A Bélgica celebra num ambiente deletério os seus 175 anos de existência e os seus 25 anos de federalismo. A posição autonomista dos partidos flamengos e as querelas comunitárias alimentam a posição dos que pensam que o “Estado belga” não festejará o seu 200º aniversário. Estarão a Flandres e a Valónia a enveredar cada dia mais por caminhos separados, se não mesmo opostos? Visita a duas cidades, a valona Wanze e a flamenga Kruibeke.
Bem conhecida pelos seus surrealistas, a Bélgica pratica no quotidiano esta corrente artística. Um dos principais eixos rodoviários do país, a auto-estrada E40, namora com a fronteira linguística que separa a Flandres da Valónia. Tendo o bilinguismo sido maciçamente adoptado pelas duas comunidades, seria lógico que fosse aí aceite, mas não é assim. Os cartazes da campanha de segurança rodoviária tanto surgem em flamengo como em francês, de acordo com a região em que estão implantados. Ao longo da E40, a cidade flamenga “Tienen” passa a ser “Tirlement” na região valona, e a cidade da Valónia “Waremme” passa a ser indicada com o nome “Borzworm” na região flamenga. Desconcertado por estes nomes que mudam de quinze em quinze quilómetros, o automobilista não prevenido que abandone a auto-estrada para encontrar algum reconforto nas estradas regionais deverá saber de que lado se encontra. É que nas estradas regionais flamengas a regra são os 70 quilómetros por hora, mas os valões concedem um suplemento de 20 quilómetros por hora para o mesmo tipo de via. Estranho? A história da Bélgica e o seu comboio federalista seguem também uma via rápida...
Desde 1993, a Bélgica é um Estado federal composto por três regiões e três comunidades linguísticas [1]. Esta estrutura resulta de um avanço regular, desde 1970, da descentralização [2]. A dinâmica foi levada muito longe porque – caso excepcional – as entidades federadas têm o poder de assinar tratados internacionais em matérias ligadas às suas competências institucionais. Mas isso não parece ser ainda suficiente. Um crescente número de responsáveis políticos flamengos reclama mais autonomia e, alguns mais extremados, até a independência.
Durante muito tempo, os apelos ao separatismo emanavam apenas da Flandres mas, desde há pouco tempo, os valões brandem o espectro da separação. «Os francófonos estão fartos de ser constantemente apresentados como beneficiados que impedem uma gestão eficaz do país. Temos a impressão de já não sermos completamente aceites (...). Se há uma maioria de flamengos que quer viver sem os francófonos, então também temos que nos perguntar se faz sentido vivermos juntos», explica Béatrice Delvaux, chefe de redacção do diário francófono Le Soir [3]. O mesmo espírito reina entre alguns responsáveis políticos francófonos. Jean-Claude Van Cauwenberghe, o ministro-presidente valão (do PS), declarava assim no início de Maio que «a Valónia não vai aceitar seja o que for, nem defenderá a Bélgica a qualquer preço» [4]. O semanário francófono Le Vif/L’Express, compromete-se ainda mais: num dossiê intitulado “E se os flamengos nos abandonassem?”, considera que «chegará o dia em que francófonos e flamengos terão que dividir entre si as jóias da antiga Bélgica». Todos os estados-maiores políticos examinam os cenários de um futuro sem a Bélgica. E, se se folhear a imprensa, o país assemelha-se a um barril de pólvora no coração da Europa. A realidade é, contudo, muito diferente.
Terça-feira, 22 de Março, Grand Place de Wanze [5] na Valónia. Sob o olhar dos pais, várias crianças fruem a praça convertida em área de jogos, enquanto os mais velhos experimentam o skateboard, a BTT [bicicleta de todo o terreno] ou o namoro... A voz das Cassandras não parece ter chegado até aqui. No entanto, em linha recta, a Flandres fica a apenas vinte e cinco quilómetros. «A tensão entre as duas comunidades não existe. Há um respeito cidadão mútuo», assegura Claude Parmentier, burgomestre (autarca) socialista de Wanze. «Por causa de uma data eleitoral ou de uma sondagem, posso ser interpelado sobre a extrema-direita, mas não sobre os flamengos. Não sinto a rejeição dos flamengos. Estou convencido de que as pessoas não se preocupam com problemas comunitários.»
Instalados num banco, Bastien e Robert, ambos de 15 anos, aproveitam os raios de sol. Não conhecem realmente a Flandres. Robert passa férias na costa belga – “a costa flamenga”, dirão os flaminguistas... –, mas não contacta com a população local. Diga-se, aliás, que os dois amigos não estão muito informados sobre a Bélgica, a sua história, os seus costumes políticos, a sua cultura, os seus artistas. Mas nem por isso deixam de se opor ao estilhaçamento do seu país. «A Bélgica já não é muito grande; se a separarem vai‑se tornar minúscula», brinca Robert. Um pouco mais a sério, Bastien teme que, «se se dividir o país em dois, possam surgir conflitos...»
Este sentimento está muito generalizado na população belga. De acordo com uma sondagem, realizada em Março de 2004 pelo diário La Libre Belgique, 87 por cento das pessoas inquiridas desejam uma Bélgica unida, sendo a percentagem mais ou menos idêntica em Bruxelas, na Valónia e na Flandres [6]. Quando se ultrapassa esta questão genérica surgem todavia divergências sobre o “como viver em conjunto?”, reclamando uma maioria de flamengos mais competências a nível regional. Mas isto nada tem a ver com uma reivindicação separatista. «Os flamengos não defendem a independência da Flandres, mesmo que haja diferenças entre as mentalidades do Norte e do Sul», assegura Myriam Claes, proprietária do único jardim infantil privado de Kruibeke. Situado a algumas dezenas de quilómetros de Antuérpia, esta comunidade flamenga é a equivalente de Wanze, a valona [7]. E, com efeito, as mentalidades parecem ser diferentes...
