quinta-feira, novembro 30, 2006

Pilhagens nas terras do Paraná brasileiro

A partir da Argentina, a soja transgénica ultrapassa fronteiras e invade o Paraguai e, clandestinamente, o estado do Sul do Brasil que faz fronteira com estes dois países – o Paraná. Os OGM são utilizados em prejuízo dos pequenos produtores e criam novas formas de dependência. Desenha-se assim um modelo de monocultura industrial, rejeitado pelos camponeses sul­‑americanos e controlado pelas transnacionais.

«Terra roxa», uma das mais férteis do mundo... Esta é uma terra abundante no estado do Paraná, no Sul do Brasil. «Um autêntico sonho», entusiasma-se Laércio Trucolo, que administra a produção da Fazenda Chapadão, um paraíso agrícola de 1400 hectares. «Nós aqui temos sem dificuldade duas colheitas por ano, coisa que na Europa bem nos podem invejar!» É um sonho, sem dúvida. Sonho de lucros chorudos para uns, graças a uma agricultura cada vez mais “moderna” e “tecnológica”. Sonho de subsistência e dignidade para os outros – que são muito mais numerosos.

Trinta mil fazendeiros dividem entre si quase 70 por cento dos 16 milhões de hectares cultivados no Paraná, com 100 ou mais hectares por exploração, enquanto cerca de 300.000 pequenos proprietários dispõem entre 5 e 40 hectares na sua maioria, ou seja, cerca de 27 por cento da superfície cultivada. Por último, 300.000 famílias de camponeses sem terra partilham a superfície restante, cabendo a cada uma menos de 5 hectares; e para alimentar uma família de seis pessoas seriam necessários uns 15 hectares.

Estas famílias foram as primeiras vítimas da modernização acelerada da agricultura ocorrida na década de 1980. Eram necessárias grandes superfícies para a expansão do «modelo da agricultura industrial, com o seu cocktail de mecanização, herbicidas, adubos químicos e irrigação intensiva», explica Roberto Baggio, do Movimento dos Sem Terra (MST). Entre 1985 e 1995, anualmente e em todo o país, sumiram-se 100.000 propriedades agrícolas. “Revolução verde”, afirmou-se então. Uma designação irónica, tendo em conta a violência social e os danos ambientais que a dita “revolução” engendrou, a começar por uma maciça desflorestação.

No início do século XX a floresta cobria mais de 16 milhões dos 19 milhões de hectares do Paraná. Desde então, perante os abates empreendidos pelos machados e as motosserras dos imigrantes, o coberto silvestre recuou de tal maneira que hoje mal atinge os 1,5 milhões de hectares, correspondentes a 8 por cento da superfície do estado.

Entretanto, a região conquistou um triste título: o de principal consumidora de pesticidas e fertilizantes químicos do Brasil. Ao mesmo tempo que começa a associar-se a utilização intensiva destes produtos e o outro recorde nacional do Paraná – o dos cancros do fígado e do pâncreas –, cada vez mais pessoas sugerem, juntamente com João Pedro Stedile, da direcção nacional do MST, que na dita revolução verde o que havia era uma «contra-reforma escondida».

Mas embora o processo de concentração da terra se encontre praticamente estabilizado, ele poderá recomeçar com a introdução das sementes transgénicas, em particular através do contrabando oriundo da Argentina, onde elas são autorizadas, e para gáudio da multinacional Monsanto [1]. É certo que a soja geneticamente modificada, ainda há pouco inteiramente desconhecida no Paraná, não atinge aqui «mais do que 2 por cento da produção», como sublinha o governador do Paraná, Roberto Requião. Mas em redor de Francisco Beltrão «quase 70 por cento das pessoas semeiam transgénicos», diz Juan Bedenaski, bem situado para saber do que fala, visto vender herbicidas e adubos químicos aos agricultores da zona. A contaminação progride, podendo então o sistema das royalties – taxa independente do preço de venda final obtido pela Monsanto pela utilização das suas sementes, que a firma obviamente protegeu previamente com férreas patentes – mostrar o seu verdadeiro rosto [2].

