Esta semana, após a defenestração de Donald Rumsfeld do controle do Pentágono, o primeiro-ministro Tony Blair admitiu, implicitamente, que a guerra no Iraque é um desastre e o ex-primeiro-ministro iraquiano Ilyad Alawi declarou temer que o país esteja em fase de desintegração. O próprio presidente Bush resolveu, enfim, ouvir uma comissão bipartidária sobre saídas possíveis para a guerra no Iraque. Talvez tarde demais... Ainda em Setembro passado, Sbigniev Brezezinski, um importante estrategista ligado ao Partido Democrata, pediu nas páginas de Der Spiegel uma mudança radical na política externa e de defesa dos Estados Unidos. Por fim, nesta semana, o notório Henry Kissinger – estrategista republicano com grande actuação nos governos Nixon e Ford – declarou ser impossível uma vitória americana no Iraque.
UMA GUERRA PARA OS MANUAIS
Quando planejou a guerra no Iraque, Donald Rumsfeld (e o seu alterego na aventura iraquiana, Paul Wolfowitz) declararam explicitamente que a nova guerra seria estudada nos manuais pelas gerações futuras. A ideia central de Rumsfeld/Wolfowitz era, em termos estritamente militares, superar, de um lado, a chamada “Síndrome do Vietname” e, de outro, mostrar que o imenso poderio militar/tecnológico americano poderia ser utilizado para alcançar os fins políticos desejados por Washington. Rumsfeld candidatava-se, assim, a ser um teórico da nova guerra do século XXI, superando os estrategistas e teóricos do pessimismo.
Queremos dizer “pessimismo” o conjunto de conhecimentos acumulados nas últimas guerras de massa depois do Vietname. Aí reunimos, desde o impasse e a derrota naquele país, os conflitos no Médio Oriente (onde a superioridade técnico-militar de Israel nunca conseguiu vencer as Intifadas), ou a Somália, em 1993, ou ainda os conflitos na ex-Jugoslávia e, mais recentemente, entre Israel e o Hizbollah, no Líbano em 2006. Neste conjunto de conflitos sempre houve uma potência com ampla superioridade militar, tecnológica e económica enfrentando forças dispersas e/ou organizadas em torno de um Estado-Rede, com instituições reticulares, “moles” e comando disperso. Nos casos acima, apenas no Kosovo a potência superior – no caso EUA + NATO – conseguiu uma vitória completa. Neste caso, o adversário estava organizado sob forma de Estado-Nação e não conseguiu – como era sua estratégia – atrair as forças atacantes para uma longa guerra de desgaste no terreno que controlavam. Quando os Estados Unidos – com Colin Powell à frente – se recusaram a iniciar uma invasão terrestre do montanhoso Kosovo e enfrentar as tropas nacionalistas sérvio-kosovares num longo corpo-a-corpo, a estratégia de Belgrado ruiu. A opção americana pelo uso continuado do poder aéreo e o ataque a directo ao centro de poder do adversário – no coração da Sérvia – mostrou-se acertada.
Na ocasião, Colin Powell declarou ser este o modelo ideal de guerra para os Estados Unidos: «(...) nós atiramos e eles morrem!».
Rumsfeld e Wolfowitz consideravam isso pouco, insuficiente e perigoso. Embora fosse ideal para impor a vontade dos Estados Unidos, não era suficiente para chegar a objetivos mais amplos, tais como mudar os regimes políticos dos chamados out-law states (Cuba, Coreia do Norte, Síria, Iraque, Irão, entre outros) ou realizar a tão desejada “reconfiguração do Grande Médio Oriente”, conforme os sonhos dos neo(?)conservadores. Era necessário dispor do chamado hard power americano, o uso avassalador do poder militar, agora com uma gestão tecnológica.