Enquanto Wanze, com o seu colégio comunal (conselho municipal) totalmente socialista, ilustra a força do PS na Valónia, a flamenga Kruibeke confirma a imagem católica do Norte da Bélgica. Enquanto em Wanze a igreja está claramente separada da praça comunal, em Kruibeke ela pontifica no meio da comunidade. Durante a muito mediatizada agonia do papa João Paulo II, o município de Kruibeke ostentava as bandeiras da cidade e da Flandres; mas em frente da casa do burgomestre podia ver-se a meia-haste a bandeira do Vaticano... A igreja é rodeada pela mutualidade cristã, o sindicato cristão, a casa comunal (câmara municipal) e o presbitério. Também ali é bem visível a bandeira do Vaticano. Para concluir a osmose entre a comuna e a sua igreja, os anúncios de licença de construção são colocados nos painéis de afixação do edifício religioso. «Mas poucos são os que vão à igreja», lamenta Antoine Denert, burgomestre da comuna desde 1983.
«Pessoalmente, não tenho nada contra os valões», prossegue este cristão convicto, que se define como flaminguista e nacionalista flamengo. «Quando recebo a visita de colegas valões, hasteio uma bandeira valona. Na Valónia não fariam o mesmo, mas eu sou um extremista em tolerância», repete com prazer. No entanto, o burgomestre de Kruibeke assume de bom grado o slogan do partido de extrema-direita, o Vlaams Belang [8]: «Eigen Volk Eerst» (O nosso povo em primeiro lugar). «Não tenho nenhum problema com isso. Tem que se começar por ser forte antes de ajudar os outros. A Valónia tem outra mentalidade e outra cultura. Os valões abordam os problemas de um modo diferente e fixam outras prioridades. Ao nível da gestão, por exemplo, somos mais rigorosos na Flandres». É evidente que não veria com maus olhos a independência da “sua” Flandres.
Em Wanze, Parmentier coloca também em primeiro plano a sua identidade, valona, mas defende a unidade da Bélgica. «Sou favorável a um federalismo bem concebido, que respeite as concepções e as diferentes culturas. Mas o separatismo é uma má ideia». Apesar disso, na brochura que envia aos habitantes de Wanze recentemente instalados na sua comuna, a cidade é descrita como estando inserida «no coração da região de Liège, da Valónia e da Europa». Assim sendo, não existirá já entre a Valónia e a Europa um espaço político intermédio?
«MAJESTADE, NÃO EXISTEM BELGAS»
O esquecimento deste folheto comunal não traduz uma vontade de negar a Bélgica, mas revela a fraca ligação à identidade belga. Se, na Flandres como na Valónia, cada um conhece a sua aldeia, a cidade vizinha, a sua província, ou até a sua região, já o desconhecimento da outra comunidade é cada vez mais flagrante.
Kevin, de 16 anos, e Christophe, de 15 anos, frequentam as aulas no Athénée Royal de Beveren, a primeira grande cidade na vizinhança de Kruibeke. Não conhecem um único cantor belga francófono, não têm amigos ou conhecidos na Válonia, onde nunca ou raramente se deslocam por sua iniciativa. Pieter, de 15 anos, vai de vez em quando visitar a família a Virton (Ardenas), onde frequentemente tem que utilizar o inglês com os habitantes, «senão ninguém se entende». Veja-se por fim o caso de Annelies, de 18 anos, que afirma ir por vezes à Valónia, a um povoado que situa perto de... Marselha!
Apesar das lacunas no conhecimento da Valónia e dos valões, nem um destes jovens cai no ódio do outro. Se estão de acordo em reconhecer, ou até em sublinhar, as singularidades dos dois povos, os valões nem por isso seriam “preguiçosos”, nem “exploradores” – preconceitos ainda recentemente veiculados pelo Nieuw‑Vlaamse Alliantie (N-VA), partido nacionalista no poder na Flandres, em associação com os cristãos flamengos. Todos sustentam que a Bélgica deve permanecer unida, o que é quase surpreendente se se pensar que ao longo de toda a escolaridade nunca aprenderam grande coisa sobre o seu país. Flor Van Gheem, director-geral do Athénée Royal de Beveren, admite-o com facilidade: «O capítulo sobre a Bélgica só surge no último ano do ensino secundário. Durante alguns meses, os alunos têm aulas sobre a história da Bélgica, nas quais é apresentada detalhadamente a história da Flandres e a evolução do movimento flamengo a partir da Segunda Guerra Mundial, bem como a história da Valónia. As aulas incidem por fim nas reformas do Estado, das estruturas estatais ao federalismo».
Em Huy, cidade próxima de Wanze, os alunos são formados da mesma forma. No Athénée Royal, os alunos do último ano do secundário de Marie-Henriette Bekaert-Medart traem o carácter lapidar dos seus conhecimentos sobre o país. É certo que todos os vinte e um alunos conhecem o hino francês (A Marselhesa), mas só um deles é capaz de entoar La Brabançonne, o hino nacional da Bélgica. René comenta: «Estamos mais ligados a França, mesmo culturalmente. Isso não me chateia, mas é pena que não haja uma verdadeira identidade belga». Este aluno é o único a conseguir explicar o que é a “questão monárquica” [9], mas em contrapartida os seus colegas sabem, por terem agora percorrido nas aulas o capítulo sobre a história belga, que o socialista valão Jules Destrée interpelou o rei, em 1912, dizendo-lhe: «Majestade, não existem belgas».
Cerca de um século mais tarde, o diário flamengo De Morgen [10] faz a mesma constatação ao comentar uma sondagem: «Os flamengos e os valões têm perspectivas diferentes sobre quase tudo: a posição em relação à extrema‑direita, a proibição de fumar nos cafés, etc.» Na turma da professora Bekaert-Medart, só uma aluna se considera valã. E os outros? Ouvem-se risinhos quase embaraçados. «Belgas? Sim, porque não...» De qualquer modo, Céline não sente que a história belga lhe diga respeito: «Realmente, não me sinto belga».