Como nos primeiros anos a Monsanto não tentou cobrar essa taxa, muitos agricultores foram seduzidos por sementes “gratuitas” gabadas pelos serviços comerciais da poderosa multinacional – e pela grande maioria dos media. Mas de súbito, em 2004, a Monsanto passou a impor royalties de 0,62 reais por saco de 60 quilos. Cúmulo do absurdo, muitos produtores foram-se aos poucos resignando a pagar o que lhes exigiam, mesmo pela soja “convencional”, preferindo não correr o risco de terem de pagar a multa de 1,5 reais por saco (em 2004) aplicada aos “borlistas”, eles próprios vítimas involuntárias, por vezes, da contaminação espontânea provocado pelas incontroláveis sementeiras transgénicas...

Por seu lado, a multinacional procura ter o apoio garantido das grandes cooperativas, atraindo-as a um rendimento tanto mais lucrativo quanto já foi anunciado para as colheitas de 2005-2006 um aumento de 100 por cento das tarifas! Ao mesmo tempo que a seca faz baixar a produtividade e que a evolução do valor do dólar nada apresenta de favorável [3], o espartilho comprime cada vez mais os “pequenos”, que se vêem ameaçados de exclusão...

E no entanto são eles que geram 80 por cento dos empregos, que garantem a redistribuição dos rendimentos da terra, que consolidam a implantação rural e contribuem para a disponibilidade dos alimentos de base que em nada interessam os agro-exportadores. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção de feijão preto – típico da alimentação brasileira – passou de 38 quilos por habitante em 1938 para menos de 10 quilos actualmente, continuando o feijão a ser popular. Mas isso que importa? O facto é que a agricultura industrial consegue impor a sua visão da actividade agrícola... Segundo Roberto Baggio, ela está até em vias de alcançar uma vitória decisiva, considerando este porta-voz dos sem terra que os transgénicos representam «a batalha derradeira pela dominação da terra, já não por um pequeno grupo de latifundiários, mas por um grupo ainda mais restrito de multinacionais».

A eleição em 2002 de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência tinha criado uma esperança, mas à promessa de interdição dos organismos geneticamente modificados (OGM) aconteceu o mesmo que a muitas outras promessas. A própria nomeação de Roberto Rodrigues para o Ministério da Agricultura já tinha valor programático, visto ele fazer parte do conselho de administração da Fundação Bunge, uma das grandes multinacionais do mercado de sementes.

Foi com a autorização da comercialização da soja no estado do Rio Grande do Sul, e da sua cultura transgénica, depois, que em Outubro de 2003 os opositores aos OGM começaram a ter uma longa série de rejeições grosseiras. As suas últimas esperanças desvaneceram-se em 24 de Março de 2005, quando foi aprovada a “lei de bio-segurança” que abriu caminho à comercialização. A constitucionalidade do texto legal foi posta em causa, nomeadamente pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), mas nem por isso deixou de constituir uma vitória importante para a meia dúzia de multinacionais que têm a porta aberta para a obtenção dum monopólio e dum rendimento permanente num mercado ainda há vinte anos inexistente. Quanto ao governo, a sua decisão, em 2003, de aplicar uma sobretaxa de 35 por cento às importações de glifosato [4] chinês sem que o da Monsanto fosse alvo de quaisquer objecções, é coisa que causa perplexidade...