No manual de Rumsfeld, a guerra moderna dos Estados Unidos deveria ser rápida, tecnológica, com baixas reduzidíssimas. Para isso deveriam utilizar o grande poder de fogo das forças combinadas americanas – o chamado “Espanto e Pavor”. Logo no primeiro momento desencadear-se-ia um ataque brutal contra os centros de poder do adversário, com o uso maciço da aviação e de mísseis, combinado com ataques directos aos centros do poder executivo e militar, “decapitando” o inimigo. Simultaneamente desencadear-se-iam operações terrestres baseadas numa versão altamente tecnificada da blitzkrieg como pensada pelos estrategistas da II Guerra Mundial (Fuller, Guderian e De Gaulle). As tropas não deveriam deter‑se em grandes batalhas, mas sempre que possível contornar, isolar e neutralizar pontos fortificados e prosseguir no controle de entroncamentos rodo-ferroviários, portos e aeroportos até atingir o centro de gravidade do inimigo, no caso identificado com os quartéis-palácios de Saddam Hussein, da Guarda Republicana e dos Feddayn no centro de Bagdade. Destruído o centro de gravidade inimigo, o conjunto do Estado adversário, no caso a ditadura de Saddam, ruiria em seguida, evitando que os Estados Unidos se envolvessem num sem número de batalhas.
UMA VITÓRIA VESTIDA DE DERROTA
Aquilo de facto ocorreu. O centro de gravidade foi correctamente identificado: Bagdade. Em ditaduras altamente centralizadas, com tiranos carismáticos e cruéis, as hierarquias são moldadas de forma a criar laços únicos de lealdade com o núcleo do poder político. Assim, ao destruir o poder de Saddam Hussein – Partido Baas + Guarda Republicana + Feddayn –, o Estado iraquiano ruía junto. Ocorreu, entretanto, uma forte falha de inteligência: Rumsfeld e os seus estrategistas – sob directa influência do vice-presidente Dick Cheney e de Robert Perle, eminência parda no Pentágono – recusaram qualquer possibilidade de resistência anti‑americana. Assumiram as informações da elite exilada iraquiana, a maior parte cliente da folha de pagamentos da CIA. Assim, consideraram a destruição do Estado baasista como “tarefa cumprida”, encerrando idilicamente a guerra em 1 de Maio de 2003 no convés do USS Abraham Lincoln.
Para desgraça geral, a guerra começava naquele momento. As operações de guerra contra o Estado baasista terminavam e, então, começava uma guerra de resistência de grande intensidade.
Como estavam convencidos do carácter “científico” da sua guerra, não se preocuparam com o que a tradição americana chama de “Plano B”. Na verdade, não se trata, verdadeiramente, de uma alternativa para o Plano de Guerra. O agora notável “Plano B” (notável pela sua ausência) deveria constituir‑se numa série de procedimentos e desdobramentos decorrentes do próprio Plano de Guerra, e inerente à sua condução. Assim, ao contrário do Kosovo e do Líbano – onde não se previa ocupação de território – no caso do Iraque era imprescindível a instrumentalização das forças de Saddam Hussein e/ou um contingente três vezes superior ao utilizado para realizar a ocupação. Quando se tornou necessário, não existiam tais tropas.
As diferenças com as operações anteriores eram, no caso, bastante significativas. Kosovo (1999) e Líbano (Junho, 2006) são contrapontos notáveis. Em ambos os casos, o comando militar americano – no Kosovo – e israelense – no Líbano – recusaram‑se a uma invasão imediata do território inimigo e à ocupação de terreno. Em ambos os casos deu-se a opção por bombardeios sistemáticos contra alvos militares, escalando em seguida para a infra-estrutura do país adversário. Neste sentido, a destruição alcançada é tão grande que o adversário começa a reavaliar os seus interesses e objetivos em jogo. Mesmos as incursões havidas – pontuais e imediatamente apoiadas por bombardeios intensos – visavam operações do tipo search and destroy, e não uma ocupação demorada, como no caso de Israel em Junho passado.