Os jovens alunos valões preferem mergulhar na história de França ou de Inglaterra, aos seus olhos mais prestigiosas e importantes. Face a estas potências europeias, a Bélgica permanece invisível, apenas murmurada. Já não é tempo de estudar os grandes artistas ou personalidades belgas; é tempo de manter um baixo perfil.
Para os alunos de Huy, a Flandres histórica continua a ser algo nebulosa, enquanto a Flandres contemporânea é muitas vezes reduzida à Costa ou ao Jardim Zoológico de Antuérpia. Os prestigiados estilistas de Antuérpia, a beleza de Bruges, o novo rock flamengo (e hoje também valão) são recordados. Confessar quase nunca pôr os pés na Flandres não os impede de terem uma opinião, fortemente orientada, sobre os seus vizinhos. Para Aurélie, que apesar de tudo participou, há quatro anos, numa viagem linguística ao Norte do país (mas já não se lembra onde!), «quando vamos à Flandres temos a impressão de sermos um animal estranho».
Alexandre sustenta que «o flamengo é recto, mais normal que o valão. Gosta menos de festas, mas é mais respeitador que o valão. E é assíduo». E afirma, ao abordar a questão do racismo: «Os números estão aí. Basta ver os resultados das eleições: o Vlaams Belang obteve 25 por cento dos votos nas últimas eleições regionais na Flandres».
Os preconceitos perduram muito tempo, assinala La Libre Belgique [11] ao esmiuçar os resultados das numerosas sondagens realizadas por ocasião do 175º aniversário do país. «Os francófonos consideram que os flamengos, globalmente, são egoístas, orgulhosos, austeros, mas também corajosos, bons gestores e criativos». Paradoxalmente, o diário constata também que, no mesmo inquérito, os flamengos se consideram menos rigorosos e criativos, mas mais negligentes que os francófonos... «Vê-se cada coisa! Com estes resultados, que parecem de tal forma contrários às ideias que tínhamos, esta sondagem confirma uma das grandes características da Bélgica: o surrealismo».
Guido Fonteyn, ex-correspondente do jornal flamengo De Standaard, da Valónia, vê nestes olhares cruzados os traços da própria história de cada região: «A Valónia é o produto da grande indústria (minas de carvão, siderurgia) e a Flandres é o produto de uma tradição católica e essencialmente agrícola. Mas, em grande medida, estas características mudaram. Infelizmente, os preconceitos demoram mais tempo a desaparecer, apesar de os traços de carácter dos valões e dos flamengos não serem geneticamente estabelecidos, antes se alterarem permanentemente».
Desempenhando o papel de ecrã cultural, os problemas de língua contribuem grandemente para esta ignorância mútua. A Bélgica, ao conferir ao ensino um pendor cada vez mais comunitarista, não aproveitou a fantástica possibilidade ao seu dispor de instruir a população numa dupla cultura. Perdeu o desafio do bilinguismo, ou até do trilinguismo [12].
Ainda assim, nas escolas flamengas o francês é obrigatório, como segunda língua, durante uma grande parte da escolaridade. Já na comunidade francesa, os alunos podem escolher entre o flamengo, o inglês e o alemão. No fim dos seus estudos, poucos são os jovens que falam as duas principais línguas do país. Mas será isso afinal importante quando – em Kruibeke como em Wanze – não é necessário dominar as duas línguas para encontrar trabalho? Será assim tão importante quando se vive numa espécie de autarcia linguística?
Guido Fonteyn considera que sempre existiram dois tipos de vida quotidiana na Bélgica, um flamengo e o outro valão. Director do Centro de Política Comparada da Universidade Católica Flamenga de Lovaina-a-Nova (UCL), Lieven De Winter introduz alguns matizes: «São mais as diferenças entre os flamengos e os holandeses, ou entre os franceses e os valões, que entre os valões e os flamengos. Apesar de tudo, existem dois sistemas de ensino, dois mundos mediáticos paralelos, etc. São poucos os encontros entre francófonos e flamengos, com excepção do que acontece em Bruxelas, na Costa e nas Ardenas valona» [13].
Na Valónia, fora dos percursos turísticos mais importantes, quase não existem vestígios do flamengo. A cidade de Huy propõe aos seus visitantes vindos do Norte folhetos nessa língua, mas a única indicação que os flamengos poderão ler na sua língua no Castelo de Moha, local turístico no território de Wanze, é a que diz «proibido retirar pedras sob pena de processo judicial». Nos vestígios do Castelo de Rupelmonde, no território de Kruibeke, só se aprenderá que o geógrafo flamengo Mercator (Rupelmonde 1512 – Duisburgo 1594) foi aprisionado no local se se souber ler flamengo. Felizmente, uma ou duas brochuras em francês virão em auxílio do turista vindo de França ou da Valónia que passe pelo gabinete de turismo local...
Também a imprensa é exclusivamente unilingue: «Nunca houve qualquer jornal bilingue na Bélgica, ao contrário do que aconteceu na Suíça ou no Luxemburgo. O bilinguismo nunca existiu na Bélgica», observa Guido Fonteyn. Tal como não existe comunicação social bilingue, também quase não existem leitores bilingues. «Só 3 por cento das pessoas lêem a imprensa da outra comunidade», acrescenta De Winter.
Não basta querer ler “a outra” imprensa, é ainda necessário encontrá-la... Na livraria de Kruibeke, o único jornal francófono disponível nas bancas é o tablóide La Dernière Heure/Les Sports. E, mesmo assim, só à segunda‑feira, por causa dos resultados desportivos. Em Wanze é possível encontrar dois exemplares do diário popular flamengo Het Laatste Nieuws, mas ninguém ou quase ninguém os compra. Além de que, à medida que se deixa para trás o centro da comuna, a situação torna-se absurda. A Librairie de la Presse não apresenta um único jornal flamengo: «E no entanto já os pedi», esclarece o seu responsável. «Mas o editor não vê o interesse de os distribuir aqui... Há dois anos tentei arranjar palavras‑cruzadas em flamengo para uma cliente bilingue, mas ainda estou à espera delas. Em contrapartida, tenho revistas inglesas, americanas e alemãs. Não consigo encontrar o jornal flamengo De Morgen, que é vendido a vinte quilómetros daqui, na Flandres, mas se quiserem comprar o El País, não há qualquer problema, eu encomendo-o...»