A perigosa possibilidade de vir a constituir-se um monopólio atirou para a arena o governador do Paraná, Roberto Requião. Ao mesmo tempo que por pressão dos consumidores a procura dos grandes importadores (Europa e Ásia) passou a orientar-se cada vez mais para os produtos não-OGM, as exportações de soja dos Estados Unidos, principalmente transgénicas, diminuíram drasticamente (menos 41,5 por cento em 2004) em proveito da produção brasileira. E esta é uma competição que incomoda o Norte. Neste contexto, Roberto Requião não pode tolerar que a «soberania nacional» se veja submetida a patentes que são propriedade dum punhado de multinacionais cujos interesses são amiúde afins dos de Washington. «Se eles conseguirem generalizar a utilização dos transgénicos, conseguirão controlar a nossa produção». Vemos aqui, por assim dizer, a arma alimentar ao serviço dos problemas geopolíticos...

O Paraná, depois de em Outubro de 2003 ter tentado – sob a pressão dos movimentos sociais – declarar­‑se “zona livre de transgénicos”, teve de concentrar a sua luta no porto de Paranaguá, principal porto cerealífero da América Latina, cuja gestão detém. Com base em argumentos técnicos, este porto foi fechado aos produtos transgénicos. «Dispomos apenas de um silo», explicou o governador. «Se introduzirmos soja transgénica no circuito, dar-se-á uma contaminação e toda a soja do Paraná será considerada transgénica». No entanto, estava então em construção um segundo silo, destinado aos cereais “convencionais”. Denunciando uma tentativa de manipulação, a oposição – próxima das multinacionais do mercado das sementes e favorável a uma abertura do porto aos transgénicos – inicia uma série de lock­‑outs e investigações parlamentares com vista a que o governo federal volte a controlar as instalações. Uma “federalização” que, na grande maioria dos casos, ocorridos noutros lugares do Brasil, revelou ser uma etapa intermédio rumo à privatização dos portos... e à sua abertura aos transgénicos.

PRAGMATISMO ECONÓMICO

Paraná escorou-se na defesa do princípio de precaução, inscrito na Constituição de 1988, mas o determinante foi a firmeza dos consumidores europeus e asiáticos no sentido de recusarem ter na sua alimentação produtos modificados geneticamente. Com efeito, embora o director comercial do porto de Paranaguá, Ruy Alberto Zibetti, fizesse alarde de bons sentimentos, por detrás da “ética” a que tanto se referia transparecia o “pragmatismo” económico e a necessidade de o Paraná se destacar com um produto diferenciado, economicamente viável no mercado internacional. Em contrapartida, esta mesma lógica de integração no mercado em nada põe em causa a lógica produtivista.

«Nós precisamos duma agricultura de massas», assevera Requião. Por seu lado, a Secretaria da Agricultura gosta de lembrar que o Paraná continua a «bater recordes», estimulado por grandes «êxitos de produtividade» [5]. É verdade que com os seus 2,3 por cento do território nacional o Paraná se encontra à cabeça dos estados cerealíferos, com 23 por cento da produção brasileira em 2004. A agricultura industrial tornou-se ali a principal actividade económica (cerca de um terço do produto interno bruto) e concentrou-se nas grandes culturas – milho, trigo, cevada, aveia (o Paraná é o primeiro produtor no Brasil), mas também, obviamente, soja (segundo produtor), cujo peso relativo aumenta sem cessar. Entre 1990 e 2003, a superfície ocupada por estas culturas aumentou 14 por cento, ultrapassando os 8 milhões de hectares. Quanto à produção, esta passou de 12 milhões para mais de 30 milhões de toneladas... E este aumento não vai parar.

«É preciso produzir, produzir, produzir... », repete com insistência Marcos Prochet, representante da União Democrática Ruralista do Paraná (organização criada pelos grandes proprietários para “responder” ao surgimento do MST), batendo com o punho fechado no volante do seu carro. «Não sei se está a ver», diz ele com um sorriso conivente, «os pobres recebem dinheiro quando têm filhos, de maneira que nós temos de produzir para que haja bastante comida!» Porém, sendo certo que a floresta está a recuar, o mesmo não acontece com a pobreza e a fome. Segundo a rede Ecovida [6], um tal argumento produtivista não tem pés nem cabeça. «A fome é uma questão social e política, não é um problema tecnológico», e não será resolvida pela «modernização conservadora, poluente e não igualitária da agricultura».