Rumsfeld & Wolfowitz inverteram, com a sua “moderna guerra americana”, a lógica militar pós‑Vietname. Imaginaram superar a síndrome do Vietname, convertendo a guerra numa ciência exacta. De posse do mais notável equipamento militar da história e recursos financeiros abundantes, imaginaram uma guerra pontuada pela exactidão, com a revogação do “Princípio da Atrição”, tão caro a Clausewitz. Uma máquina bélica posta em movimento começa, imediatamente, a alterar o conjunto dos seus supostos iniciais. Estes precisam ser constantemente reactualizados e adaptados. A rigidez do Plano de Guerra gera uma condução rígida do conflito, inflexível e incapaz de dar respostas adequadas às novas situações surgidas no campo de batalha. Uma das lógicas da blitzkrieg era a ampla autonomia dada aos comandantes no campo de batalha, bem diferentemente de Rumsfeld, que além de recusar a maior parte das sugestões do staff militar, acabou – exactamente como L. Johnson no Vietname – “microgerenciando” a guerra.
Evidentemente as duas guerras – Vietname e Iraque – não são iguais... Mas são, sim, comparáveis. Lutar num país distante, contra movimentos guerrilheiros e terroristas que contam com o apoio local, é a repetição do erro. No Vietname, começou-se uma guerra de guerrilhas e terminou num grande conflito convencional, enquanto no Iraque a guerra começou como uma grande guerra convencional e descambou para uma intensa guerra de guerrilhas.
ESTADOS UNIDOS, PRISIONEIROS DO DESERTO
Assim, após três anos de combate, com 655 mil civis iraquianos e cerca de 3000 americanos mortos, o presidente Bush permite a reunião de uma comissão suprapartidária, chefiada por James Baker – um ex‑secretário de Estado que serviu longamente R. Reagan e o seu pai, George Bush – em busca de uma solução para a guerra.
Trata-se de um momento complexo em que as soluções fáceis foram todas descartadas. A ironia da situação actual é que os Estados Unidos não possuem ferramentas militares adequadas para vencer a guerra na actual situação. Mas, ao mesmo tempo, não pode dispor de tais ferramentas sem causar forte impacto na opinião pública americana e, por fim, também não se pode dar ao luxo de uma derrota no Golfo Pérsico.
EIS O TAMANHO DO IMPASSE
Vejamos em que conjuntura navegam os Estados Unidos: depois da extrema solidariedade e simpatia decorrentes da tragédia de 11/09/2001, incluindo aí o apoio mundial na guerra contra o regime talibã no Afeganistão, os Estados Unidos surgem aos olhos do mundo como uma potência arrogante e militarista. No Médio Oriente, e por extensão no mundo islâmico, a sua actuação no conflito Israel-Palestina mobiliza forte rancor anti‑americano. Na Ásia Oriental – a mais prospera região do mundo hoje – a China Popular tornou-se um adversário em processo de rápido rearmamento, enquanto a Coreia do Norte desafiou abertamente o poder americano na região. A Europa mostra-se cada vez menos inclinada a seguir a política externa americana, em especial no Médio Oriente. Na América Latina, depois da Venezuela, vários países – incluindo aí o parceiro mexicano – mostram uma nítida inclinação nacionalista e anti‑americana.
É num momento assim difícil que a política externa americana se vê prisioneira do deserto iraquiano. Respostas efectivas aos desafios regionais mais imediatos – como Coreia do Norte e Irão – ou a desafios globais – como a ascensão da China Popular ao patamar de grande potência – são retardados ou paralisados pela pressão iraquiana.
No plano interno, a insatisfação popular com a guerra manifestou-se com clareza nos resultados eleitorais, acantonando Bush na Casa Branca. O próprio estamento militar parece dividido. Depois de ser ignorado por três anos pelos “civis” do Pentágono, é chamado a “resolver” a guerra que na verdade não queriam travar. Caso não consigam apresentar uma saída honrosa, ficarão, com toda a certeza, com o ónus de mais uma guerra perdida pelos Estados Unidos.