Os canais televisivos participam igualmente na construção destas divisões identitárias. Tanto no Norte como no Sul do país, muitas vezes só se debruçam sobre a outra comunidade e os seus representantes no caso de um dossiê simbólico, anedótico, ou “nacional”, e ainda assim com o risco de cederem com facilidade aos lugares comuns e às generalidades.
O canal privado flamengo VTM, lançado em 1989, contribuiu incontestavelmente para forjar um poderoso sentimento identitário, graças a programas centrados na cultura flamenga e no fenómeno dos Bekende Vlamingen (“Flamengos conhecidos”), desde então retomado por todos os canais flamengos. O resultado é que na Flandres os canais holandeses já quase não são vistos.
REINVENTAR UMA FORMA DE IDENTIDADE NACIONAL
No Sul do país, em contrapartida, este tipo de programa nunca arrastou multidões. As “estrelas” francófonas do pequeno e do grande ecrã preferem “escalar” até Paris. Além disso, a concorrência dos canais franceses (TF1, France 2, France 3) é particularmente forte. Regularmente, estes canais atraem mais de um terço dos telespectadores francófonos belgas. Nestas condições, torna-se difícil construir uma identidade local tão forte como na Flandres.
Em termos culturais, a Bélgica é um país manifestamente dotado de duas identidades. Duas? Ou sete, ou quinze? Serão a Flandres e a Valónia assim tão homogéneas? Serão semelhantes os carolíngios, os liegenses e os luxemburgueses? Não existirão diferenças entre o Limburgo e a Flandres Ocidental? Alguns falam de uma distinção Norte-Sul, mas também Este‑Oeste. Se se acabar com a solidariedade económica e as trocas culturais entre valões e flamengos, por que razão mantê-las entre os habitantes de Limburgo e de Bruges, entre os de Mons e os de Spa? Não é tanto o projecto “Bélgica” que antagoniza as identidades quanto a ausência de projecto...
Marc Reynebeau, editorialista do diário flamengo De Standaard e autor do livro Le Rêve de la Flandre ou les aléas de l’histoire [14] põe em causa esta falta de perspectiva pala o país: «A Constituição belga não faz qualquer referência a qual seria exactamente o objectivo perseguido pelo modelo federalista. É por isso que a dinâmica política do país se vê dominada quase fatalmente por um movimento de desfederalização, cujo efeito é uma contínua elisão do Estado central». «O federalismo belga não é um modelo de coabitação, mas de dissociação», conclui De Winter.
Assim, se o país parece estar a desagregar-se, isso resulta mais da vontade política de uma parte das suas elites do que de uma forte divergência entre as suas populações. Num momento de viragem da sua história, a Bélgica poderá estar confrontada com uma última oportunidade de reinventar uma forma de identidade nacional. Esta não se apoiaria no orgulho, na bandeira ou na nação, mas numa nacionalidade ligeira, feita de sentimentos e qualidades simples, capaz de combinar as diferentes identidades dos seus habitantes sem que uma delas fagocite as outras.
Quando se vai ao Hall Omnisport de Wanze, é-se recebido por um cartaz colocado na porta de entrada: «Estão proibidos de entrar no hall patins, bicicletas e batatas fritas». Auto‑derisão ou surrealismo no quotidiano? A Bélgica sempre existe...
[1] As regiões flamenga, valona e a região bilingue Bruxelas-Capital; as comunidades flamenga, francesa (Valónia‑Bruxelas) e germanófona. A Bélgica tem três línguas oficiais: francês, flamengo e alemão. Todas as regiões são unilingues, com excepção da região de Bruxelas-Capital.
[2] Olivier Bailly e Michaël Sephiha, A união federal faz a força, Le Monde diplomatique, Junho 2005.
[3] Entrevista ao De Morgen, Bruxelas, 5 de Fevereiro de 2005.
[4] La Libre Belgique, Bruxelas, 2 de Maio de 2005.
[5] Wanze pode ser classificada como uma circunscrição (comuna) “média”. A cidade tem 12.500 habitantes, repartidos por uma superfície de 44 km2. O rendimento médio anual por habitante é de 23.867 euros e a taxa de desemprego é de 12,5 por cento, segundo as estatísticas da União das Cidades e Comunas (Union des villes et communes, UVC) da Valónia.
[6] La Libre Belgique, 21 de Março de 2005.
[7] Kruibeke tem cerca de 15.000 habitantes, em 34 km2. O rendimento anual médio por habitante era de 24.414 euros em 2001, e a taxa de desemprego de 3,49 por cento, segundo as estatísticas da Vereniging van Vlaamse Steden en Gemeenten (VVSG), o equivalente flamengo da UVC, e do banco Dexia.
[8] Novo nome do Vlaams Blok.
[9] Em 1950, os belgas foram convidados a exprimir-se por referendo – pela primeira e única vez – sobre o regresso do exílio do rei Leopoldo III. O soberano era criticado por uma atitude insuficientemente clara durante a Ocupação. O “sim” venceu com 57,68 por cento, mas com grandes disparidades regionais: a Flandres votou em massa a favor do regresso, enquanto a Valónia e Bruxelas se opuseram. Este episódio é conhecido na Bélgica como a “questão monárquica”. Ler também Serge Govaert, Quasi-guerre civile autour de la “question royale” (1950) [ed. brasileira: A “questão real”], Le Monde diplomatique, Outubro de 2002.
[10] 23 de Dezembro de 2004.
[11] 11 de Abril de 2005.
[12] A comunidade germanófona tem cerca de 71.000 habitantes.
[13] Na região bilingue de Bruxelas-Capital as duas comunidades tomaram consciência da sua particularidade bruxelense e, a nível cultural, trabalham cada vez mais frequentemente juntas.
