar os desmentidos, indagando da fiabilidade das fontes de Bush e Blair quando declararam “exagerados” os números da The Lancet. No entanto, se há parte interessada na questão, essa é a dos agressores – não a das universidades que promoveram o estudo. Se há quem tenha demonstrado ser capaz de mentir para levar a sua avante, foram os agressores. Ninguém nos grandes médias ligou a este simples critério lógico.
Ninguém, menos um, para falar verdade. Eis o caso: na conferência de imprensa em que falou do assunto, Bush passou a palavra, a dada altura, ao general Casey que, confirmando o desmentido do presidente, adiantou que o número de mortos iraquianos seria de 50 mil – uma ninharia, portanto, diante dos 655 mil agora divulgados. Um jornalista atreveu-se então (sem prever o efeito?) a perguntar a Casey de onde provinham os 50 mil. Apanhado de surpresa, o general titubeou, disse que tinha ouvido o número algures mas não se lembrava onde. O jornalista (querendo ajudar?) sugeriu: serão números do governo norte-americano, ou do governo iraquiano? Casey volta a gaguejar: não sei, não me lembro, é um número que vi em algum lado… E ponto final na questão.
Nem mesmo depois desta cena degradante os médias tiveram o rebate de se interrogar sobre os desmentidos a que decidiram dar tanto crédito. O caso das armas de destruição massiva fez escola, portanto. O que criou uma situação duplamente inquietante. Não só os grandes meios de informação continuam a mostrar-se prontos a dar crédito a tudo o que provém da boca dos fautores da guerra, nem que seja a baboseira mais desqualificada; mas também, com isso, qualquer general Casey se sente à vontade para afirmar o que bem quer sem ter de prestar contas.
Vale o facto de a sorte da guerra se jogar no terreno, e de a resistência dos iraquianos à ocupação não dar mostras de se sentir abalada, nem com as afirmações dos generais nem com a propaganda desta imprensa. Sessenta e sete soldados norte-americanos foram mortos nas primeiras três semanas de Outubro, dez dos quais num só dia.
[1] Eduardo Maia Costa, O que se tem passado no Iraque é um verdadeiro massacre,
TMI-AP, 14/10/2006.
TMI-AP
http://infoalternativa.org/midia/midia048.htm
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