O irónico em tudo isso, se não fora trágico, é que uma parcela importante do estamento militar americano não acredita que a segurança dos Estados Unidos no século XXI esteja a ser defendida no Médio Oriente. Grande parte dos militares considera que o lobby cristão – pró-Israel – e o lobby do petróleo estão, na verdade, a desviar a atenção da área essencial de segurança dos Estados Unidos: a Ásia do Pacífico. Assim, o CentCom – o Comando Militar dos Estados Unidos no Médio Oriente e Ásia Central – é constantemente criticado pelo PacCom – o Comando Militar dos Estados Unidos no Pacífico. Para estes, a ameaça de Pyongyang – capaz de causar danos fantásticos às mais importantes economias do mundo (Japão, Coreia do Sul, Taiwan, etc...) – e o aumento de poder de Beijing (em especial em direcção a Indonésia, Singapura, Malásia e Mianmar) são os principais riscos para os Estados Unidos no século XXI.
Para cuidar de tais riscos – a verdadeira Agenda do Século XXI – os Estados Unidos deverão, em primeiro lugar, livrar‑se, de uma forma não humilhante, do passivo iraquiano.
OPÇÕES DOLOROSAS
As opções da Administração Bush são cada vez mais reduzidas e implicam decisões impopulares e capazes de atingir o conjunto da política externa e de defesa dos Estados Unidos. Podemos destacar as seguintes situações em estudo hoje:
Proposta: conforme o depoimento do General Abinzaid no Congresso Americano na última semana, é necessário o aumento das tropas no Iraque (opção sempre descartada por Rumsfeld) para assegurar a vitória americana. Da mesma forma, dever-se-á investir na formação da polícia e das forças de segurança iraquianas, além de exigir o desarmamento das milícias xiitas toleradas pelo governo de Bagdade.
Dificuldade: é muito difícil acreditar que a população americana e o Congresso aceitem o envio de mais tropas para o Iraque, além de ser a confissão cabal do péssimo planeamento da guerra.
Proposta: negociar directamente com a Síria e o Irão a securitização das fronteiras do Iraque, visando evitar a entrada de novos “combatentes islâmicos” e o fornecimento de armas, além, é claro, da melhoria das forças de segurança iraquianas.
Dificuldade: A secretária de Estado Condoleeza Rice declarou, ainda esta semana, que não vê qualquer sinal de receptividade em Damasco ou Teerão e os termos das propostas – como de Tony Blair – soam mais como um ultimato do que uma proposta de negociação.
Proposta: não considerar nenhuma destas opções, manter a actual situação e obrigar os democratas a formular – para as eleições de 2008 – um plano de paz e, por fim, gerir a guerra feita pelos republicanos.
Dificuldade: a dinâmica local é muito fluida e rápida com o risco de colapso do país bastante real. Assim, tentar manter a administração da situação actual é aumentar o número de mortos, incluindo-se aí os americanos, e, no limite, ver-se diante de uma situação de guerra civil de larga envergadura.
Proposta (Plano Blair): trata-se de voltar para a Questão Israel-Palestina, incluindo aí a pacificação das relações Israel-Síria e Israel-Líbano, culminando na criação de um Estado Palestino soberano como forma de diminuir as tensões em toda a região e “esvaziar” a propaganda islamita radical. Ao mesmo tempo dever‑se‑ia negociar com a Síria e o Irão uma retirada programada do Iraque, com a substituição das tropas ocidentais por homens oriundos de países islâmicos.
Dificuldade: a diplomacia americana, com “Condi” Rice à frente, recusa‑se a fazer qualquer vinculação entre a Questão Palestina e a Guerra no Iraque, ou mesmo ao terrorismo mundial, afirmando – ao contrário – que seria mais fácil resolver a Questão Palestina depois da destruição do poder de países chamados radicais, como Síria e Líbano.