[14] Marc Reynebeau, Le rêve de la Flandre ou les aléas de l’histoire, La Renaissance du livre, Bruxelas, 2002.
Olivier Bailly, Michaël Sephiha
Le Monde diplomatique
http://infoalternativa.org/europa/e051.htm
Bem conhecida pelos seus surrealistas, a Bélgica pratica no quotidiano esta corrente artística. Um dos principais eixos rodoviários do país, a auto-estrada E40, namora com a fronteira linguística que separa a Flandres da Valónia. Tendo o bilinguismo sido maciçamente adoptado pelas duas comunidades, seria lógico que fosse aí aceite, mas não é assim. Os cartazes da campanha de segurança rodoviária tanto surgem em flamengo como em francês, de acordo com a região em que estão implantados. Ao longo da E40, a cidade flamenga “Tienen” passa a ser “Tirlement” na região valona, e a cidade da Valónia “Waremme” passa a ser indicada com o nome “Borzworm” na região flamenga. Desconcertado por estes nomes que mudam de quinze em quinze quilómetros, o automobilista não prevenido que abandone a auto-estrada para encontrar algum reconforto nas estradas regionais deverá saber de que lado se encontra. É que nas estradas regionais flamengas a regra são os 70 quilómetros por hora, mas os valões concedem um suplemento de 20 quilómetros por hora para o mesmo tipo de via. Estranho? A história da Bélgica e o seu comboio federalista seguem também uma via rápida...
Desde 1993, a Bélgica é um Estado federal composto por três regiões e três comunidades linguísticas [1]. Esta estrutura resulta de um avanço regular, desde 1970, da descentralização [2]. A dinâmica foi levada muito longe porque – caso excepcional – as entidades federadas têm o poder de assinar tratados internacionais em matérias ligadas às suas competências institucionais. Mas isso não parece ser ainda suficiente. Um crescente número de responsáveis políticos flamengos reclama mais autonomia e, alguns mais extremados, até a independência.
Durante muito tempo, os apelos ao separatismo emanavam apenas da Flandres mas, desde há pouco tempo, os valões brandem o espectro da separação. «Os francófonos estão fartos de ser constantemente apresentados como beneficiados que impedem uma gestão eficaz do país. Temos a impressão de já não sermos completamente aceites (...). Se há uma maioria de flamengos que quer viver sem os francófonos, então também temos que nos perguntar se faz sentido vivermos juntos», explica Béatrice Delvaux, chefe de redacção do diário francófono Le Soir [3]. O mesmo espírito reina entre alguns responsáveis políticos francófonos. Jean-Claude Van Cauwenberghe, o ministro-presidente valão (do PS), declarava assim no início de Maio que «a Valónia não vai aceitar seja o que for, nem defenderá a Bélgica a qualquer preço» [4]. O semanário francófono Le Vif/L’Express, compromete-se ainda mais: num dossiê intitulado “E se os flamengos nos abandonassem?”, considera que «chegará o dia em que francófonos e flamengos terão que dividir entre si as jóias da antiga Bélgica». Todos os estados-maiores políticos examinam os cenários de um futuro sem a Bélgica. E, se se folhear a imprensa, o país assemelha-se a um barril de pólvora no coração da Europa. A realidade é, contudo, muito diferente.
Terça-feira, 22 de Março, Grand Place de Wanze [5] na Valónia. Sob o olhar dos pais, várias crianças fruem a praça convertida em área de jogos, enquanto os mais velhos experimentam o skateboard, a BTT [bicicleta de todo o terreno] ou o namoro... A voz das Cassandras não parece ter chegado até aqui. No entanto, em linha recta, a Flandres fica a apenas vinte e cinco quilómetros. «A tensão entre as duas comunidades não existe. Há um respeito cidadão mútuo», assegura Claude Parmentier, burgomestre (autarca) socialista de Wanze. «Por causa de uma data eleitoral ou de uma sondagem, posso ser interpelado sobre a extrema-direita, mas não sobre os flamengos. Não sinto a rejeição dos flamengos. Estou convencido de que as pessoas não se preocupam com problemas comunitários.»
Instalados num banco, Bastien e Robert, ambos de 15 anos, aproveitam os raios de sol. Não conhecem realmente a Flandres. Robert passa férias na costa belga – “a costa flamenga”, dirão os flaminguistas... –, mas não contacta com a população local. Diga-se, aliás, que os dois amigos não estão muito informados sobre a Bélgica, a sua história, os seus costumes políticos, a sua cultura, os seus artistas. Mas nem por isso deixam de se opor ao estilhaçamento do seu país. «A Bélgica já não é muito grande; se a separarem vai‑se tornar minúscula», brinca Robert. Um pouco mais a sério, Bastien teme que, «se se dividir o país em dois, possam surgir conflitos...»
Este sentimento está muito generalizado na população belga. De acordo com uma sondagem, realizada em Março de 2004 pelo diário La Libre Belgique, 87 por cento das pessoas inquiridas desejam uma Bélgica unida, sendo a percentagem mais ou menos idêntica em Bruxelas, na Valónia e na Flandres [6]. Quando se ultrapassa esta questão genérica surgem todavia divergências sobre o “como viver em conjunto?”, reclamando uma maioria de flamengos mais competências a nível regional. Mas isto nada tem a ver com uma reivindicação separatista. «Os flamengos não defendem a independência da Flandres, mesmo que haja diferenças entre as mentalidades do Norte e do Sul», assegura Myriam Claes, proprietária do único jardim infantil privado de Kruibeke. Situado a algumas dezenas de quilómetros de Antuérpia, esta comunidade flamenga é a equivalente de Wanze, a valona [7]. E, com efeito, as mentalidades parecem ser diferentes...
