terça-feira, novembro 28, 2006

Os que estão de luto por Gemayel sabem que no Líbano nada é o que parece

Na casa de velório, um velha casa libanesa de pedra, não expuseram o corpo de Pierre Gemayel. Tinham selado a tampa – tão terrivelmente desfigurado estava o seu rosto pelas balas que o tinham matado – como se os pesadelos do Líbano pudessem assim ser mantidos na escuridão da tumba.

Mas os maronitas e os gregos ortodoxos, os drusos e – sim – os muçulmanos que vieram prestar as suas condolências à esposa de Gemayel, Patricia, e ao seu pai desfeito, Amin, choravam copiosamente ao lado do féretro coberto pela bandeira. Entendiam os horrores que poderiam suceder nos dias vindouros e a sua dignidade era uma negativa a aceitar essa possibilidade.

Em Beirute, tinha estado a observar os detectives libaneses – eles que nunca resolveram um só dos muitos assassinatos políticos do Líbano – fotografando os buracos de bala no automóvel Kia azul claro que Gemayel tinha estado a conduzir, 13 impactos através da janela do condutor, seis dos quais tinham traspassado a porta do acompanhante após atravessar a cabeça do ministro da Indústria libanês e a do seu guarda­‑costas. Mas na cidade natal da família, Bikfaya, a montanha fria com abetos, rosas fora de estação e novas bandeiras falangistas de cedros triangulares, a turba vestida de luto falava de castigo legal em lugar de vingança para os assassinos de Gemayel.

Era um momento alentador. Quem – na época da guerra civil que nos assombra novamente – teria imaginado o dia em que os drusos pudessem entrar neste lugar sacrossanto em segurança e em amizade para expressar a sua dor pela morte de um homem cujo tio Bashir era o mais feroz e brutal inimigo dos drusos?

O melhor amigo de Bashir, Massoud Ashkar, um oficial da milícia naqueles dias escuros e terríveis, falou emocionadamente da necessidade de justiça e de unidade libanesa. «Sabemos que os sírios mataram gente durante a guerra», disse­‑me. «Estamos à espera de saber quem matou o xeque Pierre. Esta gente queria recomeçar uma guerra civil. Devemos saber quem é esta gente».

Ah, mas há danação em tais esperanças. Com a tristeza daqueles que ainda esperam a recuperação quando tal possibilidade foi excluída, alguns dos cristãos locais reuniram­‑se no subúrbio Jdeideh de Beirute, onde os três assassinos dispararam contra o seu parlamentar na terça-feira à tarde. O seu automóvel, com o número de registo 201881, com a capota retorcida para cima no sítio onde tinha sido abalroada às 3:35 da tarde pelo Honda CRV dos homens armados, a parte traseira ainda incrustada na camioneta de uma empresa de materiais impermeáveis contra a qual embateu quando Gemayel morreu ao volante, foi fotografado centenas de vezes pelos polícias. Foram observados silenciosamente pelos homens e mulheres que, menos de 24 horas antes, não tinham ouvido as pistolas com silenciadores que o mataram, e que pensaram a princípio que o ministro tinha sido vítima de um acidente rodoviário. Ninguém daria o seu nome, é claro. Não se faz isso no Líbano hoje.

«Estava a dormir quando ouvi sons muito ténues, como disparos mas não suficientemente audíveis», contou­­‑me um homem de cabelo branco na varanda da velha casa de família onde tinha nascido. «Depois ouvi um embate e vários verdadeiros disparos. Levantei-me, vesti a minha roupa mas não vi nenhum homem armado. Um vizinho foi lá, voltou e contou­‑me que era o xeque Pierre, e depois vi­­­­‑o a ser carregado do seu carro coberto de sangue e colocado na traseira de uma carrinha».