Assim, cabe agora ao presidente George Bush decidir o futuro dos Estados Unidos no Golfo Pérsico, buscando uma saída para além do aeroporto de Bagdade.
Francisco Carlos Teixeira
http://www.infoalternativa.org/iraque/iraque073.htm
UMA GUERRA PARA OS MANUAIS
Quando planejou a guerra no Iraque, Donald Rumsfeld (e o seu alterego na aventura iraquiana, Paul Wolfowitz) declararam explicitamente que a nova guerra seria estudada nos manuais pelas gerações futuras. A ideia central de Rumsfeld/Wolfowitz era, em termos estritamente militares, superar, de um lado, a chamada “Síndrome do Vietname” e, de outro, mostrar que o imenso poderio militar/tecnológico americano poderia ser utilizado para alcançar os fins políticos desejados por Washington. Rumsfeld candidatava-se, assim, a ser um teórico da nova guerra do século XXI, superando os estrategistas e teóricos do pessimismo.
Queremos dizer “pessimismo” o conjunto de conhecimentos acumulados nas últimas guerras de massa depois do Vietname. Aí reunimos, desde o impasse e a derrota naquele país, os conflitos no Médio Oriente (onde a superioridade técnico-militar de Israel nunca conseguiu vencer as Intifadas), ou a Somália, em 1993, ou ainda os conflitos na ex-Jugoslávia e, mais recentemente, entre Israel e o Hizbollah, no Líbano em 2006. Neste conjunto de conflitos sempre houve uma potência com ampla superioridade militar, tecnológica e económica enfrentando forças dispersas e/ou organizadas em torno de um Estado-Rede, com instituições reticulares, “moles” e comando disperso. Nos casos acima, apenas no Kosovo a potência superior – no caso EUA + NATO – conseguiu uma vitória completa. Neste caso, o adversário estava organizado sob forma de Estado-Nação e não conseguiu – como era sua estratégia – atrair as forças atacantes para uma longa guerra de desgaste no terreno que controlavam. Quando os Estados Unidos – com Colin Powell à frente – se recusaram a iniciar uma invasão terrestre do montanhoso Kosovo e enfrentar as tropas nacionalistas sérvio-kosovares num longo corpo-a-corpo, a estratégia de Belgrado ruiu. A opção americana pelo uso continuado do poder aéreo e o ataque a directo ao centro de poder do adversário – no coração da Sérvia – mostrou-se acertada.
Na ocasião, Colin Powell declarou ser este o modelo ideal de guerra para os Estados Unidos: «(...) nós atiramos e eles morrem!».
Rumsfeld e Wolfowitz consideravam isso pouco, insuficiente e perigoso. Embora fosse ideal para impor a vontade dos Estados Unidos, não era suficiente para chegar a objetivos mais amplos, tais como mudar os regimes políticos dos chamados out-law states (Cuba, Coreia do Norte, Síria, Iraque, Irão, entre outros) ou realizar a tão desejada “reconfiguração do Grande Médio Oriente”, conforme os sonhos dos neo(?)conservadores. Era necessário dispor do chamado hard power americano, o uso avassalador do poder militar, agora com uma gestão tecnológica.