De resto, este modelo está longe de ter dado provas de viabilidade. Um estudo mostra que a «modernização conservadora» da agricultura implica um aumento duas vezes mais rápido dos custos do que da produtividade, saldando-se numa redução do valor bruto acrescentado da produção [7]. Por outro lado, nas análises começou a juntar-se ao custo da poluição dos lençóis freáticos (causadores, no Paraná, desde 1993, de mais de 6000 casos de intoxicação reconhecidos e de 30.000 outros casos em estimativa) [8] o custo do esgotamento dos solos associado à muito frequente monocultura da soja (à qual foram atribuídos 20 por cento das receitas agrícolas, em 2002, na Argentina, onde as avaliações foram feitas) [9]. Segundo João Pedro Stedile e frei Sérgio Gorgen, deputado do Partido dos Trabalhadores (PT) do Rio Grande do Sul, as contas são fáceis de fazer: a agricultura industrial «só sobrevive actualmente graças aos subsídios e facilidades que o Estado brasileiro lhe concede».

Um exemplo: a Lei Kandir, que entrou em vigor em 1997 e é considerada o acelerador que tornou possível o desenvolvimento da agricultura industrial, exonera os exportadores de matérias-primas do pagamento do imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços (ICMS), um imposto de 13 por cento sobre o valor acrescentado que os estados brasileiros cobram. O governo federal tinha-se comprometido a cobrir a parte que os estados não cobrassem, mas nunca o fez inteiramente. Só no respeitante ao Paraná, «é um presente no valor de mais de 4 mil milhões de reais [mais de 1,5 mil milhões de euros], feito desde a aplicação da lei», afirma Roberto Baggio. A passagem para o modelo intensivo opera assim uma transferência de riqueza dos “pequenos” agricultores para as “grandes” empresas (da agroquímica, entre outras), e da esfera pública para a esfera privada. As conhecidas receitas do neoliberalismo...

PROBLEMAS AMBIENTAIS E SOCIAIS

Os movimentos sociais opõem a este sistema um outro, mais respeitador dos seres humanos e do ambiente, baseado em dois conceitos: a reforma agrária e um modelo agrícola sustentável e ecológico. O famoso «produzir menos para produzir melhor»... «e para o mercado interno!», acrescenta Vanderley Ziger, director da cooperativa Cresol-Baser, criada em 1996 nas regiões do Sudeste e do Centro-Oeste do Paraná. O seu objectivo consiste em permitir que os pequenos agricultores tenham «acesso ao crédito cooperativo, às tecnologias de exploração biológica e sustentável». Trata-se também de criar «um sistema de comercialização que saia da rede capitalista das grandes cooperativas», de voltar a encontrar circuitos curtos de aprovisionamento e de acabar com os «alimentos turísticos» que saem do país para lá voltar depois de enriquecerem os intermediários. O objectivo declarado consiste apenas em ajudar os agricultores a «voltarem a ter nas suas mãos as suas próprias vidas e o seu meio ambiente», com isso afirmando a sua identidade. Como explica Gilmar Ostrovski, da Ecovida, «a reapropriação da agricultura é uma reapropriação política e social». Programa um pouco louco, irreal? «É o único que nos pode levar a resolver, tanto os nossos problemas ambientais e sociais, como o desemprego e o êxodo rural», afiançam-nos na sede da Cresol-Baser. De resto, «o projecto já está inscrito na lei».

De facto, a Constituição de 1988 estabelece que é «da competência da União expropriar (...), na óptica da reforma agrária, as terras que não cumpram a sua função social». Por função social entende-se a «utilização adequada dos recursos naturais e a preservação do ambiente», o «respeito pelas disposições que regulamentam as relações de trabalho» e a protecção do «bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores».

