quinta-feira, novembro 23, 2006

Ocupados a manipularem a sua dignidade

Víctor Jara, o grande cantor de baladas chileno que há 33 anos foi torturado até à morte pelo regime do general Pinochet, escreveu uma canção que ridiculariza aqueles que se vêem a si próprios como racionais e liberais, e contudo muito frequentemente se abrigam nos braços da autoridade, pouco importando a sua desonestidade e brutalidade para com os outros. Ele cantou:

«Chegue-se mais para cá
Aqui onde o sol aquece
Se você já está habituado
A andar às cambalhotas,
não lhe fará mal nenhum
estar onde a vida é fogo.

Você não é nada
Nem carne nem peixe
Passa a vida manipulando
Caramba zamba a sua dignidade.» [1]

As últimas poucas semanas assistiram a uma fiesta destas pessoas racionais e liberais que dominam a corrente principal da política britânica. Para elas, as formas mais básicas de moralidade e vergonha, da espécie que se aprende em criança, não têm lugar na vida pública. Em 27 de Setembro o Guardian publicou na primeira página uma fotografia de Tony Blair, um criminoso de guerra prima facie, com os braços estendidos e o sorriso fixado. Além disso havia um título: “Encanto e eloquência. Mas uma oportunidade falhada”. Abaixo disto, Polly Toynbee escreveu: «Havia alguns olhos húmidos tocados com lenços e homens a assoarem narizes. “Não se vá”, disse alguém».

Considere tal vómito em contraposição aos factos do crime real de Blair — a invasão não provocada de um país indefeso, justificada por mentiras agora volumosamente documentadas, e provocando as mortes violentas de dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes. A palavra “crime” é verboten [proibida] entre aqueles acerca de quem Víctor Jara cantou. Explicar claramente a verdade iluminaria a colusão de toda uma classe política.

Ao invés disso, os descarados tribunos nem-carne-nem-peixe falam e escrevem incessantemente de um “erro”, de um “disparate”, mesmo de uma tragédia shakespeareana (para o criminoso de guerra, não para as suas vítimas). A partir dos seus estúdios e gabinetes editoriais, eles declaram “brilhantes” as mentirosas e desonestas banalidades do seu imperador nu. A Al-Qaeda, disse Blair no seu discurso na conferência do Partido Trabalhista, «matou 3000 pessoas incluindo mais de 60 britânicos nas ruas de Nova Iorque antes mesmo de a guerra no Afeganistão ou no Iraque ser pensada». Fica-se sem fôlego com esta declaração. Meio milhão de crianças jazem mortas, segundo a UNICEF, devido ao bloqueio anglo-americano durante a década de 1990. Para Blair e a sua corte racional, liberal, nem-carne-nem-peixe, estas crianças nunca viveram e nunca morreram. Claramente, o Imperador Tony foi um líder do seu tempo e, acima de tudo, adequado para ser membro do clube, quaisquer que possam ser os “erros” que tenha cometido no Iraque.

Um mundo paralelo de verdades e mentiras, moralidade e imoralidade, domina o modo como o crime no Iraque nos é apresentado. Nos últimos meses, os invasores dissiparam-se. Os EUA, tendo assassinado, bombardeado com armas de fragmentação, napalm e fósforo, tornaram-se agora um sábio árbitro, até mesmo um protector, de “tribos guerreiras”. A palavra-chave é “sectarismo”, apagando a verdade de que a maior parte dos ataques da resistência é contra os ocupantes militares estrangeiros: em média, um a cada 15 minutos [2]. Que a maioria dos iraquianos, sunitas e xiitas, estão unidos na sua exigência de que as forças estadunidenses e britânicas saiam do seu país já é de nenhum interesse. Terá o jornalismo alguma vez sido tão voluntariamente apropriado pela propaganda negra?

A confiança no regime Blair de que esta propaganda lhes fará justiça (se não reelegê­‑los) exprime-se de modos gritantes. O antigo ministro dos negócios estrangeiros Jack Straw, o exemplo acabado do nem-peixe­‑nem-carne, que apoiou um ataque de corsários a um país muçulmano, aponta agora as suas observações liberais e racionais à mais vulnerável comunidade da Grã-Bretanha, plenamente consciente de que o sentido racista implícito nas suas palavras será entendido na “Inglaterra Média” e esperançosamente impulsionará o que resta da sua carreira desprezível. Foi Straw que deixou Pinochet escapar à justiça por razões fraudulentas de saúde mental. A canção de Victor Jara é uma ode a Straw, e ao autoritário, duplamente “aposentado” David Blunkett, agora elevado pelo Guardian à categoria de «um dos políticos mais brilhantes e naturais», numa missão para assegurar que uma forma mais elevada de corrupção, o assassínio em massa, não ofusque a “herança de Tony”.

O líder dos conservadores, David Cameron, o antigo homem de relações públicas do predador de empresas Michael Green, seguirá esta herança, caso se torne primeiro-ministro. De pé, à beira-mar em Bournemouth, com a sua família, incluindo três crianças pequenas, ele enfatizou o seu apoio ao crime contra o povo iraquiano, cujas crianças, afirma a UNICEF, estão agora a morrer mais rapidamente sob Blair e Bush do que sob Saddam Hussein.

[1] Ni chicha ni limoná, que traduzimos por “nem carne nem peixe”, pode ser escutada na rádio IA. Também pode ver no YouTube dois pequenos filmes onde Jara comenta e interpreta esse tema: aqui e aqui.
John Pilger
http://www.infoalternativa.org/autores/pilger/pilger057.htm

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