No manual de Rumsfeld, a guerra moderna dos Estados Unidos deveria ser rápida, tecnológica, com baixas reduzidíssimas. Para isso deveriam utilizar o grande poder de fogo das forças combinadas americanas – o chamado “Espanto e Pavor”. Logo no primeiro momento desencadear-se-ia um ataque brutal contra os centros de poder do adversário, com o uso maciço da aviação e de mísseis, combinado com ataques directos aos centros do poder executivo e militar, “decapitando” o inimigo. Simultaneamente desencadear-se-iam operações terrestres baseadas numa versão altamente tecnificada da blitzkrieg como pensada pelos estrategistas da II Guerra Mundial (Fuller, Guderian e De Gaulle). As tropas não deveriam deter‑se em grandes batalhas, mas sempre que possível contornar, isolar e neutralizar pontos fortificados e prosseguir no controle de entroncamentos rodo-ferroviários, portos e aeroportos até atingir o centro de gravidade do inimigo, no caso identificado com os quartéis-palácios de Saddam Hussein, da Guarda Republicana e dos Feddayn no centro de Bagdade. Destruído o centro de gravidade inimigo, o conjunto do Estado adversário, no caso a ditadura de Saddam, ruiria em seguida, evitando que os Estados Unidos se envolvessem num sem número de batalhas.
UMA VITÓRIA VESTIDA DE DERROTA
Aquilo de facto ocorreu. O centro de gravidade foi correctamente identificado: Bagdade. Em ditaduras altamente centralizadas, com tiranos carismáticos e cruéis, as hierarquias são moldadas de forma a criar laços únicos de lealdade com o núcleo do poder político. Assim, ao destruir o poder de Saddam Hussein – Partido Baas + Guarda Republicana + Feddayn –, o Estado iraquiano ruía junto. Ocorreu, entretanto, uma forte falha de inteligência: Rumsfeld e os seus estrategistas – sob directa influência do vice-presidente Dick Cheney e de Robert Perle, eminência parda no Pentágono – recusaram qualquer possibilidade de resistência anti‑americana. Assumiram as informações da elite exilada iraquiana, a maior parte cliente da folha de pagamentos da CIA. Assim, consideraram a destruição do Estado baasista como “tarefa cumprida”, encerrando idilicamente a guerra em 1 de Maio de 2003 no convés do USS Abraham Lincoln.
Para desgraça geral, a guerra começava naquele momento. As operações de guerra contra o Estado baasista terminavam e, então, começava uma guerra de resistência de grande intensidade.
Como estavam convencidos do carácter “científico” da sua guerra, não se preocuparam com o que a tradição americana chama de “Plano B”. Na verdade, não se trata, verdadeiramente, de uma alternativa para o Plano de Guerra. O agora notável “Plano B” (notável pela sua ausência) deveria constituir‑se numa série de procedimentos e desdobramentos decorrentes do próprio Plano de Guerra, e inerente à sua condução. Assim, ao contrário do Kosovo e do Líbano – onde não se previa ocupação de território – no caso do Iraque era imprescindível a instrumentalização das forças de Saddam Hussein e/ou um contingente três vezes superior ao utilizado para realizar a ocupação. Quando se tornou necessário, não existiam tais tropas.
As diferenças com as operações anteriores eram, no caso, bastante significativas. Kosovo (1999) e Líbano (Junho, 2006) são contrapontos notáveis. Em ambos os casos, o comando militar americano – no Kosovo – e israelense – no Líbano – recusaram‑se a uma invasão imediata do território inimigo e à ocupação de terreno. Em ambos os casos deu-se a opção por bombardeios sistemáticos contra alvos militares, escalando em seguida para a infra-estrutura do país adversário. Neste sentido, a destruição alcançada é tão grande que o adversário começa a reavaliar os seus interesses e objetivos em jogo. Mesmos as incursões havidas – pontuais e imediatamente apoiadas por bombardeios intensos – visavam operações do tipo search and destroy, e não uma ocupação demorada, como no caso de Israel em Junho passado.