Enquanto Wanze, com o seu colégio comunal (conselho municipal) totalmente socialista, ilustra a força do PS na Valónia, a flamenga Kruibeke confirma a imagem católica do Norte da Bélgica. Enquanto em Wanze a igreja está claramente separada da praça comunal, em Kruibeke ela pontifica no meio da comunidade. Durante a muito mediatizada agonia do papa João Paulo II, o município de Kruibeke ostentava as bandeiras da cidade e da Flandres; mas em frente da casa do burgomestre podia ver-se a meia-haste a bandeira do Vaticano... A igreja é rodeada pela mutualidade cristã, o sindicato cristão, a casa comunal (câmara municipal) e o presbitério. Também ali é bem visível a bandeira do Vaticano. Para concluir a osmose entre a comuna e a sua igreja, os anúncios de licença de construção são colocados nos painéis de afixação do edifício religioso. «Mas poucos são os que vão à igreja», lamenta Antoine Denert, burgomestre da comuna desde 1983.
«Pessoalmente, não tenho nada contra os valões», prossegue este cristão convicto, que se define como flaminguista e nacionalista flamengo. «Quando recebo a visita de colegas valões, hasteio uma bandeira valona. Na Valónia não fariam o mesmo, mas eu sou um extremista em tolerância», repete com prazer. No entanto, o burgomestre de Kruibeke assume de bom grado o slogan do partido de extrema-direita, o Vlaams Belang [8]: «Eigen Volk Eerst» (O nosso povo em primeiro lugar). «Não tenho nenhum problema com isso. Tem que se começar por ser forte antes de ajudar os outros. A Valónia tem outra mentalidade e outra cultura. Os valões abordam os problemas de um modo diferente e fixam outras prioridades. Ao nível da gestão, por exemplo, somos mais rigorosos na Flandres». É evidente que não veria com maus olhos a independência da “sua” Flandres.
Em Wanze, Parmentier coloca também em primeiro plano a sua identidade, valona, mas defende a unidade da Bélgica. «Sou favorável a um federalismo bem concebido, que respeite as concepções e as diferentes culturas. Mas o separatismo é uma má ideia». Apesar disso, na brochura que envia aos habitantes de Wanze recentemente instalados na sua comuna, a cidade é descrita como estando inserida «no coração da região de Liège, da Valónia e da Europa». Assim sendo, não existirá já entre a Valónia e a Europa um espaço político intermédio?
«MAJESTADE, NÃO EXISTEM BELGAS»
O esquecimento deste folheto comunal não traduz uma vontade de negar a Bélgica, mas revela a fraca ligação à identidade belga. Se, na Flandres como na Valónia, cada um conhece a sua aldeia, a cidade vizinha, a sua província, ou até a sua região, já o desconhecimento da outra comunidade é cada vez mais flagrante.
Kevin, de 16 anos, e Christophe, de 15 anos, frequentam as aulas no Athénée Royal de Beveren, a primeira grande cidade na vizinhança de Kruibeke. Não conhecem um único cantor belga francófono, não têm amigos ou conhecidos na Válonia, onde nunca ou raramente se deslocam por sua iniciativa. Pieter, de 15 anos, vai de vez em quando visitar a família a Virton (Ardenas), onde frequentemente tem que utilizar o inglês com os habitantes, «senão ninguém se entende». Veja-se por fim o caso de Annelies, de 18 anos, que afirma ir por vezes à Valónia, a um povoado que situa perto de... Marselha!
Apesar das lacunas no conhecimento da Valónia e dos valões, nem um destes jovens cai no ódio do outro. Se estão de acordo em reconhecer, ou até em sublinhar, as singularidades dos dois povos, os valões nem por isso seriam “preguiçosos”, nem “exploradores” – preconceitos ainda recentemente veiculados pelo Nieuw‑Vlaamse Alliantie (N-VA), partido nacionalista no poder na Flandres, em associação com os cristãos flamengos. Todos sustentam que a Bélgica deve permanecer unida, o que é quase surpreendente se se pensar que ao longo de toda a escolaridade nunca aprenderam grande coisa sobre o seu país. Flor Van Gheem, director-geral do Athénée Royal de Beveren, admite-o com facilidade: «O capítulo sobre a Bélgica só surge no último ano do ensino secundário. Durante alguns meses, os alunos têm aulas sobre a história da Bélgica, nas quais é apresentada detalhadamente a história da Flandres e a evolução do movimento flamengo a partir da Segunda Guerra Mundial, bem como a história da Valónia. As aulas incidem por fim nas reformas do Estado, das estruturas estatais ao federalismo».
Em Huy, cidade próxima de Wanze, os alunos são formados da mesma forma. No Athénée Royal, os alunos do último ano do secundário de Marie-Henriette Bekaert-Medart traem o carácter lapidar dos seus conhecimentos sobre o país. É certo que todos os vinte e um alunos conhecem o hino francês (A Marselhesa), mas só um deles é capaz de entoar La Brabançonne, o hino nacional da Bélgica. René comenta: «Estamos mais ligados a França, mesmo culturalmente. Isso não me chateia, mas é pena que não haja uma verdadeira identidade belga». Este aluno é o único a conseguir explicar o que é a “questão monárquica” [9], mas em contrapartida os seus colegas sabem, por terem agora percorrido nas aulas o capítulo sobre a história belga, que o socialista valão Jules Destrée interpelou o rei, em 1912, dizendo-lhe: «Majestade, não existem belgas».
Cerca de um século mais tarde, o diário flamengo De Morgen [10] faz a mesma constatação ao comentar uma sondagem: «Os flamengos e os valões têm perspectivas diferentes sobre quase tudo: a posição em relação à extrema‑direita, a proibição de fumar nos cafés, etc.» Na turma da professora Bekaert-Medart, só uma aluna se considera valã. E os outros? Ouvem-se risinhos quase embaraçados. «Belgas? Sim, porque não...» De qualquer modo, Céline não sente que a história belga lhe diga respeito: «Realmente, não me sinto belga».
Os jovens alunos valões preferem mergulhar na história de França ou de Inglaterra, aos seus olhos mais prestigiosas e importantes. Face a estas potências europeias, a Bélgica permanece invisível, apenas murmurada. Já não é tempo de estudar os grandes artistas ou personalidades belgas; é tempo de manter um baixo perfil.