Mas num retirado gabinete de Curitiba, o director-geral da Secretaria da Agricultura, Newton Ribas, afasta essa ideia com um gesto. «No Paraná a reforma agrária já foi feita; já temos bastantes pequenos agricultores! Além disso, aqui não há terras disponíveis. (...) O Brasil é grande, os sem terra podem ir para outros sítios!» Juntando­‑se às legiões de trabalhadores explorados no Cerrado [10], por exemplo? Todavia, segundo o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), faltam no cadastro oficial do Paraná 2,6 milhões de hectares de terra, provavelmente ocupados de forma ilegal por agricultores que se “esqueceram” de os declarar. Motivo suficiente para serem expropriados... «De qualquer maneira», explica o agrónomo Christophe Lannoy, «mesmo que se duplicassem as superfícies ocupadas pelas pessoas que hoje têm apenas 25 hectares, ainda sobravam terras no Paraná. O problema reside na vontade política». Nesta matéria, com efeito, é grande a decepção de todos quantos esperavam que o Brasil de Lula abrisse uma via para alternativas ao modelo liberal.

O governo federal não soube desfazer a visão duma “agricultura de classe” alicerçada nas próprias instituições. A impossibilidade de dar uma resposta estrutural às questões agrícolas manifesta-se no facto de haver, por um lado, o Ministério da Agricultura de Roberto Rodrigues e, por outro, o do Desenvolvimento Rural, que tenta corresponder às necessidades dos agricultores familiares. Nos estados prevalece a mesma bicefalia. Ao mesmo tempo que na maior parte das secretarias do governo dizem querer «defender os pequenos» e «proteger o ambiente», nomeadamente com o lançamento duma escola de agro-ecologia em parceria com Caracas e Havana, o governador Roberto Requião afirma que «a agro-ecologia não passa de uma utopia».

Por seu lado, o secretário de Estado do Orçamento, Reinhold Stephanes – oriundo do Partido da Frente Liberal (PFL) e implicado na preparação do Plano Real [11] –, congratula-se com o seguinte facto: «A ajuda que os agricultores familiares recebem não nos fica cara, provém principalmente da União e do Banco Mundial»... Do mesmo Banco Mundial a respeito do qual Frei Betto (membro demissionário do governo por criticar a sua política) explica que ele «interdita ao Brasil qualquer reforma estruturante» [12].

Deste modo, entre outras medidas, a União propõe créditos submetidos aos desideratos do Banco do Brasil (que gere todos os fundos em conformidade com uma agenda que favorece os seus clientes mais solventes) e que mantêm o encadeamento da dívida. Por seu turno, o Estado constrói granjas (para que os agricultores «armazenem e vendam os seus cereais pelo melhor preço») e “certifica” a produção para facilitar as exportações, sendo assim perpetradas as próprias bases do modelo vigente. Deverá ver-se nisto uma falta de ambição política ou a demonstração duma crise estrutural impeditiva duma mudança no país? Na hora dos balanços, revela-se violento o debate entre os decepcionados do Partido dos Trabalhadores (PT) e os “lulistas” encarniçados.

Toma ou retoma de empresas estratégicas cuja actividade se circunscreve às fronteiras do estado (caso da COPEL, Companhia de Electricidade do Paraná), renegociação dos “contratos imorais” que ligavam o Paraná a empresas predadoras, reforma profunda da educação, participação na Telesur [13] (através duma parceria com a televisão pública Paraná Educativa), etc. Comparativamente, é inegável que a amplidão das medidas do governador do Paraná sugere haver no Estado federal uma grande inércia, em particular no âmbito da agricultura, sector estratégico para a classe dominante brasileira, uma elite que é sobretudo agrária.