Apenas umas horas antes, Pierre Gemayel tinha estado em Bikfaya, a só 200 metros de onde o seu corpo jazia ontem, honrando a ominosa estátua do seu avô – também Pierre – que tinha fundado o partido Falangista que o seu neto representava no Parlamento.

Ninguém mencionou, evidentemente, que esse mesmo velho avô Gemayel, um humilde treinador de futebol, tinha criado os falangistas como uma organização paramilitar após ser inspirado – assim ele próprio me contou antes de morrer em 1984 – pela sua visita às Olimpíadas nazis de 1936, na Alemanha de Hitler. Como habitualmente, sses detalhes incómodos tinham sido apagados há muito tempo da narrativa da história libanesa – e dos nossos relatos jornalísticos sobre a morte do neto esta semana.

Pierre Gemayel Jnr, no entanto, tinha sido um deputado sério como a testemunha da sua morte tornou claro. «Vê aquela casa acolá com os toldos?», perguntou-me. “Bom, uma senhora idosa tinha morrido lá e o xeque Pierre vinha aqui expressar as suas condolências à família». A casa da mulher falecida estava a apenas 30 metros de onde o carro de Gemayel tinha estacionado. Deve ter abrandado para virar na estrada lateral. Todos aqui sabiam que ele vinha à casa na terça-feira de manhã, assim o disseram os vizinhos, o que significava – embora eles não dissessem isso, é claro – que tinha sido traído. Os assassinos estavam à espera que o bom deputado prestasse as suas condolências, sabendo que própria família do homem estaria a receber condolências um dia mais tarde. Nem sequer usaram máscaras na cara e dispararam friamente a um comerciante que os viu.

Os libaneses têm respondido à indignação internacional sobre o assassinato de Gemayel com uma dose menor de retórica do que o presidente George Bush, cuja a promessa de «apoiar o governo de Siniora e a sua democracia» foi saudada com o escárnio que mereceu. Este, no final de contas, era o mesmo George Bush que observou em silêncio este Verão enquanto os israelitas agrediram o governo democrático de Siniora e bombardearam o Líbano durante 34 dias, matando mais de mil dos seus civis. E os libaneses sabiam o que fazer da observação de Tony Blair – ele que também atrasou um cessar­‑fogo que teria aqui salvado inúmeras vidas – quando disse que «precisamos de fazer tudo o que pudermos para proteger a democracia no Líbano». Foi um miliciano cristão há muito retirado, um rival do clã Gemayel, que o expressou sucintamente. «Eles não se importam minimamente connosco», disse.

Esse pequeno pormenor da narrativa – e quem a escreve – permaneceu problemático ontem, quando as potências ocidentais apontaram os seus dedos à Síria. Sim, todos os cinco destacados homens libaneses assassinados nos últimos 20 meses eram anti-sírios. É um pouco como dizer “foi o mordomo”. Uma Síria vingativa não atacaria a independência do Líbano assassinando um ministro? Sim. Mas então, qual seria a melhor maneira de minar o novo poder ascendente do pró­‑sírio Hezbolá, o exército guerrilheiro xiita que pediu a demissão do governo de Siniora? Matando um ministro do governo, sabendo que muitos libaneses culpariam os aliados da Síria do Hezbolá?

Vivendo no Líbano, aprende­‑se estes truques semânticos através de uma espécie de luneta. Nada aqui sucede por acaso. Mas aconteça o que acontecer, nunca é o que num primeiro momento se pensou ser. Assim o entenderam ontem os libaneses em Bikfaya quando se reuniram e falaram de unidade. Pois se tão somente os libaneses deixassem de pôr a sua fé nos estrangeiros – os estadunidenses, os israelenses, os britânicos, os iranianos, os franceses, as Nações Unidas – e em vez disso confiassem uns nos outros, fariam desaparecer os pesadelos da guerra civil selada dentro do caixão de Pierre Gemayel.
Robert Fisk
The Independent
http://www.infoalternativa.org/autores/fisk/fisk098.htm

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