Para os alunos de Huy, a Flandres histórica continua a ser algo nebulosa, enquanto a Flandres contemporânea é muitas vezes reduzida à Costa ou ao Jardim Zoológico de Antuérpia. Os prestigiados estilistas de Antuérpia, a beleza de Bruges, o novo rock flamengo (e hoje também valão) são recordados. Confessar quase nunca pôr os pés na Flandres não os impede de terem uma opinião, fortemente orientada, sobre os seus vizinhos. Para Aurélie, que apesar de tudo participou, há quatro anos, numa viagem linguística ao Norte do país (mas já não se lembra onde!), «quando vamos à Flandres temos a impressão de sermos um animal estranho».
Alexandre sustenta que «o flamengo é recto, mais normal que o valão. Gosta menos de festas, mas é mais respeitador que o valão. E é assíduo». E afirma, ao abordar a questão do racismo: «Os números estão aí. Basta ver os resultados das eleições: o Vlaams Belang obteve 25 por cento dos votos nas últimas eleições regionais na Flandres».
Os preconceitos perduram muito tempo, assinala La Libre Belgique [11] ao esmiuçar os resultados das numerosas sondagens realizadas por ocasião do 175º aniversário do país. «Os francófonos consideram que os flamengos, globalmente, são egoístas, orgulhosos, austeros, mas também corajosos, bons gestores e criativos». Paradoxalmente, o diário constata também que, no mesmo inquérito, os flamengos se consideram menos rigorosos e criativos, mas mais negligentes que os francófonos... «Vê-se cada coisa! Com estes resultados, que parecem de tal forma contrários às ideias que tínhamos, esta sondagem confirma uma das grandes características da Bélgica: o surrealismo».
Guido Fonteyn, ex-correspondente do jornal flamengo De Standaard, da Valónia, vê nestes olhares cruzados os traços da própria história de cada região: «A Valónia é o produto da grande indústria (minas de carvão, siderurgia) e a Flandres é o produto de uma tradição católica e essencialmente agrícola. Mas, em grande medida, estas características mudaram. Infelizmente, os preconceitos demoram mais tempo a desaparecer, apesar de os traços de carácter dos valões e dos flamengos não serem geneticamente estabelecidos, antes se alterarem permanentemente».
Desempenhando o papel de ecrã cultural, os problemas de língua contribuem grandemente para esta ignorância mútua. A Bélgica, ao conferir ao ensino um pendor cada vez mais comunitarista, não aproveitou a fantástica possibilidade ao seu dispor de instruir a população numa dupla cultura. Perdeu o desafio do bilinguismo, ou até do trilinguismo [12].
Ainda assim, nas escolas flamengas o francês é obrigatório, como segunda língua, durante uma grande parte da escolaridade. Já na comunidade francesa, os alunos podem escolher entre o flamengo, o inglês e o alemão. No fim dos seus estudos, poucos são os jovens que falam as duas principais línguas do país. Mas será isso afinal importante quando – em Kruibeke como em Wanze – não é necessário dominar as duas línguas para encontrar trabalho? Será assim tão importante quando se vive numa espécie de autarcia linguística?
Guido Fonteyn considera que sempre existiram dois tipos de vida quotidiana na Bélgica, um flamengo e o outro valão. Director do Centro de Política Comparada da Universidade Católica Flamenga de Lovaina-a-Nova (UCL), Lieven De Winter introduz alguns matizes: «São mais as diferenças entre os flamengos e os holandeses, ou entre os franceses e os valões, que entre os valões e os flamengos. Apesar de tudo, existem dois sistemas de ensino, dois mundos mediáticos paralelos, etc. São poucos os encontros entre francófonos e flamengos, com excepção do que acontece em Bruxelas, na Costa e nas Ardenas valona» [13].
Na Valónia, fora dos percursos turísticos mais importantes, quase não existem vestígios do flamengo. A cidade de Huy propõe aos seus visitantes vindos do Norte folhetos nessa língua, mas a única indicação que os flamengos poderão ler na sua língua no Castelo de Moha, local turístico no território de Wanze, é a que diz «proibido retirar pedras sob pena de processo judicial». Nos vestígios do Castelo de Rupelmonde, no território de Kruibeke, só se aprenderá que o geógrafo flamengo Mercator (Rupelmonde 1512 – Duisburgo 1594) foi aprisionado no local se se souber ler flamengo. Felizmente, uma ou duas brochuras em francês virão em auxílio do turista vindo de França ou da Valónia que passe pelo gabinete de turismo local...
Também a imprensa é exclusivamente unilingue: «Nunca houve qualquer jornal bilingue na Bélgica, ao contrário do que aconteceu na Suíça ou no Luxemburgo. O bilinguismo nunca existiu na Bélgica», observa Guido Fonteyn. Tal como não existe comunicação social bilingue, também quase não existem leitores bilingues. «Só 3 por cento das pessoas lêem a imprensa da outra comunidade», acrescenta De Winter.
Não basta querer ler “a outra” imprensa, é ainda necessário encontrá-la... Na livraria de Kruibeke, o único jornal francófono disponível nas bancas é o tablóide La Dernière Heure/Les Sports. E, mesmo assim, só à segunda‑feira, por causa dos resultados desportivos. Em Wanze é possível encontrar dois exemplares do diário popular flamengo Het Laatste Nieuws, mas ninguém ou quase ninguém os compra. Além de que, à medida que se deixa para trás o centro da comuna, a situação torna-se absurda. A Librairie de la Presse não apresenta um único jornal flamengo: «E no entanto já os pedi», esclarece o seu responsável. «Mas o editor não vê o interesse de os distribuir aqui... Há dois anos tentei arranjar palavras‑cruzadas em flamengo para uma cliente bilingue, mas ainda estou à espera delas. Em contrapartida, tenho revistas inglesas, americanas e alemãs. Não consigo encontrar o jornal flamengo De Morgen, que é vendido a vinte quilómetros daqui, na Flandres, mas se quiserem comprar o El País, não há qualquer problema, eu encomendo-o...»