Rumsfeld & Wolfowitz inverteram, com a sua “moderna guerra americana”, a lógica militar pós‑Vietname. Imaginaram superar a síndrome do Vietname, convertendo a guerra numa ciência exacta. De posse do mais notável equipamento militar da história e recursos financeiros abundantes, imaginaram uma guerra pontuada pela exactidão, com a revogação do “Princípio da Atrição”, tão caro a Clausewitz. Uma máquina bélica posta em movimento começa, imediatamente, a alterar o conjunto dos seus supostos iniciais. Estes precisam ser constantemente reactualizados e adaptados. A rigidez do Plano de Guerra gera uma condução rígida do conflito, inflexível e incapaz de dar respostas adequadas às novas situações surgidas no campo de batalha. Uma das lógicas da blitzkrieg era a ampla autonomia dada aos comandantes no campo de batalha, bem diferentemente de Rumsfeld, que além de recusar a maior parte das sugestões do staff militar, acabou – exactamente como L. Johnson no Vietname – “microgerenciando” a guerra.
Evidentemente as duas guerras – Vietname e Iraque – não são iguais... Mas são, sim, comparáveis. Lutar num país distante, contra movimentos guerrilheiros e terroristas que contam com o apoio local, é a repetição do erro. No Vietname, começou-se uma guerra de guerrilhas e terminou num grande conflito convencional, enquanto no Iraque a guerra começou como uma grande guerra convencional e descambou para uma intensa guerra de guerrilhas.
ESTADOS UNIDOS, PRISIONEIROS DO DESERTO
Assim, após três anos de combate, com 655 mil civis iraquianos e cerca de 3000 americanos mortos, o presidente Bush permite a reunião de uma comissão suprapartidária, chefiada por James Baker – um ex‑secretário de Estado que serviu longamente R. Reagan e o seu pai, George Bush – em busca de uma solução para a guerra.
Trata-se de um momento complexo em que as soluções fáceis foram todas descartadas. A ironia da situação actual é que os Estados Unidos não possuem ferramentas militares adequadas para vencer a guerra na actual situação. Mas, ao mesmo tempo, não pode dispor de tais ferramentas sem causar forte impacto na opinião pública americana e, por fim, também não se pode dar ao luxo de uma derrota no Golfo Pérsico.
EIS O TAMANHO DO IMPASSE
Vejamos em que conjuntura navegam os Estados Unidos: depois da extrema solidariedade e simpatia decorrentes da tragédia de 11/09/2001, incluindo aí o apoio mundial na guerra contra o regime talibã no Afeganistão, os Estados Unidos surgem aos olhos do mundo como uma potência arrogante e militarista. No Médio Oriente, e por extensão no mundo islâmico, a sua actuação no conflito Israel-Palestina mobiliza forte rancor anti‑americano. Na Ásia Oriental – a mais prospera região do mundo hoje – a China Popular tornou-se um adversário em processo de rápido rearmamento, enquanto a Coreia do Norte desafiou abertamente o poder americano na região. A Europa mostra-se cada vez menos inclinada a seguir a política externa americana, em especial no Médio Oriente. Na América Latina, depois da Venezuela, vários países – incluindo aí o parceiro mexicano – mostram uma nítida inclinação nacionalista e anti‑americana.
É num momento assim difícil que a política externa americana se vê prisioneira do deserto iraquiano. Respostas efectivas aos desafios regionais mais imediatos – como Coreia do Norte e Irão – ou a desafios globais – como a ascensão da China Popular ao patamar de grande potência – são retardados ou paralisados pela pressão iraquiana.
No plano interno, a insatisfação popular com a guerra manifestou-se com clareza nos resultados eleitorais, acantonando Bush na Casa Branca. O próprio estamento militar parece dividido. Depois de ser ignorado por três anos pelos “civis” do Pentágono, é chamado a “resolver” a guerra que na verdade não queriam travar. Caso não consigam apresentar uma saída honrosa, ficarão, com toda a certeza, com o ónus de mais uma guerra perdida pelos Estados Unidos.