VONTADE DE EMANCIPAÇÃO

Num país onde o determinismo neoliberal se encontra de tal modo interiorizado que em termos de ortodoxia económica «o poder da União sobre os estados é mais forte que o do FMI sobre a União» [14], o recuo dos poderes públicos perante os interesses privados é para muita gente uma fatalidade. A crise que afecta o PT não ajuda a ter esperança numa mudança estimulada pelo poder político [15]. Neste contexto, fala-se no nome de Roberto Requião para representar a “esquerda” no caso de Lula não se recandidatar. Mas não tropeçará o seu “nacionalismo musculado” nas mesmas limitações, impostas por mandatos muito curtos e por instituições pervertidas pela corrupção e pelo clientelismo? Além disso, a sua visão de um «capitalismo não especulativo» baseado em políticas «compensatórias» [16] que se limitariam a suavizar os eleitos dum sistema estruturalmente injusto acaso poderá estar em sintonia com a profunda vontade de emancipação dos agricultores familiares, dos sem terra, de todos quantos decidiram sair do estatuto de dominados a que o modelo actual os condena?

Seja como for, para estes vai ser preciso agir depressa – antes de a soja transgénica contaminar todo o país.

[1] A soja transgénica, proibida no Brasil, foi introduzida no país dessa maneira. Em 25 de Setembro de 2003 foi contemplada com uma «medida provisória» que autorizou a sua colheita na campanha agrícola de 2003­‑2004. E desde então o provisório continua a estar vigente...
[2] Jean-Jacques Sevilla, Chancelante résistance aux OGM [ed. brasileira: A vacilante resistência aos transgénicos], Le Monde diplomatique, Dezembro de 2003.
[3] Na “super-colheita” de 2003-2004, o saco de soja valia à volta de 17 dólares e o dólar valia 4 reais. Em 2005, a soja evoluiu para cerca de 11 dólares por saco e o dólar passou a valer cerca de 2,5 reais. Fonte: EMATER/PR, Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Expansão Rural, informações orais recolhidas pelo autor.
[4] Herbicida. A soja transgénica fabricada pela Monsanto é concebida para lhe resistir.
[5] Brochura da Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento, Curitiba, 2004.
[6] Rede de apoio à agro-ecologia no Sul do Brasil.
[7] Estudo realizado pelo Sistema Cresol 2002, citado no “Terceiro Encontro Estadual – Paraná – Brasil”, Jornada de Agroecologia, Lance Livre Design – Produções e editora Ltda., Curitiba, 2004.
[8] Fiocruz/Sinitox e Organização Mundial da Saúde, citados por Jelson Oliveira em “Os agrotóxicos e a poluição das águas”, Jornada da Agroecologia, Editora Gráfica Popular Ltda., 2004.
[9] Ver o documentário de Marcelo Viñas intitulado Hambre de soja, Icaro, Buenos Aires, 2004.
[10] Região de savana arborizada e principalmente brasileira, com mais de 2 milhões de quilómetros quadrados, que se estende ao longo de vários estados, das terras do interior aos limites da Amazónia.
[11] Tentativa de dolarização da economia levada a cabo em 1994 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, etapa­‑chave da viragem neoliberal operada na política económica brasileira.
[12] Declarações no Fórum Franco-Brasileiro da Sociedade Civil, 12 e 13 de Julho de 2005, no Conselho Económico de Paris.
[13] Canal latino-americano de televisão criado por iniciativa do presidente venezuelano Hugo Chávez para contrariar em matéria informativa a influência dos canais comerciais e da CNN. São seus accionistas a Argentina, Cuba, o Uruguai e a Venezucla.
[14] Declarações de Reinhold Stephanes.
[15] Ignacio Ramonet, Brasil, o atoladeiro, Le Monde diplomatique, Outubro de 2005.
[16] Entrevista, Caros Amigos, Vila Madalena, Julho de 2005.
Renaud Lambert
Le Monde diplomatique
http://www.infoalternativa.org/ecologia/ecologia041.htm

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