Os canais televisivos participam igualmente na construção destas divisões identitárias. Tanto no Norte como no Sul do país, muitas vezes só se debruçam sobre a outra comunidade e os seus representantes no caso de um dossiê simbólico, anedótico, ou “nacional”, e ainda assim com o risco de cederem com facilidade aos lugares comuns e às generalidades.
O canal privado flamengo VTM, lançado em 1989, contribuiu incontestavelmente para forjar um poderoso sentimento identitário, graças a programas centrados na cultura flamenga e no fenómeno dos Bekende Vlamingen (“Flamengos conhecidos”), desde então retomado por todos os canais flamengos. O resultado é que na Flandres os canais holandeses já quase não são vistos.
REINVENTAR UMA FORMA DE IDENTIDADE NACIONAL
No Sul do país, em contrapartida, este tipo de programa nunca arrastou multidões. As “estrelas” francófonas do pequeno e do grande ecrã preferem “escalar” até Paris. Além disso, a concorrência dos canais franceses (TF1, France 2, France 3) é particularmente forte. Regularmente, estes canais atraem mais de um terço dos telespectadores francófonos belgas. Nestas condições, torna-se difícil construir uma identidade local tão forte como na Flandres.
Em termos culturais, a Bélgica é um país manifestamente dotado de duas identidades. Duas? Ou sete, ou quinze? Serão a Flandres e a Valónia assim tão homogéneas? Serão semelhantes os carolíngios, os liegenses e os luxemburgueses? Não existirão diferenças entre o Limburgo e a Flandres Ocidental? Alguns falam de uma distinção Norte-Sul, mas também Este‑Oeste. Se se acabar com a solidariedade económica e as trocas culturais entre valões e flamengos, por que razão mantê-las entre os habitantes de Limburgo e de Bruges, entre os de Mons e os de Spa? Não é tanto o projecto “Bélgica” que antagoniza as identidades quanto a ausência de projecto...
Marc Reynebeau, editorialista do diário flamengo De Standaard e autor do livro Le Rêve de la Flandre ou les aléas de l’histoire [14] põe em causa esta falta de perspectiva pala o país: «A Constituição belga não faz qualquer referência a qual seria exactamente o objectivo perseguido pelo modelo federalista. É por isso que a dinâmica política do país se vê dominada quase fatalmente por um movimento de desfederalização, cujo efeito é uma contínua elisão do Estado central». «O federalismo belga não é um modelo de coabitação, mas de dissociação», conclui De Winter.
Assim, se o país parece estar a desagregar-se, isso resulta mais da vontade política de uma parte das suas elites do que de uma forte divergência entre as suas populações. Num momento de viragem da sua história, a Bélgica poderá estar confrontada com uma última oportunidade de reinventar uma forma de identidade nacional. Esta não se apoiaria no orgulho, na bandeira ou na nação, mas numa nacionalidade ligeira, feita de sentimentos e qualidades simples, capaz de combinar as diferentes identidades dos seus habitantes sem que uma delas fagocite as outras.
Quando se vai ao Hall Omnisport de Wanze, é-se recebido por um cartaz colocado na porta de entrada: «Estão proibidos de entrar no hall patins, bicicletas e batatas fritas». Auto‑derisão ou surrealismo no quotidiano? A Bélgica sempre existe...
[1] As regiões flamenga, valona e a região bilingue Bruxelas-Capital; as comunidades flamenga, francesa (Valónia‑Bruxelas) e germanófona. A Bélgica tem três línguas oficiais: francês, flamengo e alemão. Todas as regiões são unilingues, com excepção da região de Bruxelas-Capital.
[2] Olivier Bailly e Michaël Sephiha, A união federal faz a força, Le Monde diplomatique, Junho 2005.
[3] Entrevista ao De Morgen, Bruxelas, 5 de Fevereiro de 2005.
[4] La Libre Belgique, Bruxelas, 2 de Maio de 2005.
[5] Wanze pode ser classificada como uma circunscrição (comuna) “média”. A cidade tem 12.500 habitantes, repartidos por uma superfície de 44 km2. O rendimento médio anual por habitante é de 23.867 euros e a taxa de desemprego é de 12,5 por cento, segundo as estatísticas da União das Cidades e Comunas (Union des villes et communes, UVC) da Valónia.
[6] La Libre Belgique, 21 de Março de 2005.
[7] Kruibeke tem cerca de 15.000 habitantes, em 34 km2. O rendimento anual médio por habitante era de 24.414 euros em 2001, e a taxa de desemprego de 3,49 por cento, segundo as estatísticas da Vereniging van Vlaamse Steden en Gemeenten (VVSG), o equivalente flamengo da UVC, e do banco Dexia.
[8] Novo nome do Vlaams Blok.
[9] Em 1950, os belgas foram convidados a exprimir-se por referendo – pela primeira e única vez – sobre o regresso do exílio do rei Leopoldo III. O soberano era criticado por uma atitude insuficientemente clara durante a Ocupação. O “sim” venceu com 57,68 por cento, mas com grandes disparidades regionais: a Flandres votou em massa a favor do regresso, enquanto a Valónia e Bruxelas se opuseram. Este episódio é conhecido na Bélgica como a “questão monárquica”. Ler também Serge Govaert, Quasi-guerre civile autour de la “question royale” (1950) [ed. brasileira: A “questão real”], Le Monde diplomatique, Outubro de 2002.
[10] 23 de Dezembro de 2004.
[11] 11 de Abril de 2005.
[12] A comunidade germanófona tem cerca de 71.000 habitantes.
[13] Na região bilingue de Bruxelas-Capital as duas comunidades tomaram consciência da sua particularidade bruxelense e, a nível cultural, trabalham cada vez mais frequentemente juntas.
[14] Marc Reynebeau, Le rêve de la Flandre ou les aléas de l’histoire, La Renaissance du livre, Bruxelas, 2002.
Olivier Bailly, Michaël Sephiha
Le Monde diplomatique
http://infoalternativa.org/europa/e051.htm
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