O irónico em tudo isso, se não fora trágico, é que uma parcela importante do estamento militar americano não acredita que a segurança dos Estados Unidos no século XXI esteja a ser defendida no Médio Oriente. Grande parte dos militares considera que o lobby cristão – pró-Israel – e o lobby do petróleo estão, na verdade, a desviar a atenção da área essencial de segurança dos Estados Unidos: a Ásia do Pacífico. Assim, o CentCom – o Comando Militar dos Estados Unidos no Médio Oriente e Ásia Central – é constantemente criticado pelo PacCom – o Comando Militar dos Estados Unidos no Pacífico. Para estes, a ameaça de Pyongyang – capaz de causar danos fantásticos às mais importantes economias do mundo (Japão, Coreia do Sul, Taiwan, etc...) – e o aumento de poder de Beijing (em especial em direcção a Indonésia, Singapura, Malásia e Mianmar) são os principais riscos para os Estados Unidos no século XXI.
Para cuidar de tais riscos – a verdadeira Agenda do Século XXI – os Estados Unidos deverão, em primeiro lugar, livrar‑se, de uma forma não humilhante, do passivo iraquiano.
OPÇÕES DOLOROSAS
As opções da Administração Bush são cada vez mais reduzidas e implicam decisões impopulares e capazes de atingir o conjunto da política externa e de defesa dos Estados Unidos. Podemos destacar as seguintes situações em estudo hoje:
Proposta: conforme o depoimento do General Abinzaid no Congresso Americano na última semana, é necessário o aumento das tropas no Iraque (opção sempre descartada por Rumsfeld) para assegurar a vitória americana. Da mesma forma, dever-se-á investir na formação da polícia e das forças de segurança iraquianas, além de exigir o desarmamento das milícias xiitas toleradas pelo governo de Bagdade.
Dificuldade: é muito difícil acreditar que a população americana e o Congresso aceitem o envio de mais tropas para o Iraque, além de ser a confissão cabal do péssimo planeamento da guerra.
Proposta: negociar directamente com a Síria e o Irão a securitização das fronteiras do Iraque, visando evitar a entrada de novos “combatentes islâmicos” e o fornecimento de armas, além, é claro, da melhoria das forças de segurança iraquianas.
Dificuldade: A secretária de Estado Condoleeza Rice declarou, ainda esta semana, que não vê qualquer sinal de receptividade em Damasco ou Teerão e os termos das propostas – como de Tony Blair – soam mais como um ultimato do que uma proposta de negociação.
Proposta: não considerar nenhuma destas opções, manter a actual situação e obrigar os democratas a formular – para as eleições de 2008 – um plano de paz e, por fim, gerir a guerra feita pelos republicanos.
Dificuldade: a dinâmica local é muito fluida e rápida com o risco de colapso do país bastante real. Assim, tentar manter a administração da situação actual é aumentar o número de mortos, incluindo-se aí os americanos, e, no limite, ver-se diante de uma situação de guerra civil de larga envergadura.
Proposta (Plano Blair): trata-se de voltar para a Questão Israel-Palestina, incluindo aí a pacificação das relações Israel-Síria e Israel-Líbano, culminando na criação de um Estado Palestino soberano como forma de diminuir as tensões em toda a região e “esvaziar” a propaganda islamita radical. Ao mesmo tempo dever‑se‑ia negociar com a Síria e o Irão uma retirada programada do Iraque, com a substituição das tropas ocidentais por homens oriundos de países islâmicos.
Dificuldade: a diplomacia americana, com “Condi” Rice à frente, recusa‑se a fazer qualquer vinculação entre a Questão Palestina e a Guerra no Iraque, ou mesmo ao terrorismo mundial, afirmando – ao contrário – que seria mais fácil resolver a Questão Palestina depois da destruição do poder de países chamados radicais, como Síria e Líbano.
Assim, cabe agora ao presidente George Bush decidir o futuro dos Estados Unidos no Golfo Pérsico, buscando uma saída para além do aeroporto de Bagdade.
Francisco Carlos Teixeira
http://www.infoalternativa.org/iraque/iraque073.htm
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